• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2. A malária em Portugal e nas colónias portuguesas

2.2. A malária nas colónias portuguesas

2.2.2. A necessidade de formação especializada em Medicina Tropical

A reorganização dos serviços de saúde das províncias ultramarinas em 1919, sob a tutela da Direcção de Saúde do Ministério das Colónias, alterando o seu carácter até então exclusivamente militar, levou à constituição dos quadros sanitários em todos os territórios470. A necessidade de assistência ao indígena foi reconhecida pelo governo da metrópole e regulamentada como parte integrante do projecto de ocupação sanitária e científica. Os serviços de saúde provinciais passaram formalmente a ter a seu cargo a criação de escolas de enfermagem e, de forma continuada, a assistência aos nativos e aos colonos, o saneamento das povoações, o estudo e o combate às doenças endémicas e epidémicas, e a fiscalização sanitária471. Aos chefes de serviço foi atribuído o estudo da aclimatação, da colonização, da etnografia, da climatologia, da investigação bacteriológica e parasitológica, e a organização de missões de combate às doenças endémicas472. Foi pela primeira vez contemplada a instituição de laboratórios, um ou mais, nos serviços de saúde de todas as colónias, para a realização de análises de diversas naturezas – químicas, bromatológicas, toxicológicas, bacteriológicas e parasitológicas – de modo a satisfazer as necessidades clínicas e a permitir a realização de trabalhos de investigação científica. Além dos laboratórios, as delegações de saúde passariam a dispor de um microscópio e de reagentes químicos que permitissem a realização das observações necessárias ao diagnóstico clínico473.

Cabia a cada província regulamentar os seus serviços e, com base nesta reorganização, os regulamentos sanitários foram publicados nas colónias ao longo de 1920474.

Havia nas colónias tropicais dois contextos distintos a considerar no combate à malária: as cidades e centros urbanos, e as zonas rurais475. Nos aglomerados populacionais, a prevenção da 467 ibid. 468 ibid. 469 ibid. 470

Dec. Lei nº 5:727, DG, 98/19 Série I, 11º Supl., 10/5/1919; Ferreira, An. Inst. Med. Trop., Vol. 15, Sup. 2 (1958): 5-8, p. 5.

471

Ferreira, op. cit. (470).

472

Dec. Lei op. cit. (470); Ferreira, op. cit. (470), p. 5-6.

473

Dec. Lei op. cit. (470).

474

malária apresentava maior possibilidade de sucesso, devido à presença das autoridades sanitárias e administrativas, e de médicos coloniais; ao maior número de europeus, considerados mais cultos e inteligentes, e mais facilmente instruíveis; e mais infra-estruturas de apoio, como hospitais e laboratórios, que aumentavam o potencial de sucesso de intervenções sanitárias. Inversamente, naszonas rurais e de interior, o número de europeus era consideravelmente inferior, a presença de médicos era escassa ou rara, os aglomerados habitacionais eram tradicionalmente dispersos e “anti-higiénicos”, e os indígenas, relutantes em abandonar práticas e mitos seculares, eram muito resistentes às prescrições médicas e à prática de qualquer medida preventiva. As condições para uma prevenção eficaz eram adversas e os resultados não corresponderiam àqueles que eram cientificamente esperados476. A resistência dos nativos à sanitarização e às medidas sanitárias nas colónias constituía uma adversidade em Angola, em Moçambique, em S. Tomé e Príncipe, na Guiné e em Timor. Até mesmo na Índia Portuguesa, onde o grau de civilização dos indígenas era considerado superior ao de qualquer outra colónia, as intervenções sanitárias tinham que ser impostas pelas autoridades para se obterem bons resultados477.

Cada colónia tinha condições específicas que impunham a adaptação das políticas de prevenção a uma fórmula de base que não poderia ser igualmente aplicada em todas as regiões. As dificuldades resultantes das diferenças ambientais, económicas e socioculturais de cada território, como o clima, a hidrografia e a altimetria do terreno, o nível de instrução das populações e as populações nómadas, teriam que ser superadas lentamente, com adaptações graduais e especificas a cada lugar478.

