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A compreensão lúdica da linguagem

No documento ROBSON ANDRÉ DA SILVA (páginas 62-67)

I. HERMENÊUTICA, ARTE E JOGO COMO ESCRITA DA MORTE

2. ARTE, JOGO E LINGUAGEM EM HANS-GEORG GADAMER

2.2. A compreensão lúdica da linguagem

Hans-Georg Gadamer, seguindo os passos da reflexão heideggeriana

acerca da compreensão ontológica, elabora o conceito de jogo como instância hermenêutica de elucidação do modo de ser próprio da obra de arte. A relação do homem (Dasein) e do mundo (Ser) torna-se, então, a relação dialógica do intérprete e do texto. Em ambos os casos, o homem (intérprete ou jogador) não é o sujeito da compreensão do mundo (texto), mas sim o próprio jogo em seu movimento de velamento e desvelamento. No jogo da compreensão do

mundo ou do texto, quem comanda é a própria verdade lúdica do ser. Assim, pode-se afirmar que o homem (intérprete) sofre o apelo do ser (jogo) ao exercer a leitura do mundo (texto). O Dasein não é o sujeito do ser, mas, ao contrário, o ser enquanto desvelamento autovelante é o sujeito do Dasein. O ser, assim como o texto, tem uma estrutura apelativa com relação ao homem. Deste modo, somente correspondendo à verdade do ser (texto) pode o homem existir (interpretar) concretamente no horizonte do tempo. Verdade do Ser e Verdade da Arte mutuamente se implicam na hermenêutica heideggeriana e na gadameriana.

A verdade do ser, a existência do Dasein, o acontecimento da linguagem constituem, portanto, para Gadamer, a própria experiência lúdica da obra de arte, ou seja, o movimento lúdico que medeia entre o texto e o intérprete. O Dasein (intérprete) é jogado pelo ser-no-mundo (texto). O homem é atraído pelo mundo do texto e passa a participar do seu espaço de representação. O homem (intérprete, jogador, autor, leitor, espectador) é jogado pelo jogo do mundo (texto, campo, obra, teatro) e, nesse sentido, é sempre uma estrutura implícita ao jogo. Logo, ler ou compreender o mundo (texto) é desde já ser lido ou compreendido por ele. Não é a subjetividade que comanda a compreensão da verdade do ser, afirma Heidegger. Também não é a subjetividade que comanda a compreensão da verdade da arte, afirma Gadamer. Com efeito, o jogo da compreensão e o jogo da arte são um e o mesmo no processo de desvelamento da verdade a que corresponde o homem (Dasein, intérprete, jogador), não enquanto sujeito, mas enquanto abertura ou projeto do ser.

A experiência hermenêutica da compreensão, segundo Gadamer, é a interação lúdica do homem e do mundo, do ser e do saber, do sujeito e do objeto, do texto e do intérprete no horizonte da linguagem (GADAMER, 1997, Terceira Parte: A virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem, cap. 1, p. 559-589 e cap. 3, p. 639-709). Assim, a existência é um diálogo incessante acerca da verdade. Porém, a verdade não está previamente estabelecida, não é a concordância do sujeito ao objeto nem a subjetividade imperial. A verdade é o desvelamento (Alétheia) do ser na

linguagem. O homem não domina a verdade do ser, mas, misteriosamente, é dominado por ela.

Quando compreendemos um texto, estabelecemos um diálogo com a tradição. O texto nos fala em sua verdade ou sentido e, assim, correspondendo, participamos de um sentido comunitário e nos deixamos ser modificados por ele. Enriquecemos nosso horizonte de compreensão sofrendo a experiência do ser na linguagem e da linguagem do ser. O mundo (texto) da vida apresenta-se a nós como infinitamente interpretável. A leitura do mundo torna-se, simultaneamente, a escritura do nosso ser no horizonte finito do tempo. Toda leitura compreensiva se dá numa estrutura circular ontológica, conforme nos mostrou Heidegger. Em qualquer parte que se encontre, a compreensão é guiada pela totalidade de sentido que o texto representa. Somente na mediação da parte e do todo configura-se a representação do sentido, ou seja, compreender é ser jogado pelo movimento lúdico de desvelamento da verdade. A representação é o modo de ser do próprio jogo da compreensão. Por isso, colocamos sempre em risco o nosso ser quando verdadeiramente interpretamos. Compreender é, pois, a encenação dramática da própria existência no horizonte finito do tempo. O homem sofre a experiência do ser, mais do que age. Noutros termos, ler é sofrer o impacto do ser na fusão de horizontes do passado e do presente.

