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4.3 VETORES PARA A CONCRETIZAÇÃO DA NORMA MAIS FAVORÁVEL

4.3.1 A necessidade de conhecimento da posição dos intérpretes internacionais

Como a aplicação do princípio da primazia da norma mais favorável proíbe que uma determinada norma de direitos humanos seja interpretada de forma menos favorável aos

standards já estabelecidos de proteção do direito em análise, nada mais importante do que

conhecer os standards já existentes e as circunstâncias nas quais foram identificados.

35 Vale salientar que tanto a demarcação como a desapropriação foram elencadas pela Comissão sobre a Questão

Indígena em Mato Grosso do Sul como alternativas possíveis para a resolução dos conflitos agrários entre índios e proprietários rurais naquele Estado, conforme noticiou a Ministra Cármen Lúcia, no voto que proferiu no julgamento do RMS 29.087 (2014). Essa Comissão, notadamente heterogênea, para representar todos os interesses pautados, foi instituída pelo então Presidente do Conselho Nacional de Justiça, Ministro Cezar Peluso, pela Portaria n. 60, de 30 de junho de 2011 (modificada pelas Portarias ns. 53 e 71/2013), sendo formada por membros do Comitê Executivo Nacional do Fórum de Assuntos Fundiários, da Advocacia-Geral da União, do Ministério Público Federal, da Fundação Nacional do Índio, do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, representantes das comunidades indígenas e dos proprietários rurais da região, além de estudiosos de reconhecida competência sobre a questão indigenista no Mato Grosso do Sul.

Nessa tarefa, torna-se fundamental o conhecimento da posição dos intérpretes internacionais de direitos humanos, nomenclatura na qual se inserem as cortes internacionais dos sistemas regionais africano, europeu e interamericano36, o Tribunal Penal Internacional – TPI37, os comitês de monitoramento criados por tratados internacionais38 e outros órgãos de monitoramento do sistema universal da ONU, a exemplo do Conselho de Direitos Humanos39. Conhecer o entendimento desses intérpretes internacionais torna-se imprescindível à definição da norma mais favorável, tendo em vista que, geralmente, os parâmetros mais elevados de proteção de direitos humanos são consolidados no âmbito desses sistemas internacionais, a partir das melhores experiências (best practices) apresentadas pelos Estados nos relatórios que enviam e nas vistorias a que são submetidos. Na realidade, não só são destacadas as melhores práticas a serem perseguidas e reproduzidas, como também são estabelecidos os parâmetros mínimos de proteção para qualquer Estado. Nesse sentido, ensina Maia (2004, p. 137/138) que:

Os sistema internacionais funcionam baseados fortemente na cooperação recíproca entre os membros da sociedade internacional – Estados, organizações internacionais etc. (...) Esses sistemas cumprem como funções principais as de definir parâmetros mínimos de direitos humanos a serem observados pelos Estados, e de realizar o monitoramento da observância daqueles parâmetros. Além disso, cumprem a função educativa de difundir tais parâmetros, mediante realização de conferências, seminários, e promoção de cursos.

O conhecimento da posição dos intérpretes internacionais no que tange à interpretação dos direitos humanos impõe-se como uma medida essencial não só para a definição da norma mais favorável no caso concreto, mas também para resguardar os Estados

36 No sistema regional africano, temos a Corte Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, instalada em

Arusha (Tanzânia). No europeu, a Corte Europeia de Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo (França). Já no sistema interamericano, temos a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em San José (Costa Rica). No sistema universal, não há ainda uma Corte Internacional de Direitos Humanos. Nesse sentido, com base no art. 34.1 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (Só os Estados poderão ser partes em questão perante a Corte), André de Carvalho Ramos explica que “A Corte Internacional de Justiça (principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas) possui papel secundário na proteção de direitos humanos, uma vez que sua jurisdição contenciosa só se aplica a Estados (quer como autores ou como réus)” (2016, p. 161).

37 O TPI não se confunde com uma Corte Internacional de Direitos Humanos, mas contribui para a

jurisprudência internacional de direitos humanos, na medida em que, julgando os mais graves crimes internacionais, analisa a responsabilidade internacional do indivíduo por violações a direitos humanos.

38 Os comitês de monitoramento exercem relevante função interpretativa internacional dos direitos humanos, ao

desempenharem suas competências, que podem incluir as atividades de análise de relatórios dos Estados, elaboração de comentários gerais e análise de petições individuais.