Ao longo dos anos, clínicos, sanitaristas e autoridades foram exaltando a importância da especialização em medicina tropical. As especificidades da luta anti-malárica requeriam especialistas em entomologia e em parasitologia preparados para agir no terreno e no laboratório. Eram os médicos com o curso de Medicina Tropical que estavam habilitados a definir estratégias de higiene e de saneamento para enfrentar as doenças tropicais, para formar brigadas sanitárias anti-maláricas e para dirigir as campanhas de combate das endemias e epidemias de cada região dos trópicos.

No âmbito da reorganização dos serviços de saúde coloniais, o governo da metrópole abriu concurso para preencher quarenta e seis vagas dos quadros de saúde coloniais em Outubro de 1919479. A metrópole facilitava a colocação dos médicos habilitados com o curso da Escola de 475 op. cit. (381). 476 op. cit. (381), p. 439-440. 477 op. cit. (381), p. 440. 478 ibid. 479

Medicina Tropical, promovendo a sua entrada directa no quadro de saúde colonial “sem outras formalidades”480, mas os médicos formados pela Escola de Medicina Tropical não eram ainda suficientes para ocupação dos lugares disponíveis e mantinha-se a dificuldade em preenchê-los481. Para efectivar a reorganização dos serviços de saúde das colónias, para a qual interessava o preenchimento de vagas, a especialização e o alargamento dos quadros de saúde coloniais, a metrópole emitiu legislação no sentido da nomeação de médicos provisórios sem o curso da Escola de Medicina Tropical482, que deveriam completá-lo entretanto. Estes médicos eram subsidiados pelas colónias para a especialização na EMT de Lisboa ou no estrangeiro de modo a inovar e melhorar a qualidade dos serviços médicos e as condições disponíveis para os clínicos das colónias, por conta da respectiva colónia483.

Apesar da legislação e das práticas de estudo e combate à malária, o discurso manteve-se ao longo das décadas posteriores (anos 1920 e 1930) no que dizia respeito à necessidade de implementar o estudo e o combate à malária nas várias colónias, com referências à falta de existência de organismos ou serviços especialmente dedicados à luta anti-malárica e fazia supor que tais mecanismos não eram postos em prática484.

O congresso internacional de Medicina Tropical de África Ocidental, organizado por Damas Mora e realizado em Luanda, em 1923, veio reforçar a necessidade de políticas de combate às endemias e valorizar a assistência aos indígenas, promovendo em simultâneo a troca de ideias sobre assuntos que interessassem à saúde e à higiene das povoações europeias nas colónias485.

No contexto da prevenção, tratamento e combate da malária, o congresso emitiu dois votos específicos486. O primeiro dizia respeito à profilaxia química, sugerindo o incentivo à pesquisa de químicos sintéticos, alternativos ao quinino por parte dos governos coloniais, bem como a investigação agronómica de espécies de quinquina aclimatizada. O segundo voto propunha a intensificação da profilaxia anti-malárica por parte dos governos interessados, visando o parasita, o vector e a educação popular487. De forma genérica, o congresso apelou às autoridades governamentais para a realização de acordos sanitários particulares entre colónias vizinhas e a

480

Dec. Lei, op. cit. (470).

481

op. cit. (479); (Não especificado), (24/06/1920), Bol. Of. Gov. Prov. Timor, 28/08/1920.

482

op. cit. (479); op. cit. (481).

483

Decreto n.º 6:998, DG, n.º 198, Série I, 04/10/1920.

484

Feio, An. Inst. Med. Trop., Vol 15, Sup. 2 (1958): 101-13.

485

Prates, Barradas, Rev. Méd. Angola, 1º Cong. Med. Trop. África Ocidental, Vol III, nº 4 (1923): 395-404, p. 395.

486

“Votos do Congresso”, Rev. Méd. Angola, 1º Cong. Med. Trop. África Ocidental, Vol. V, nº 4 (1923): 349-355, p. 353.

487

comunicação de qualquer informação que pudesse ser do interesse da higiene internacional pelas vias mais rápidas em caso de necessidade488.

488