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CLAVES DA NARRATIVA

5.1 O mito das sereias

Outro diálogo que também está presente nesta obra de Gersão se faz com o mito das sereias. Mesmo que as sereias já sejam citadas no Mito de Er, a ênfase do enredo d’Os Teclados parece apontar para o tradicional Mito das Sereias já apresentado em diversas obras literárias e não só para aquele presente no mito platônico.

Primeiramente, verifica-se que, no romance, a citação das sereias aparece após a referência ao Mito de Er: “(...) em cada um dos oito círculos dos planetas havia uma

sereia, girando com as esferas e cantando a harmonia com as três Moiras.” (GERSÃO, 1999, p.76).

No Mito de Er, cada planeta emitiria um som e todos eles juntos formariam a música do universo, num canto entoado por sereias, cada uma em um planeta, estabelecendo uma harmonia com as Moiras (Parcas), espécie de feiticeiras que comandam o fio da vida das pessoas a partir de suas escolhas no reino dos mortos.

Durante a narrativa, paralelamente à descrição do Mito das Sereias, o narrador relata os pensamentos de Júlia no seu encontro com o professor Rogério no café. A metáfora das sereias que ali aparece como um refrão musical (que será explicado no capítulo sobre Harmonia) funciona como uma explicação dos pensamentos, sentimentos e ações de Júlia naquele instante e em sua busca pelo sentido da vida. Para destacar essa análise vale repetir o trecho que já foi citado anteriormente nesta dissertação:

[...] em cada um dos oito círculos dos planetas havia uma sereia em harmonia com as três Moiras.

(Ela caindo dos mundos, de esfera em esfera, presa por um pé. Descendo vertiginosamente através dos planetas. Em cada um uma sereia olhando.)

(Em cada planeta uma sereia olhando com o rosto dela própria.) (As sereias cantavam em harmonia com o destino. Que era sempre o mais forte.)

(Elas penteavam os longos cabelos, sentadas nos rochedos. As sereias. E cantavam.) (GERSÃO, 1999, p.77-79).

Neste momento, destacou-se o seguinte trecho: “(Ela caindo dos mundos, de esfera em esfera, presa por um pé, descendo vertiginosamente através dos planetas. Em cada um uma sereia olhando.)” (GERSÃO, 1999, p. 78), onde Júlia projeta sua imagem em uma sereia que desce de planeta em planeta, como uma espécie de trapezista imaginária, sendo observada pelas demais sereias.

Com sua beleza e seu canto, as sereias representam a sedução e o perigo. Ao cantar, elas hipnotizam aqueles que as ouvem, geralmente, levando-os à morte. Álvaro Cardoso Gomes, em seu livro O poético: magia e iluminação, descreve as sereias como seres mitológicos e sedutores:

A sereia, espécie mítica de ser, por fundir o humano ao animal, representa as “forças inferiores na mulher ou o símbolo da imaginação corrupta seduzida pelos primitivos estratos da vida”. Ora, por isso que ela se comunica através do canto, tipo de expressão em que o estrato sensível predomina sobre o intelectual. A música é a mais subjetiva das artes e, assim se presta a conduzir a emoção de modo mais direto, agindo, em consequência, sobre os sentimentos do ouvinte. A ação da sereia sobre o pescador visa aos estratos do inconsciente, através da atração do abismo, o mar, um dos símbolos mais tradicionais do mundo baixo dos instintos. (p.133).

As sereias, através do seu canto, seduzem as pessoas e as levam à morte no abismo do oceano. Em Os Teclados, Júlia tenta seduzir o professor ao longo da conversa cujo tema é a formação do universo. As explicações realizadas por Rogério Souto passam pela música, uma vez que Pitágoras, Platão e Kepler são citados pelo professor e todos esses filósofos tentaram explicar a formação do universo através de elementos musicais.

Portanto, em uma mesma sequência de trechos, Gersão retoma o Mito de Er de Platão, bem como o Mito das Sereias, diversas vezes apontado na Literatura.

A sequência do Mito de Er é intercalada pelas reflexões de Júlia sobre o poder da música. Segundo Rogério Souto, a “[...] música curava as almas porque as fazia regressar à origem, ao primeiro princípio [...]” (GERSÃO, 1999, p. 77) e sobre seu poder de sedução, “[...] Queria saber se um homem poderia amá-la. Apesar do teclado.” (GERSÃO, 1999, p.79). Pela metáfora das sereias, percebe-se uma trajetória de reflexão enigmática realizada por Júlia ao tentar desvendar-se a si mesma, refletindo sobre o mito narrado pelo professor e suas ações no café.

