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2.2 Tensão, significação e intensidade: a teoria de Julio Cortázar

2.2.2 Cortázar e o fantástico

Tendo percebido as consonâncias e dissonâncias entre Poe e Cortázar, como perceberíamos então a relação entre a teoria deste último e o fantástico, a literatura fantástica como um todo?

Primeiramente, ao vermos as consonâncias entre as visões de Poe e Cortázar, percebemos que nossas ponderações apresentadas ao falarmos sobre a relação entre Poe

17 O cinema-templo tem esse nome por funcionar como local de culto evangélico pelas manhãs, mas

33 e o fantástico são, da mesma forma, válidas aqui. Isso fica bem claro quando, comentando a obra de Edgar Allan Poe, Cortázar (1974, p. 122) mostra-se de acordo com o pragmatismo proposto por sua teoria:

[...] a eficácia de um conto depende de sua intensidade como acontecimento puro, isto é, que todo comentário ao acontecimento em si [...] deve ser radicalmente suprimido. Cada palavra deve confluir, concorrer para o acontecimento, para a coisa que ocorre e esta coisa que ocorre deve ser só acontecimento e não alegoria (como em muitos contos de Hawthorne, por exemplo) ou pretexto para generalizações psicológicas, éticas ou didáticas (grifos do autor).

É interessante percebermos que a citação acima corrobora o que já vimos sobre o fantástico, dando ênfase, inclusive, a duas importantes afirmativas. Uma delas, a da priorização do acontecimento, lembra-nos o que prega Irène Bessière (1974, p. 14):

Abrindo largo espaço para o insolúvel e para o insólito, [o fantástico] apresenta uma personagem geralmente passiva, porque examina como as coisas acontecem no universo e tira conclusões de uma definição do estatuto do sujeito. Orientada para a verdade do acontecimento e não à do comportamento, esta questão para ser completa deve se concentrar no que é irredutível a qualquer quadro cognitivo ou religioso18 (grifos da autora).

Essa ideia sugere que as personagens da narrativa fantástica tendem a ser inferiores ao acontecimento com que se deparam; o absurdo, o insólito em si, é mais importante, pois desencadeia todas as ações seguintes e determina pujantemente o desfecho da história. O resultado aqui é um complemento à visão já comentada – em que Todorov afirma que o fantástico deve surgir de modo crescente na diegese, tendo seu clímax no desfecho.

Vejamos, por exemplo, como “O encontro”, conto de Lygia Fagundes Telles, parece confirmar todas essas exposições acima. O foco no acontecimento em detrimento do comportamento é flagrante:

A folha que resvalou pela minha cabeça era a seca advertência que colhi no ar e fechei na mão: que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse na hora exata (TELLES, 1981, p 69).

18 “Faisant une large place à l'insoluble et à l'insolite, il présente un personage solvente passif, parce qu'il

examine la manière dont les choses arrivent dans l'univers et en tire les conséquences pour une définition du statut du sujet. Orientée vers la verité de l'événement et non vers celle de l'agissement, cette interrogation pour être plénière doit porter sur ce qui est irréductible à tout cadre cognitif ou religieux”.

34 A protagonista do conto se vê buscando compreender em que consiste a experiência de se deparar com seu duplo. Esse acontecimento é determinante para o comportamento da protagonista. A condução da narrativa o tempo todo nos induz ao questionamento dos eventos inusitados, exibindo, conforme observamos na citação acima, toda a incapacidade da personagem de se desvencilhar da situação que lhe é imposta. Não lhe resta a inércia, mas uma passividade, uma busca por resolução que vai se denotando impossível. Uma análise mais minuciosa desta narrativa, a se realizar no capítulo seguinte desta pesquisa, mostrará que temos algumas sugestões de resolução.

A outra importante característica da teoria de Cortázar diz respeito ao que sugerimos chamar de contos de tensão. Como vimos, a ideia de tensão a que chegamos proporciona novas formas de ver uma narrativa curta. Reparemos que a literatura fantástica pode se beneficiar exaustivamente desse tipo de narrativa que se abre às descrições, digressões e fragmentações. Isso pode ser facilmente comprovado ao lermos contos de horror, de ficção científica ou contos maravilhosos, pois a negação ou variação do real que comumente se encontra nestes tipos de narrativa ganha em impacto quando enfatiza algum – ou até mais de um – desses elementos. Isso acontece porque a maior parte destas narrativas se passa em espaços parcial ou completamente destoantes do espaço real. Este último não carece de tantas informações para que haja interação com o leitor, pois ele já possui alguns parâmetros definidos sobre a “realidade”; é possível construir uma imagem riquíssima em detalhes com uma simples referência espaço-temporal do tipo “São Paulo, 25 de dezembro de 2010”. Em contrapartida, não podemos vislumbrar uma ambientação tão rica em um cenário imaginário, irreal, pois ele nem sempre corresponderá ao que encontramos em nosso dia-a-dia – basta que nos lembremos das narrativas maravilhosas e dos contos de fadas e teremos bons exemplos. Também é possível encontrar provas do que comentamos nos contos fantásticos de Telles. Ainda em “O encontro”, percebemos grande ênfase nas descrições, pois o espaço em que a história acontece é indeterminado. Há semelhança com a realidade apenas quando vemos que os elementos espaciais também poderiam ser encontrados na realidade, mas toda descrição é exposta de maneira bastante imprecisa, para que se enfatize a sua indeterminação. Ficamos apenas especulando se estamos diante de um espaço mítico ou onírico, fato também suscitado ao leitor através dos próprios questionamentos da protagonista: “[...] e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se estivesse vivendo. Por que não?

35 (TELLES, 1981, p. 69). O espaço narrativo é descrito detalhadamente para dar impressão de um déjà vu, mas ao mesmo tempo é descrito de forma que o leitor não se convença das possíveis determinações desse espaço, formando uma espécie de paradoxo, uma tensão muito grande que gera tanto na personagem quanto no leitor a expectativa de um possível desenlace.

A abrangência da teoria de Cortázar não para por aí. Se ao comentar como deve se escrever um bom conto ele se aproxima das teorias de Todorov, algumas das afirmações que encontramos em “Do sentimento do fantástico” 19 podem ser úteis para compreender o que optamos por chamar de neofantástico. Entretanto, para melhor organização deste estudo, comentaremos a respeito no capítulo seguinte, dando continuidade à revisão aqui proposta inicialmente, a partir de agora enfocando os estudos de Piglia.