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4 ASPECTOS CONTROVERSOS DA USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL

4.4 Perspectivas processuais de fragilidade na aplicação da usucapião

4.4.2 A (não) intervenção do Ministério Público

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O Ministério Público foi conceituado como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis e do próprio regime democrático.

Outro ponto controverso acerca do procedimento da usucapião extrajudicial do Novo Código de Processo Civil está configurado na falta de previsão específica da intervenção do Ministério Público em tais demandas.

Cumpre ressaltar que no CPC anterior, tal previsão era expressa nesse tipo de ação, segundo teor do artigo 944 do Código de 1973, onde era obrigatória a intervenção do parquet nas ações declaratórias de usucapião. A jurisprudência é uníssona acerca deste tema:

PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO DE USUCAPIÃO – INTERVENÇÃO OBRIGATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL EM TODOS OS ATOS DO PROCESSO – ARTS. 944 E 246 DO CPC – INOBSERVÂNCIA – NULIDADE. I – A intervenção do Ministério Público Federal, na ação de usucapião, é obrigatória, nos termos do art. 944 do CPC, sendo imprescindível, sob pena de nulidade (art. 246 do CPC), sua intimação de todos os atos do processo. II – Preliminar suscitada pelo Ministério Público Federal acolhida, para declarar nula a sentença, determinando o retorno dos autos à Vara de origem, para o regular prosseguimento do feito. Prejudicadas, via de consequência, a apelação e a remessa necessária. (TRF-2 - AC: 200002010329129 RJ 2000.02.01.032912-9, Relator: Juiz Federal Convocado MAURO SOUZA MARQUES DA COSTA BRAGA, Data de Julgamento: 02/06/2010, QUINTA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: E-DJF2R - Data::09/07/2010 - Página::429)

Compartilha do mesmo posicionamento o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DOS RÉUS. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DO MP. CASO DE INTERVENÇÃO OBRIGATÓRIA. PARECER DO MP EM SEGUNDO GRAU. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. Tratando-se de feito que exige intervenção obrigatória do Ministério Público (ação de usucapião, art. 944 do CPC), a falta de intimação do MP implica nulidade do feito. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. (Apelação Cível Nº 70056775117, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mylene Maria Michel, Julgado em 29/04/2014)(TJ-RS - AC: 70056775117 RS, Relator: Mylene Maria Michel, Data de Julgamento: 29/04/2014, Décima Nona Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 12/05/2014)

Ante do exposto, quando ainda em vigência o código anterior, em que a ausência de intimação do Ministério Público era motivo para nulidade da sentença, como tal intervenção foi simplesmente suprimida na esfera administrativa pelo NCPC, sem configuração de nulidade absoluta?

A Constituição Federal de 1988 reservou determinadas funções ao Ministério Público, alçando o parquet à condição de defensor da ordem jurídica, do regime democrático

84 e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme preceitua o art. 127 da Carta Maior.

Lembre-se que, antes da Constituição Cidadã, o Ministério Público atuava prioritariamente na área criminal ou como mero fiscal da lei na área cível. Depois de 1988, o seu âmbito de atribuições acabou se robustecendo, em que o membro do parquet passou a atuar de forma coletiva na defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente, da criança e do adolescente, do consumidor e de inúmeros outros interesses difusos e coletivos.

A respeito do tema, esclarece Jairo Cruz (MOREIRA, 2009, p. 51):

Algumas das funções desempenhadas, como a legitimação privativa para a ação penal pública, que encontravam respaldo em normas infraconstitucionais, foram alçadas ao patamar da Lei Maior. Outras foram ampliadas, como no caso da tutela genérica para a tutela dos interesses difusos e coletivos. Inovações também existiram, a exemplo do papel de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, bem assim quanto à defesa dos interesses dos povos indígenas e ao controle externo da atividade policial.

Vale relembrar que o Ministério Público pode atuar no âmbito civil como parte ou como fiscal da lei. Como parte, o parquet tem legitimidade para propor inúmeras ações, como, por exemplo, a ação civil pública, regulamentada na Lei n.º 7.347/85.

