• Nenhum resultado encontrado

3.6 O fim do fantástico?

3.6.1 A narrativa neofantástica

Ainda comentando os rumos da narrativa fantástica no século XX, Tzvetan Todorov chega a declarar que eles se diferem dos apresentados nas narrativas tradicionais do gênero porque o sobrenatural é parte do mundo tido como real, dominando completamente a narrativa em sua maior parte e fugindo da já comentada estrutura gradativa de apresentação do fenômeno fantástico – desfazendo assim a hesitação de leitor. Ou seja, tudo acontece tal como o pensador comenta acerca de A metamorfose, de Kakfa: “o que era uma exceção no primeiro mundo [o real] torna-se aqui uma regra” (TODOROV, 2010, p. 182).

A conclusão de Todorov nos remete imediatamente à tendência estilística adotada por muitos escritores do século XX em diante. Julio Cortázar (1974, p. 179) diz que “sempre soube que as grandes surpresas nos esperam ali onde tivermos aprendido por fim a não nos surpreender com nada, entendo por isto não nos escandalizarmos

43 Lo que hay que evidenciar es cómo lo fantástico ha ido transformándose (aun conservando muchas de

96 diante das rupturas da ordem”. Tal afirmação também nos parece relacionada aos textos em que a forma de ver o fantástico mudou, mas sem que desaparecessem por completo suas características principais. O fantástico deixa de ser o destino, o ponto de chegada da história, para ser a própria história em si. Tal grupo de narrativas ficou comumente conhecido como um subgênero da literatura fantástica – que muitos denominam realismo mágico, realismo fantástico ou, já na concepção do teórico Jaime Alazraki (2001), narrativa neofantástica. Acreditamos que, como já se pode deduzir apenas pela nomenclatura, o neofantástico se apresenta como uma vertente derivada do que temos como fantástico tradicional ou oitocentista, não como a negação ou oposição ao seu gênero de origem. Muitos dos elementos característicos do fantástico ainda podem ser vistos em um texto neofantástico. A principal diferença está no impacto que causa no leitor. Na observação de alguns textos que podem ser vistos como pertencentes a esse subgênero, Alazraki (2011, p. 277) comenta que

Nem “A biblioteca de Babel” [de Borges], nem “A metamorfose” [de Kafka] nem “Bestiário” [de Cortázar] nos produzem medo ou temor. Uma perplexidade ou inquietude sim, devido ao insólito das situações narradas, mas sua intenção é outra. São, em sua maioria, metáforas que buscam expressar suspeitas, entrevisões ou interstícios da insensatez que escapam ou resistem a linguagem da comunicação, que não cabem nas células construídas pela razão, que vão pela contramão do sistema conceitual ou científico com que manejamos no dia-a-dia44. Todorov, ao declarar o “fim” do fantástico, acaba por ignorar uma série de tendências estilísticas, sendo a neofantástica a mais conhecida. Mesmo Lygia Fagundes Telles mostra em seus contos traços do neofantástico.

“Lua crescente em Amsterdã” é conto bastante pertinente nessa discussão. A falta de questionamento frente ao fenômeno fantástico já sugere certa aproximação estilística com a narrativa neofantástica. A naturalidade com que agem os personagens é flagrante; para eles, o importante é a discussão entre eles:

Ela levantou as mãos e passou as pontas dos dedos nos cabelos. Na boca.

— E agora? O que acontece quando não se tem mais nada com o amor?

44Ni “La biblioteca de Babel”, ni “La metamorfosis” ni “Bestiario” nos producen miedo o temor. Una

perplejidad o inquietud sí, por lo insólito de las situaciones narradas, pero su iintención es muy otra. Son, en su mayor parte, metáforas que buscam expresar atisbos, enntrevisiones o interstícios de sinrazón que escapan o se resisten al lenguaje de la comunicación, que no caben en las celdillas construidas por la razón, que van a contrapelo del sistema conceptual o científico con que nos manejamos a diário.

97 Quase ele levou de novo a mão no bolso para pegar o cigarro, onde fumara o último?

— Sopra o vento e a gente vira outra coisa. — Que coisa?

— Sei lá. Não quero é voltar a ser gente, eu teria que conviver com as pessoas e as pessoas - ele murmurou. - Queria ser um passarinho, vi um dia um passarinho bem de perto e achei que devia ser simples a vida de um passarinho de penas azuis, os olhinhos lustrosos. Acho que queria ser aquele passarinho.

— Nunca me teria como companheira, nunca. Gosto de mel, acho que quero ser borboleta. É fácil a vida de borboleta?

— E curta. (TELLES, 1981, p. 63-64).

Durante a análise do conto, vimos que não há medo, assombro, perplexidade ou inquietação por parte dos personagens. Se chega a haver, isso não é revelado, graças à mudança de foco no desfecho. A perplexidade de que fala Alazraki só se projeta ao leitor na forma como recebemos os acontecimentos. Para os personagens, nada acontece, mas para o leitor que acompanha a citação acima imediatamente relacionará os anseios do casal protagonista com o fenômeno sugerido no final da narrativa. Essa coincidência, somada à atmosfera misteriosa criada sobre a cidade e a imagem da lua crescente, cria tensão e expectativa de resolução para o mistério. Já que essa resolução não vem, o leitor termina o conto incapaz de compreender por completo o que houve e, por este mesmo motivo, perturbado. É fácil perceber que o conto possui elementos comuns a ambas as vertentes do fantástico, o que, além de atestar a qualidade estética do conto de Telles, mostra a possibilídade de construção de uma narrativa híbrida, misto de tradição e modernidade.