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Capítulo 1. A malária e a medicina tropical europeia na transição do século XIX para o

1.2. Malária, uma doença tropical?

No final do século XIX, a malária endémica encontrava-se distribuída pelos cinco continentes. Quando Laveran identificou, pela primeira vez, o parasita causador desta doença em 1880 e quando Ronald Ross e Battista Grassi revelaram a sua forma de transmissão em 1897 e 1898, a malária era uma doença global e não uma doença específica dos climas quentes ou tropicais. No Tratado do Paludismo publicado em 1898, Laveran enumerou as regiões geográficas pelas quais a malária estava distribuída65. A doença prevalecia nalgumas regiões da Europa, entre as quais o sul de França, Hungria, Bulgária, Roménia, o sul da Rússia, Grécia, Itália, Portugal e Espanha. Na Ásia, o paludismo assumia maior importância na Palestina, na Mesopotâmia, no Golfo Pérsico, no Afeganistão, na Índia, na costa sul da China, em Hong-Kong e em Macau66. África era o “império do paludismo”, onde a endemia grassava com intensidade, quer nas regiões subtropicais do Norte do continente, como a Argélia, a Tunísia, Marrocos, Líbia e Egipto, quer nas regiões subsarianas, ao longo da costa Ocidental – Senegal, Gâmbia, Congo e ilhas Canárias – da costa Este – Madagáscar, Maiote, Zanzibar, Zambézia, Ilhas Maurícias, Ilha Rodrigues e Reunião – e nas regiões próximas dos lagos do interior do continente – Niassa, Vitória, Tanganica e Chade. A malária era comum na América do Norte, particularmente na costa da Carolina do Norte, na Pensilvânia e no Estado de Nova Jersey, nas proximidades dos rios do Novo México – Flórida, Geórgia, Alabama, Luisiana e Texas – e no delta do Mississípi. Na costa Leste, a Califórnia era a região mais afectada. O México, a Guatemala, Honduras, Panamá e Ilhas Antilhas estavam bastante atingidos pela malária. Na América do Sul, os principais focos eram constituídos pela Guiana, as Costas da Venezuela e da Colômbia, a Bolívia, Brasil, Peru e Argentina. Na Oceânia, as Ilhas da Malásia, de Java, da Sumatra, de Bornéu, das Molucas, das Filipinas e Batávia (actual Jacarta) constituíam regiões de grande intensidade malárica.

Recentemente, Randall M. Packard estabeleceu uma relação entre a evolução da doença e a sua deslocação geográfica em função do desenvolvimento socioeconómico das regiões onde a malária se manifestou ao longo dos tempos, abrangendo territórios distintos dos vários continentes em

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op. cit. (17), 38; Snowden, op. cit. (63), min 2-3.

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op. cit. (6), p 2-21.

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latitudes bastante diversificadas67. Este autor defende a conversão da malária numa doença tropical com base em aspectos socioeconómicos dos territórios tropicais ocupados pelas potências europeias. Na sua opinião, enquanto a malária desapareceu da Europa como consequência da melhoria das condições económicas, sociais e agrícolas das regiões do Norte, particularmente da Grã-Bretanha, da Holanda e de França, a doença tornou-se um problema em África como resultado da pressão das potências coloniais sobre as populações indígenas. A intensificação da agricultura sem preocupações com a saúde dos trabalhadores promoveu uma maior exposição à doença: a deslocação de populações não imunes das regiões montanhosas, livres de malária, para regiões de planície, onde a doença grassava com intensidade, e a criação de condições favoráveis ao desenvolvimento de mosquitos, contribuiu para a expansão da infecção e dos parasitas da doença. Nesta perspectiva, teria sido a ausência de preocupações de natureza social com esta enfermidade que converteu a malária numa doença de parasitas e de mosquitos68. Adicionalmente, na opinião de Michael Worboys a transformação da malária numa doença tropical não foi uma simples consequência do declínio da sua incidência na Grã-Bretanha e na Europa, deveu-se antes à re- designação de uma doença que tinha sido central nos discursos zimóticos, nos quais as doenças eram explicadas pelas existência de miasmas e de fermentos contaminantes, e dos germes, entre os anos 1840 e os anos 189069. Esta alteração ocorreu no contexto da emergência da medicina tropical e da implementação das políticas médicas imperiais70. Assim, na agenda do imperialismo europeu do século XIX, a “conversão” da malária em doença tropical parece estar associada à disputa das nações imperiais pelos territórios ocupados pelos europeus, e, consequentemente, à disputa pelo conhecimento cientifico associado à etiologia e ao combate à malária, no âmbito da Medicina Tropical.

A “corrida para África” pelas nações coloniais europeias – britânica, belga, alemã e francesa – forçou a afirmação da expansão colonial portuguesa naquele continente, cuja presença data desde os Descobrimentos71.