Já na condição de custos legis (fiscal da lei), as hipóteses de intervenção do Ministério Público estavam previstas basicamente no Art. 82 do Código de Processo Civil de 1973, senão veja-se:

Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir: I - nas causas em que há interesses de incapazes;

II - nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; III - em todas as demais causas em que há interesse público, evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.

III - nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.

O Código de Processo Civil atual, por sua vez, sem mencionar especificamente o procedimento extrajudicial ou mesmo judicial da usucapião, restringiu a atuação do Ministério Público basicamente às hipóteses dos Arts. 176 e 178, transcritas abaixo:

Art. 176. O Ministério Público atuará na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis.

Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam:

I - interesse público ou social; II - interesse de incapaz;

85 À vista disso, sem entrar no mérito do posicionamento de alguns membros do próprio parquet que já se posicionavam contra a obrigatoriedade de manifestação em todas as ações de usucapião, não nos parece razoável a opção do legislador a ausência de previsão específica de atuação do Ministério Público no procedimento da usucapião extrajudicial.

Ademais, em um país com tamanha desigualdade e uma péssima política fundiária, além da irregular divisão e ocupação do solo, tanto na área urbana quanto rural, resta indubitável que a usucapião é de interesse público, o que reclama a necessária intervenção do parquet, na condição de custos legis. Corroborando tal entendimento, afirma o autor Marcus Vinicius Rios Gonçalves (2013, p. 313):

É indispensável que seja intimado o Ministério Público quando se trata de usucapião de imóveis. A intervenção será como custos legis, e se justifica porque a ação repercute no registro de imóveis, do qual o parquet é fiscal permanecente. Desnecessária a manifestação do Ministério Público nas ações de usucapião de bens móveis.

Ademais, nas ações de usucapião ordinária e extraordinária, que não apresentam legislação específica, diante da ausência de previsão expressa sobre a obrigatoriedade ou não de intervenção do Ministério Público, ficará o debate sobre a obrigatoriedade de atuação de tal órgão nas ações de usucapião ordinária e extraordinária pela não reprodução do Art. 944 do Código Processual Civil de 1973.

Diante da pouca idade do Novo Código Processual e da ausência de posicionamento dos tribunais acerca de tal assunto, acredita-se que, mesmo com a ausência de previsão expressa, deveria ser obrigatória a intervenção do Ministério Público no procedimento extrajudicial da usucapião, com fundamento no próprio CPC atual.

Conforme já explanado acima, segundo o Art. 178, inciso III, do NCPC, o Ministério Público deverá intervir como fiscal da ordem jurídica nos processos que envolvam ―litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana‖. Ademais, o fundamento de tal obrigatoriedade ainda pode ser buscado no preceito do art. 176 do CPC atual, em que o MP atuará ―na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis‖.

Frise-se que a propriedade sempre desperta um interesse social, diante do seu fundamento na função social, retirada do Art. 5º, incisos XXII e XXIII, da Constituição Federal.

Ora, se nestes casos, em âmbito judicial, é obrigatória a intervenção do Ministério Público como fiscal da lei, porque na seara administrativa não seria no tocante à usucapião extraordinária e ordinária? Ademais, a atuação do parquet continua obrigatória em todas as

86 modalidades de usucapião previstas em leis específicas, sendo incoerente que a regra não alcance as modalidades ordinária e extraordinária.

Sem dúvida, somente o tempo e o entendimento dos tribunais podem solucionar tais dúvidas acerca de tal obrigatoriedade. O certo é que, do modo como está, o procedimento da usucapião extrajudicial poderá gerar certa insegurança jurídica sem os olhos atentos do Ministério Público, órgão de suma importância em âmbito judicial, não podendo ser tolhido de sua função na seara dos cartórios, estes bem mais propícios a eventuais erros em um procedimento tão importante socialmente quanto o da usucapião.