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CLAVES DA NARRATIVA

3.0 A multiplicidade de teclados

Quando o leitor lê o título do livro, assim no plural, ele provavelmente se indaga: por que “Os Teclados”? No decorrer da narrativa, ele percebe que há várias referências a teclados, tais como o teclado de papel, o teclado do piano e o teclado do computador. Cada um deles metaforiza uma circunstância vivenciada por Júlia, como se fossem momentos que auxiliam na constituição da protagonista como sujeito.

Como já foi apresentado no início deste capítulo, Júlia não suporta os paradigmas estabelecidos por tio Octávio e não deseja para si a apreensão e a pressão sofridas por sua amiga Ireninha em sua audição pública. Por isso, opta por tocar no silêncio, ou seja, fazer para si um teclado de papel. Esta seria a primeira metáfora que contribuiria para explicar o uso do plural no título. Em uma casa em que a censura reina como modo operante na figura de tio Octávio, restam a Júlia poucas formas de protesto e todas elas passam pelo silêncio: a prece, no início da narrativa, posteriormente o teclado de papel, depois, a clavinova onde se tocava com os auscultadores e, por fim, o piano em uma sala vazia, onde se tocava sem público.

O teclado de papel, além de metaforizar um protesto silencioso de Júlia em relação aos paradigmas ético-musicais de tio Octávio, também poderia simbolizar o isolamento, a solidão (benéfica) da criação artística.

Na trama, criar, de forma ambivalente, um teclado de papel pode ser visto como a metáfora da produção de sua própria história, porém elaborada por outro teclado, o do computador, e impressa em papel, na materialidade do livro. Esta é a segunda metáfora, pois o teclado do computador cria um diálogo entre a criatura (Júlia) e sua criadora, a escritora (na narrativa Helena Estevão, possível alter-ego de Teolinda Gersão). Já o teclado do piano é a grande metáfora da obra, uma vez que é por meio dele que a linguagem poético-musical se desenvolve, auxiliando Júlia na construção de seus paradigmas.

O teclado é um espaço simbólico dentro da narrativa. Um espaço ora opressor, pois impõe formas de comportamento pré-estabelecidos por alguém, ora libertador, pois permite à Júlia estabelecer seus próprios paradigmas, nem que para isso seja preciso reproduzir o teclado em um pedaço de papel.

A linguagem musical é uma importante forma de comunicação estabelecida dentro da casa. Tio Octávio, tia Isaura, Tio Eurico e Júlia se comunicam por meio de processos e comportamentos musicais. A música não é só feita de som, mas também de silêncios (as chamadas pausas): Tio Eurico, Tia Isaura e Armênia não ouvem uns aos outros, vivem no mundo do silêncio, ou seja, da pausa, assim como Júlia quando toca em seu piano de papel ou apenas olhando as partituras. Não há sons, apenas interiorização da música - uma espécie de relação entre o ser que ali ouve sua música, solitariamente, e a arte musical. Tio Octávio ouve Beethoven como um ritual, deseja o silêncio de todos à sua volta para apreciar a música de seu ídolo; no entanto, impõe a pausa, ou seja, o silêncio do mundo para si, sem estabelecer uma relação de comunicação com nenhum membro de sua família.

Para Júlia, a música é uma linguagem transcendente e perigosa. Nela estão projetados seus paradigmas de comportamento e verdade, principalmente na música de Mozart, por meio da qual ela busca constituir-se como sujeito. Com medo de se perder na infinita possibilidade que o teclado apresenta e não encontrar o sentido que está procurando, a garota fecha-se em si mesma, tocando em um teclado de papel, que só pode ser ouvido por ela e não se apresenta, portanto, ao julgamento do público.

Ao entrar em contato com o artigo de jornal com a entrevista com a escritora Helena Estevão, desencadeia-se na protagonista a percepção da mutabilidade do sentido da vida, pois os paradigmas assimilados são, a cada momento, transformados a partir das experiências individuais. A partir desse episódio (em que ela lê o artigo), parece que a narrativa toma um outro rumo, e as atitudes da protagonista demonstram um nível maior de consciência, que se reflete na aceleração do movimento dos seus pensamentos, percorridos por dúvidas, incertezas e ansiedades.

O fato de Júlia treinar em um teclado de papel é um modo de se proteger de tio Octávio e suas ideias de transformá-la em um gênio musical, seguindo as tendências de um suposto mercado. Isto é, a música interpretada por Júlia é ouvida apenas dentro dela, como as preces que ela fazia no início do enredo.

Este teclado de papel é substituído, na narrativa, pelos auscultadores ligados à clavinova. Ou seja, a tecnologia já existente na casa de Lúcia, amiga de Júlia, faz com

que ela não necessite do silêncio do teclado de papel, uma vez que pode tocar sem ninguém ouvir sua execução: de certo modo, a música continua sendo interpretada apenas internamente, já que somente a protagonista a ouve. No trecho abaixo, Júlia mostra-se feliz pela descoberta deste aparelho que lhe permitiria tocar sem ser ouvida:

Porque a seguir teve uma surpresa: Lúcia abriu a porta do escritório e mostrou-lhe a clavinova. Tocava com os auscultadores, explicou, para não incomodar a mãe, que tinha dores de cabeça muitas vezes. [...] Além do mais, riu, os auscultadores são óptimos, ninguém sabe se estou a estudar ou não.

Existia portanto um milagre assim? Bastava uma cavilha para esconder o som, fazê-lo apenas seu?

Experimenta, disse Lúcia, divertida de a [Júlia] ver tão deslumbrada. (GERSÃO, 1999, p.64-65).

Além desse “milagre”, como chamou Júlia, os auscultadores proporcionam-lhe uma grande descoberta; pode-se dizer que, num novo momento epifânico, ela concebe que a interpretação musical envolve o intérprete e a obra, a aprovação do público não sendo mais uma necessidade, como pensava tio Octávio. Ao se libertar do público, Júlia crê na transformação do ser através dessa relação entre arte e intérprete.

Por isso, no fim da narrativa, ela toca na ausência do público. Como consegue resolver a incógnita que percorria seu trajeto de constituição como sujeito, ou seja, sua relação com a arte, não é preciso silenciar sua música, pois, naquele momento, ela concebe a ideia de tocar para uma plateia vazia, reafirmando, de certo modo, o paradigma ético apresentando através da figura de Mozart, isto é, a música fluiria a partir da interpretação do músico e não dependeria da opinião do público, segundo a protagonista.

Essa concepção nasce a partir do “milagre” da existência dos auscultadores e da reflexão de Júlia sobre sua ida ao circo com Ireninha, onde ela assistiu à apresentação de uma trapezista. A seguir, a análise desse episódio e de suas repercussões na aprendizagem da protagonista.

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