O fenômeno da interpretação não é senão o acontecimento ou desvelamento da verdade do ser na dimensão originária da linguagem. Gadamer, assim, enuncia: “O ser que pode ser compreendido é linguagem” (Sein, das verstanden werden kann, ist Sprache) (GADAMER, 1997, p. 687, itálicos do autor). Não só a arte e a história, mas também a existência humana é representação do sentido na linguagem.

A linguagem não pertence ao homem, mas à própria realidade processual da existência no mundo. No jogo linguístico da existência, experimentamos a união dos contrários, do passado e do presente, do ser e do saber, do homem e do mundo, do texto e do intérprete, da vida e da morte. A experiência humana é a da finitude do ser como possibilidade da

compreensão. Deste modo, Gadamer afirma que a própria realidade já de si é o acontecer da linguagem. O real nunca é estático, mas um tecido de relações ou um contínuo diálogo do homem e do mundo.

Não se pode falar de um jogo com a linguagem, mas “do jogo da própria linguagem, que nos interpela, propõe e se recolhe, que pergunta e que se consuma a si mesmo na resposta” (von dem Spiel der Sprache selbst, die uns

anspricht, vorschlägt und zurückzieht, fragt und in der Antwort sich selbst erfüllt) (GADAMER, 1997, p. 708, itálico nosso). O jogo da linguagem é a

própria verdade da compreensão. Nesse jogo, afirma Gadamer, o jogador não se comporta subjetivamente como se estivesse frente a um objeto, pois “é, antes, o próprio jogo o que joga, na medida em que inclui em si os jogadores e se converte desse modo no verdadeiro subjectum do movimento lúdico” (das

Spiel es ist, das spielt, indem es die Spieler in sich einbezieht und so selber das eigentliche subjectum der Spielbewegung wird) (Idem, itálico do autor).

Por conseguinte, a compreensão ontológica revela que o homem (Dasein) é jogado pelo jogo da linguagem enquanto verdade desvelante auto-velante do próprio ser. O jogo originário do Ser é o símbolo do mundo no qual o homem está inserido e ao qual corresponde existindo.

O jogo circular da compreensão da parte e do todo ou do homem e do mundo é o próprio acontecimento da linguagem do ser (Cf. GADAMER, 2002, Sobre o círculo da compreensão (1959), p. 72-81; Idem, Linguagem e compreensão (1970), p. 216-233). Na e através da linguagem o homem compreende o ser e, ao mesmo tempo, autocompreende-se (Cf. GADAMER, 2002, Sobre a problemática da autocompreensão (1961), p. 145-159; Idem, Homem e linguagem (1966), p. 173-182). Sem dúvida, a existência é o jogo originário de iluminação e encobrimento do ser, e nunca a confirmação da subjetividade do ente. O homem não é senão enquanto devém. Noutras palavras, a existência humana não é a identidade do sujeito, mas a possibilidade lúdica do ser.

Portanto, não nos resta senão reafirmar que a grande contribuição da hermenêutica de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer foi mostrar que

somente o diálogo lúdico ou concriativo da compreensão da verdade e da linguagem do ser caracteriza a existência concreta do homem. Deste modo, a arte, a história e a linguagem apresentam-se como o sério jogo de desvelamento da verdade ao qual correspondemos como jogadores ou intérpretes.

Com base nessas considerações, mostraremos a seguir como a verdade originária e lúdica da arte, ou seja, a mundividência dionisíaca da tragédia grega nos possibilitará a compreensão de uma escrita da morte na narrativa dramática O Risco do Bordado, de Autran Dourado.

3. A ARTE DRAMÁTICA, A VISÃO DIONISÍACA E A ESCRITA DA MORTE

No documento ROBSON ANDRÉ DA SILVA (páginas 62-67)