39 O Conselho de Direitos Humanos da ONU foi criado em 2006, no lugar da antiga Comissão da ONU em

Direitos Humanos. É integrado por quarenta e sete Estados e vinculado à Assembleia Geral da ONU. É o órgão incumbido de analisar a situação de respeito aos direitos humanos nos Estados, através do mecanismo de Revisão Periódica Universal (RPU), fundado no “peer review” – monitoramento pelos pares. A RPU funciona em ciclos, que se reiniciam após a avaliação de todos os Estados. Maiores informações podem ser colhidas no endereço eletrônico: <http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/Pages/AboutCouncil.aspx>.

da responsabilização internacional, eis que, “no DIDH, os processos internacionais de direitos humanos geram a interpretação internacionalista desses direitos, o que impede que os Estados deixem de cumprir suas obrigações internacionais por intermédio de uma interpretação nacional peculiar e divergente” (RAMOS, 2016, p. 70). Dessa forma, “desvincular o texto do tratado da interpretação dada pelos órgãos internacionais significa correr o risco da adoção de interpretação divergente, implicando a violação de direitos protegidos (sob a ótica internacional)” (RAMOS, 2016, p. 330).

Nesse aspecto, não se pode deixar de mencionar que a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados (CVTDE), de 1969, ratificada e incorporada pelo Brasil em 2009, dispõe que um Estado não pode invocar as disposições de seu Direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado, salvo na hipótese de violação manifesta a norma de Direito interno de importância fundamental sobre competência para concluir tratados (artigos 27 e 46).

A CVDTE estabelece diversas regras sobre a interpretação dos tratados e constitui a orientação básica para a doutrina e a jurisprudência internacional de direitos humanos. Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já assinalou que “los criterios de interpretación consagrados en la Convención de Viena sobre el Derecho de los Tratados pueden considerarse reglas de derecho internacional sobre el tema” (CIDH, Parecer Consultivo n. 3, de 8 de setembro de 1983, parágrafo 48).

Dessa forma, o conhecimento da posição dos intérpretes internacionais no que tange à interpretação dos direitos humanos impõe-se como um pressuposto à tarefa de definir a norma mais favorável no caso concreto, na medida em que, na jurisprudência internacional, são definidos os standards mínimos – os quais, no plano doméstico, só podem ser majorados – de proteção de direitos humanos. Ao mesmo tempo, constitui medida essencial para resguardar os Estados da responsabilização internacional.

Nesse aspecto, em matéria de reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas, é fundamental saber que, no Caso da Comunidade Mayagna Awas Tingni vs. Nicarágua (2001), que constituiu um leading case sobre o direito da propriedade comunal de terras ancestrais pelos membros de comunidades indígenas, a CIDH assinalou que, para os membros dessas comunidades, a relação com suas terras não se esgota em uma simples questão de posse e produção, mas constitui um elemento material e espiritual básico de sua cultura, essencial para a preservação de seu legado e para a transmissão para as gerações futuras. Nesse aspecto, a questão da propriedade das terras ancestrais assume uma importância fundamental, inclusive para a preservação do direito à

vida em sentido amplo, abarcando as condições de uma vida digna e a necessária preservação da identidade cultural (BURGORGUE-LARSEN; TORRES, 2008, p. 549).

Seguindo tal entendimento de que a noção indígena de posse não corresponde necessariamente à concepção clássica, a CIDH, no Caso da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay (2006), interpretando o art. 21 da Convenção Americana à luz da Convenção nº 169 da OIT, formou o entendimento de que enquanto o vínculo espiritual e material da identidade dos povos indígenas continuar existente em relação às suas terras tradicionais, subsiste o direito desses povos à recuperação de suas terras (CIDH, 2006, parágrafo 131).

Além disso, na apreciação do Caso da Comunidade Moiwana vs. Suriname (2005), a CIDH também interpretou o direito à livre circulação previsto no art. 22 da CADH no sentido de nele incluir o direito aos membros de povos indígenas de retornar às suas terras ancestrais (BURGORGUE-LARSEN; TORRES, 2008, p. 547).

Dessa forma, a exigência formulada pelo STF através da fixação da condicionante do marco temporal – no sentido de só poder reconhecer como terras indígenas as efetivamente ocupadas no momento de promulgação da Constituição de 1988 ou as que estivessem em conflito possessório com não-índios àquela data – não se coaduna com os standards de proteção aos direitos indígenas já reconhecidos no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, apontando para um desrespeito ao princípio da primazia da norma mais favorável.