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A definição da norma mais favorável à proteção de direitos humanos no caso concreto é uma atividade de concretização normativa, ou seja, criativa de direito, e não simplesmente declaratória. Baseia-se tal assertiva na concepção estruturante do direito de Friedrich Müller, que, rompendo com a matriz positivo-legalista, dissocia texto e norma, apontando o “significado apenas indicativo do texto normativo para o sentido jurídico decisivo dessa norma, ou seja, para o teor de validade da disposição concretizada no caso particular” (MÜLLER, 2009, p. 198).

Consoante Müller, “o texto normativo é geralmente o primeiro ponto de partida e ponto de referência da concretização” (2009, p. 205). Nesse sentido, o teor literal de uma prescrição juspositiva é apenas um dos elementos no processo de concretização da norma; um elemento de importância notável, porque “dirige e limita as possibilidades legítimas e legais da concretização materialmente determinada do direito no âmbito do seu quadro”, mas que “não contém a normatividade e sua estrutura material concreta” (MÜLLER, 2010, p. 57). O texto normativo possui apenas positividade, mas não a normatividade de que é dotada a “decisão regulamentadora do caso”, tomada “conforme o fio condutor da formulação linguística dessa norma (constitucional) e com outros meios metódicos auxiliares da concretização” (MÜLLER, 2010, p. 55).

O direito consuetudinário, de cuja qualidade jurídica não se duvida, evidencia “a não identidade de norma e texto da norma, a não vinculação da normatividade a um teor literal fixado e publicado com autoridade” (MÜLLER, 2010, p. 55). Contudo, tal dissociação pode ser constatada em qualquer sistema jurídico, ainda que fundado no teor positivo, pois não se pode negar que as normas de decisão sofrem influências sociais tão determinantes quanto as das disposições textuais.

Portanto, a norma não é um comando pronto, preestabelecido na lei, como afirmava o positivismo científico-jurídico rigoroso, ao tratar o texto da norma como premissa maior e subsumir “as circunstâncias reais a serem avaliadas aparentemente de forma lógica ao caminho do silogismo” (MÜLLER, 2009, p. 192). Não é o texto normativo que regula o caso, mas a norma de decisão oriunda de um processo de concretização intimamente ligado à

realidade, no qual são levados em consideração um conjunto de elementos muito além da disposição positivada e não inerentes a ela.

A norma só obtém normatividade concreta quando aplicada a um determinado caso particular (MÜLLER, 2009, p. 197), pois, somente neste momento, encontra seu sentido último. É claramente perceptível, assim, a vinculação da norma ao substrato fático do caso a que se destina a solucionar.

Sob esse enfoque, afirma Roberto Barroso que as proposições normativas da Constituição não podem ser analisadas sem que sejam considerados os fatos concretos da vida, pois “não será possível determinar a vontade constitucional sem verificar as possibilidades de sentido decorrentes dos fatos subjacentes” (BARROSO, 2011, p. 310). A

correta aplicação do direito, portanto, concretiza o sentido da proposição normativa dentro das condições reais vigentes. Nesse sentido, leciona Barroso (2012, p. 216-217) que:

[...] na moderna dogmática jurídica, os fatos, a natureza dos problemas e as consequências práticas das soluções preconizadas desempenham papel de crescente importância na interpretação constitucional. Já não corresponde mais às demandas atuais uma interpretação asséptica e distanciada da vida real, fundada apenas no relato da norma.

Na estruturação proposta por Müller, a norma é um modelo materialmente estruturado em programa da norma e âmbito da norma. O teor literal expressa o programa da norma, a ordem jurídica, conforme tradicionalmente compreendida. E, em mesmo nível hierárquico, pertence também à norma “o âmbito da norma (ou domínio da norma), isto é, o recorte da realidade social na sua estrutura básica, que o programa da norma „escolheu‟ para si ou em parte criou para si como seu âmbito de regulamentação” (MÜLLER, 2010, p. 57/58). Ao mesmo tempo em que o âmbito normativo é escolhido ou criado pelo programa da norma, a delimitação deste passa inevitavelmente pela observação dos dados apresentados no caso, que farão com que “a análise do âmbito normativo, como parte integrante da concretização jurídica, fortaleça a normatividade da disposição legal como uma normatividade marcada pelos dados reais” (MÜLLER, 2009, p. 245). Há uma conformação mútua, denotando que “também na metódica estruturante emerge o círculo hermenêutico” (2009, p. 246), pois, “na legislação, as estruturas do âmbito normativo co-determinam a formulação lingüisica do programa normativo, que a partir daí passa a marcá-las” (2009, p. 246).

