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A narrativa personativa e a técnica do refletor

No documento ROBSON ANDRÉ DA SILVA (páginas 81-86)

II. A NARRATIVA DRAMÁTICA DE AUTRAN DOURADO

4. O PERSPECTIVISMO NARRATIVO E A ARTE DRAMÁTICA

4.2. A narrativa personativa e a técnica do refletor

Iniciando-se com Flaubert e radicalizando-se com Henry James, principalmente em seus últimos romances publicados entre 1900 e 1904, The

Ambassadors, The Wings of the Dove e The Golden Bowl, e em seus

do romance, a questão do ponto de vista narrativo é levada às últimas consequências por grandes romancistas como, por exemplo, Marcel Proust, James Joyce, Virgínia Woolf, William Faulkner, Thomas Mann, Franz Kafka, Robert Musil, Hermann Broch, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Adonias Filho, Osman Lins e Autran Dourado. Na verdade, a contribuição de Henry James para os escritores do século XX está no fato de transformar o romance numa arte que propõe a saída do autor (“exit author”) que se intromete no texto para tecer comentários acerca de sua obra e de seus personagens (BEACH, 1932, p. 14-24). O autor intruso desaparece da cena e esta passa a ser apresentada através do fluxo de consciência, do monólogo interior e das impressões refletidas nas mentes dos personagens (FRIEDMAN, 1955; HUMPHREY, 1976; COHN, 1978). Na terminologia hermenêutica de Franz Karl Stanzel (1971), presente em sua obra fundamental Narrative Situations in the Novel: Tom

Jones, Moby-Dick, The Ambassadors, Ulysses, o romance deixa de ser autoral

(authorial novel) e passa a ser, predominantemente, personativo (figural novel) (STANZEL, 1971, p. 92-120). Entre o narrador e os eventos narrados, interpõe- se um ou vários personagens refletores ou máscaras narrativas. O narrador assume, então, o desempenho dramático do ator, metamorfoseia-se, despersonaliza-se, assume a máscara (persona), não fala em nome próprio, pois representa o papel de outra pessoa.

Como disse Gustave Flaubert, em carta a Louise Colet, datada de 9 de dezembro de 1852, a dramaticidade, impassibilidade ou impessoalidade da arte é a finalidade divina do criador: “O autor, em sua obra, deve ser como Deus no universo, presente em toda parte, e visível em parte nenhuma.” (FLAUBERT, 2005, p. 83). Importa assinalar que esta mesma tese flaubertiana da dramaticidade da arte e da impessoalidade do artista é reiterada por James Joyce em seu romance Um Retrato do Artista quando Jovem: “O artista, como o Deus da criação, permanece dentro ou atrás ou além ou acima de sua obra, invisível, aprimorado fora da existência, indiferente, aparando suas unhas.” (JOYCE, 1992, p. 214). Portanto, a saída do autor intruso, na tradição flaubertiana da narrativa impessoal, como bem afirma Wayne C. Booth, não implica seu completo desaparecimento, pois ele continua presente como autor

implícito, responsável pela organização estrutural da obra e mantendo um grau de distanciamento em relação ao leitor, ao narrador, ao refletor e aos demais personagens. (BOOTH, 1961, p. 269-374)

No romance personativo, a imagem narra o próprio evento no “aqui” e “agora” da experiência do personagem. O narrador é a própria imagem e não o autor ou o personagem. Para Henry James, que se apresenta como grande seguidor da técnica flaubertiana, a arte do romance não é senão o jogo dramático da ficção e da realidade, da literatura e da vida (JAMES, 1984; EDEL, 1963; WELLEK, 1972, p. 202-225; JUNKES, 1997, p. 131-158). A arte do romance trabalha com a condensação e a dramaticidade da experiência humana. A vida no horizonte finito do tempo é a arte do romance de Henry James. O aqui e o agora da experiência finita são refletidos na consciência do personagem. O romance torna-se dramático ao trabalhar com a integridade da experiência humana: o sentimento, o pensamento e a vontade. A arte não descreve, mas dramatiza a experiência humana no horizonte finito do tempo. Os acontecimentos ou os impactos da existência são filtrados pela mente dos personagens e as suas impressões sensíveis são apresentadas ao leitor no instante mesmo em que ocorrem. A projeção dos sentimentos e pensamentos do personagem produz uma tensão dramática no romance. Importa a transformação existencial do personagem através das experiências concretas da vida. A arte do romance e a vida do personagem são construídas, reconstruídas e desconstruídas simultânea e paulatinamente. Na tensão da vida e da morte, a existência do romance e o romance da existência interagem continuamente.