O Acto Geral de Berlim, resultante da conferência de 1884/1885 nesta cidade, determinou a ocupação efectiva, militar e civil, do território africano partilhado pelas potências europeias e forçou Portugal a apresentar um projecto imperial para África, dada a sua dispersão territorial. Este projecto, reflectido num mapa em que os domínios reclamados estavam coloridos a cor-de-rosa, compreendia o vasto território de Angola até Moçambique, incluindo o que hoje são a Zâmbia, o Zimbabué e o Maláui, e permitiria a Portugal recuperar a grandeza imperial que havia perdido em 1822 com a independência do Brasil. Contudo, o “Mapa Cor-de-Rosa” apresentado em 1887 67 op. cit. (3). 68 op. cit. (3), p. 65, 84-110. 69 op. cit. (35), p. 199. 70 ibid. 71

colidia com o projecto imperial britânico e em resposta às expedições militares portuguesas pelo interior de África, Inglaterra apresentou um Ultimatum em 1890, exigindo a retirada das tropas portuguesas daquele território. O Ultimatum inglês assinalou o início do IIIº Império Colonial Português, forçando Portugal a consolidar os seus domínios ultramarinos e a assegurar os territórios mais disputados pelos outros impérios europeus – Angola, Moçambique, Guiné-Bissau. No entanto, e apesar da garantia dada pela Grã-Bretanha sobre os domínios portugueses, as pretensões estrangeiras sobre as colónias portuguesas mantiveram-se até à Iª Guerra Mundial, deixando o império português em situação de instabilidade e de grande fragilidade política72.

Neste período de disputa internacional pelos territórios em África, a malária e outras doenças tropicais que grassavam entre as populações das colónias tropicais e subtropicais assumiam uma importância crescente na Europa Imperial, particularmente na Grã-Bretanha e em França. As “febres”, que começavam nesta altura a ser caracterizadas cientificamente, provocavam um elevado número de mortes e debilitavam um grande número de indivíduos, entre marinheiros e militares ao serviço do imperialismo europeu. A perda de vidas e a fragilidade da saúde nas forças armadas representavam, simultaneamente, grandes perdas económicas para os seus empregadores73. Por outro lado, a malária colocava em causa a saúde e o bem-estar das populações europeias que habitavam e trabalhavam, a bem dos impérios, nos territórios ultramarinos, constituindo um obstáculo à ocupação territorial e à exploração económica dos recursos locais74. Conotada como uma “doença militar” ou uma “doença dos habitantes das colónias”, pela sua associação com colonos militares e civis das possessões europeias tropicais e subtropicais75, a malária era, no terceiro quartel do século XIX, abordada e estudada no âmbito das “doenças estrangeiras” ou das patologias exóticas, que pouco depois passaram a designar-se “doenças tropicais”76.

No período pós-Ultimatum, os direitos de soberania para as nações europeias que partilhavam e disputavam o território africano impunham-se através de ferramentas militares e civis que asseguravam e evitavam perder os domínios coloniais para a concorrência77. A medicina tropical assumiria neste contexto um papel de destaque pela perícia associada a um saber especializado necessário ao controlo epidémico das doenças tropicais mais devastadoras em África.

Em 1898, ainda antes da institucionalização da medicina tropical na Grã-Bretanha, foi constituída uma Comissão de Malária em Londres, composta por três investigadores principais, J. W. W.

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op. cit. (71), p. 9, 14, 20-27.

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op. cit. (5), p. 2; op. cit. (16), p. 518.

74

op. cit. (5), p. 2-3. 75

ibid.

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op. cit. (2), p. 87-92; op. cit. (16).

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Stephens (1865-1946) e S. R. Christophers (1873-1978), representantes da Royal Society of London, e por C. W. Daniels (1862-1927), nomeado pelo Colonial Office, com o objectivo de aprofundar o conhecimento sobre a doença e o seu impacto nos territórios tropicais britânicos78. A Comissão viajou pela Índia e pela África Ocidental, fez o mapeamento da distribuição de Anopheles, identificando aqueles que eram efectivamente vectores da doença, estudou a sua morfologia e o desenvolvimento do Plasmodium nos mosquitos, e centrou-se na distribuição geográfica do vector e nas condições particularmente favoráveis à transmissão da doença a partir de estudos de endemicidade e de epidemiologia da malária79. O primeiro relatório da Comissão, em Fevereiro de 1899, dava conta da visita de C. W. Daniels à Índia em Dezembro de 1898 e do acompanhamento que fez aos estudos de Ross sobre a transmissão de malária nas aves80. A intensa actividade da Comissão de Malária até 1902, reflectida em oito relatórios produzidos entre Julho de 1900 e Outubro de 1903, e a integração de dois dos seus investigadores principais nas novas escolas de medicina tropical81, consolidou a institucionalização e a sistematização do estudo da malária enquanto doença tropical.