Na tradição literária, o Mito das Sereias aparece na Odisseia5 de Homero e em poemas como Barca Bela, de Almeida Garret. Em ambas as referências literárias, e o

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Segue o trecho, retirado da Odisseia de Homero, sobre o mito das sereias: “Toda esta primeira provação está concluída. Escuta agora o que vou dizer-te; aliás um deus de novo te recordará isso mesmo. Chegarás, primeiro, à região das Sereias, cuja voz encanta todos os homens que delas se aproximam. Se alguém, sem dar por isso, delas se avizinha e as escuta, nunca mais sua mulher nem seus filhos pequeninos se reunirão em torno dele, pois que ficará cativo do canto harmonioso das Sereias. Residem elas num prado, em redor do qual se amontoam as ossadas de corpos em putrefação, cujas peles se vão ressequindo. Prossegue adiante, sem parar; com cera doce como mel amolecida tapa as orelhas de teus companheiros, para que nenhum deles possa ouvi-las. Tu, se quiseres, ouve-as; mas que em tua nau ligeira te atem pés e mãos, estando tu direito, ao mastro por meio de cordas para que te seja dado experimentar o prazer de ouvir a voz das Sereias. Se acaso pedires e instares com teus homens que te soltem, que eles te prendam com maior número de ligaduras.” (HOMERO, Odisseia .Tradução de Antônio Pinto de Carvalho, São Paulo: Abril Cultural, 1981. Rapsódia XII, p.113).

recorte retoma o poder do canto das sereias e seus atos de sedução. Odisseu (Ulisses), com o desejo de ouvir o canto das sereias, pede aos seus marinheiros que o amarrem no mastro do navio e coloquem cera em seus ouvidos, de modo que ele possa ver as sereias sem se deixar hipnotizar por seu canto. Por precaução, exigiu que cada marinheiro seu tapasse os ouvidos, assim ele poderia apreciar as sereias, mas o navio estaria seguro, pois seus marinheiros não seriam seduzidos pelo canto delas. Os navios que não tomavam essa precaução acabavam sendo levados pelos próprios marinheiros para próximo das sereias e, por fim, eram destruídos em naufrágios.

No decorrer da narrativa, Júlia questiona-se sobre o público e a relação dele com o musicista. Os episódios que a colocam frente ao tio Octávio, à Ireninha e à trapezista vão, aos poucos, libertando-a da crença de que a plateia exerça um papel preponderante na vivência artística.

No tocante ao episódio acima, Júlia ora assume o papel das sereias, na intenção de seduzir o professor de matemática, ora assume o papel de Odisseu, na sua reflexão crítica que germina, sobre a relação da musicista com o público, e em seu papel de ouvinte. Amarrado ao mastro, Odisseu, privado de força, de poder e de vontade, significará a passividade do espectador, a imobilidade de quem assiste ao concerto, ao filme, ao drama, ao espetáculo, atado à cadeira, passivo. Ele pode evocar o grito apaixonado daquele que deseja a libertação, entretanto é abafado pelo aplauso. Como na obra há um possível diálogo entre criadora (Gersão – projetada em Helena Estevão) e criatura (Júlia), a “vingança” da escritora estaria em levar o leitor a vivenciar os mesmos medos e riscos pelos quais passa no ato da escrita. Através da personagem Júlia e dos parênteses realizados pela autora, o leitor é lançado ao universo de Odisseu e ao mito das sereias, ao movimento de sedução que cada uma delas elabora e seu canto da morte e, a partir destas metáforas, pensa sobre sua própria passividade diante da obra de arte, como plateia inerte do canto.

Em relação à música, e com base no mito explorado, ela teria o poder da hipnose, assim como o canto das sereias, ou ainda o poder da sedução da fala do professor de matemática naquele instante.

No trecho que se segue, cada sereia possui o rosto de Júlia. Tem-se, então, um processo de projeção da protagonista sobre o mito, “(Em cada planeta uma sereia olhando. Com o rosto dela própria)” (GERSÃO, 1999, p .79). Júlia também seduzia enquanto se deixava seduzir. As sereias com seu rosto também reportam à ideia de um

enigma a ser desvendado. Ela também era um mistério para si, por isso estava se descobrindo e se constituindo como sujeito por meio das experiências vivenciadas.

No episódio em que Júlia está no café, ela realiza o mesmo movimento das sereias na citação:

Inclinou a cabeça sobre o copo de limonada e o cabelo que deixava crescer caiu-lhe sobre a cara.

(Elas penteavam os longos cabelos, sentadas nos rochedos. As sereias. E cantava). (GERSÃO, 1999, p. 79).

A sedução, na cena acima, ocorre, portanto, de ambos os lados: a menina tenta chamar a atenção sobre si, enquanto o professor (talvez sem o saber) a seduz, explicando-lhe um mito de sedução. Nesse momento a busca de Júlia atende a um novo desejo: o “sentido” ou verdade que ela buscava incorporar também os anseios de uma sensualidade recém-despertada.

Júlia é uma personagem em aprendizagem e, por meio das mais variadas metáforas, como a trapezista, o Mito das Sereias, o Mito de Er ou o teclado de papel, leva o leitor a realizar uma reflexão sobre a arte na contemporaneidade e sobre a relação do individuo com essa arte – relação intermediada pelo desejo.

Mas, em um mundo em que predominam a troca de valores, a velocidade das informações e a massificação da arte, qual seria o papel do leitor, do escritor, do artista? São estas as reflexões do próximo capítulo.

CAPÍTULO II

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