A situação narrativa personativa, segundo Stanzel, no capítulo “The Figural Novel: The Ambassadors”, apresenta as seguintes feições características:

withdrawal of the author; predominance of scenic presentation; the reader‟s center of orientation fixed in the now-and-here of a novel figure or of an imaginary observer on the scene of the action; and the possibility of giving the epic preterite the imaginative value of the present. (STANZEL, 1971, p. 92)

Esta situação personativa implica a despersonalização, pois o “eu” se reconhece “outro”. A situação é mimética e patética, pois a apresentação é cênica (gestual, emocional e dramática). A arte do romance personativo é a representação cênica (Mimesis) do ser do personagem na experiência finita do tempo (MENDILOW, 1972; POUILLON, 1974; MEYERHOFF, 1976). Há o espelhamento da ação na consciência de um personagem que testemunha (eye-witness) os eventos, no momento mesmo em que ocorrem.

Conforme nos diz James Joyce, outro grande seguidor e radicalizador da técnica de Gustave Flaubert e Henry James, bem como inaugurador de uma poética não-aristotélica e de uma teoria da prosa epifânica e do efeito trágico, em seu romance Um Retrato do Artista quando Jovem, a mimesis personativa é o drama encenado de modo estático, e não cinético (Cf. CONNOLLY, 1962, p. 266-271; LEVIN, 1973; DE ANGELIS, 1989; SÁ, 1993, p. 168-192; ECO, 2000).

A emoção trágica é, na verdade, um rosto olhando em duas direções, a do terror e a da piedade, sendo ambas fases dela. [...] Quero dizer que a emoção trágica é estática. [...] O espírito é detido e elevado acima do desejo e do ódio. (JOYCE, 1992, p. 205)

Noutros termos, o drama estático é a suscitação trágica do que verdadeiramente existe na experiência finita do tempo. A apresentação cênica (ante oculos ponere) e o visualismo patético colocam o leitor diante do jogo dramático da existência, num espaço e tempo delimitados. Mostrar a experiência ao leitorenquanto esta se reflete na mundividência do personagem, eis a arte do romance contemporâneo. Portanto, a prosa epifânica não é simplesmente a revelação de uma alma (psicologia), mas, sobretudo, o des- velamento do sentido trágico da existência (ontologia). O drama não é de ação, mas de paixão: “A arte é a disposição humana de matéria sensível e inteligível para uma finalidade estética” (JOYCE, 1992, p. 207). O homem aprende pelo sofrer (pathei mathos), eis a fórmula esquiliana-joyceana da arte dramática.

A beleza expressa pelo artista não pode despertar em nós uma emoção que seja cinética ou uma sensação que seja meramente física. Desperta, ou deve despertar, ou induz, ou deve induzir, uma estase estética. (JOYCE, 1992, p. 206)

A situação personativa está marcada por uma forte ambiguidade. As imagens da ficção e da realidade, do mundo e do homem, da vida e da morte passam a ser intercambiantes e indistintas na experiência concreta do personagem. A plenitude do tempo mostra-se pontilhada pela finitude do ser. A experiência humana é, portanto, a experiência trágica da finitude do ser no tempo. Como veremos no capítulo 5, “O drama de paixão em O Risco do

Bordado”, na narrativa personativa de Autran Dourado, que incorpora também a estrutura da tragédia grega, pode-se afirmar, seguindo as palavras de Emmanuel Carneiro Leão, que “A tragédia não é uma condição simplesmente humana. É o ser da própria realidade” (LEÃO, 1991, p. 11).

A perspectiva interna ou temporal desta situação narrativa está, proustianamente, associada também com a percepção espacial (POULET, 1992). A modulação do ponto de vista provoca uma modulação do espaço. Deste modo, a narrativa personativa produz a perspectivação do real. A interação das pessoas e das coisas no espaço é perspectivada em vários ângulos. Abre-se um leque de perspectivas a partir do refletor narrativo. E a relação do tempo e do espaço, no romance personativo, pode ou não ser perspectivada. Na perspectiva interna, a representação da consciência dá-se pelo modo refletor que cria a imediaticidade do evento, isto é, a ilusão da mirada direta no pensamento e sentimento dos personagens. Os eventos narrados aparecem ao leitor no instante mesmo em que ocorrem. Enfim, o espelhamento dos acontecimentos na consciência de um ou vários personagens caracteriza em definitivo a situação narrativa personativa.

Com base nessas considerações acerca do perspectivismo narrativo e da arte dramática do romance personativo, propostas por Gustave Flaubert, Henry James e James Joyce, bem como na mundividência dionisíaca da tragédia grega e na revolução cervantina do romance moderno e barroco, interpretaremos a seguir a estrutura passional, lúdica e labiríntica da narrativa dramática O Risco do Bordado, de Autran Dourado.

No documento ROBSON ANDRÉ DA SILVA (páginas 81-86)