A realidade do caso se faz presente já na delimitação do programa da norma, assim como constitui, por excelência, o dado elementar do âmbito normativo. Por meio desta

concepção criadora e construtiva da norma, os aspectos da realidade (dados reais) são elementos integrantes da estrutura normativa, e não simplesmente externos à norma. Com isso, conclui-se que a norma jurídica é um modelo de ordem materialmente caracterizado; a “norma concreta de decisão, como ordenamento parcial concretizado, é elaborada como fator da justiça material somente no caso particular e por meio de sua ligação a ele” (MÜLLER, 2009, p. 263), de forma que:

Não é possível descolar a norma jurídica do caso jurídico por ela regulamentado nem o caso da norma. Ambos fornecem de modo distinto, mas complementar, os elementos necessários à decisão jurídica. Cada questão jurídica entra em cena na forma de um caso real ou fictício. Toda e qualquer norma somente faz sentido com vistas a um caso a ser (co)solucionado por ela (MÜLLER, 2010, p. 63).

Retrabalhando a distinção entre texto e norma posta por Friedrich Müller, Eros Roberto Grau, afirma que: “O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo” (2009, p. 27). Aliás, explicando o processo de concretização do direito, com base nos ensinamentos do jurista alemão, assim discorre o ex- Ministro do STF (GRAU, 2009, p. 29):

O fato é que a norma é construída, pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do direito. O texto, preceito jurídico, é, como diz Friedrich Müller, matéria que precisa ser “trabalhada”.

Partindo do texto da norma (e dos fatos), alcançamos a norma jurídica, para então caminharmos até a norma de decisão, aquela que confere solução ao caso. Somente então se dá a concretização do direito. Concretizá-lo é produzir normas jurídicas gerais nos quadros de solução de casos determinados [Müller].

Disso resulta que é na tarefa de solucionar casos concretos que reside a prerrogativa de criar e reformular as normas jurídicas, que estão em elaboração permanente nos órgãos incumbidos da aplicação do direito. O órgão aplicador do direito, portanto, a partir de um enunciado textual e de outros elementos diversos, concretiza a norma jurídica, e não simplesmente revela conteúdo nele preexistente.

Concretizar não é (re)produzir valorações legislativas (MÜLLER, 2010, p. 66). A aplicação do direito exige muito mais que a identificação de soluções preexistentes nos textos legais. O próprio conceito de interpretação, portanto, é reavaliado, pois “a distinção fundamental entre texto normativo e norma impede o intérprete de limitar-se à „interpretação‟, assim como ao desdobramento puramente filológico do texto” (MÜLLER, 2009, p. 201).

O processo de concretização, na metódica estruturante de Müller, envolve verdadeira integração entre texto normativo e dados reais e é composto de elementos de concretização,

entre os quais “a interpretação do teor literal da norma é um dos elementos mais importantes no processo da concretização, mas somente um elemento” (MÜLLER, 2010, p. 62).

Por isso, sugere a maior adequação do termo concretização, em vez do termo interpretação, para designar a tarefa prática do jurista. As normas, na sua concepção, não carecem simplesmente de ser interpretadas, por não serem unívocas, evidentes ou por serem destituídas de clareza; carecem de concretização, porque devem ser aplicadas para solucionar um caso real ou fictício (MÜLLER, 2010, p. 62). De outra banda, as competências constitucionalmente delineadas aos órgãos jurisdicionais não são competências para a explicação de textos legais, mas sim competências para a efetiva concretização jurídica, para a resolução de casos concretos (MÜLLER, 2010, p. 66).

4.2 AS INSUFICIÊNCIAS DO PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA NORMA MAIS