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4.2 Compreendendo a perpetuação da corrupção nas organizações a partir da

4.2.2 A negação da existência da corrupção no ambiente profissional

Um outro fator que nos chamou a atenção nos discursos foi o fato de que, quando questionados os entrevistados se a construção dos conceitos de corrupção provinha de suas experiências profissionais ou pessoais, um grupo maior asseverou a isenção da influência do meio profissional como formador do conceito que tinham a respeito do fenômeno. O fragmento 017, no qual a entrevistada Elvira, por meio da seleção lexical, aponta que “Não, na minha história de vida profissional, eu não enxergo isso não”, traz uma formação semântica que indica a negação da observação da corrupção em sua história profissional.

O fragmento 020 indica uma postura do enunciador quando perguntado se há relação de suas experiências profissionais, conforme sua interpretação de corrupção, de isentar a sua imagem de uma possível associação com a corrupção. Por meio da seleção lexical “Não, eu não cheguei a vivenciar essa questão, com relação a minha pessoa, não”, o enunciador utiliza uma semântica que evidencia a sua pessoalidade no que ele entende como experiência profissional, negando a sua vivência em relação ao ato corrupto e deixando explícito que a corrupção nunca fez ou faz parte de sua vivência profissional.

A entrevistada Cláudia, assim como Elvira e Galeno, emite um discurso de negação das experiências profissionais como fator influenciador para sua interpretação da corrupção, conforme fragmento 022:

Não é do meu dia a dia, dessas experiências profissionais não... até o pessoal fala assim: "nossa, mais é muito fácil fazer corrupção", principalmente, a gente que trabalha com o serviço público. A pessoa fala "mais é fácil fazer coisas erradas, né?" Eu não entendo como que é fácil. É só quem tá lá em cima, né? Quem está com o poder na mão, porque, assim, eu não consigo, aqui tudo é feito através de licitação, tudo você tem que comprovar, tudo você tem que ter nota fiscal. Então, eu não sei

como que é fácil, eu não acho fácil... essa facilidade tremenda não, eu acho que, quando você tem um poder maior, aí sim... aí eu acho que você consegue infringir as leis, né? Que entra nessa parte das leis... (Cláudia, em entrevista, 2017).

A seleção lexical “eu acho que, quando você tem um poder maior, aí sim... aí eu acho que você consegue infringir as leis, né? Que entra nessa parte das leis...” dá um sentido ao discurso da enunciadora de que, em níveis hierárquicos superiores, a prática da corrupção é mais propensa a ocorrer. A entrevistada utiliza a palavra “poder” e o adjetivo “maior” para se referir à prática da “grande corrupção” (HEIDENHEIMER, 2002; MASHALI, 2012).

Em outros períodos de seu discurso que antecedem esse raciocínio, a enunciadora utiliza o pronome pessoal “eu” e o pronome de tratamento “você” na seleção lexical “...porque, assim, eu não consigo, aqui tudo é feito através de licitação, tudo você tem que comprovar, tudo você tem que ter nota fiscal. Então, eu não sei como que é fácil, eu não acho fácil... essa facilidade tremenda não...” para discorrer que a única experiência profissional que ela toma como influência para sua interpretação da corrupção é o exercício de suas próprias funções. Com essa afirmativa, a enunciadora deixa subentendido que, para ela, a ocorrência de corrupção está distante de seu ambiente profissional e que a prática do ato é fácil para quem esta no topo da hierarquia. A frase “eu não acho fácil... essa facilidade tremenda não” demonstra como a enunciadora defende a dificuldade da prática da corrupção no exercício de suas funções e, consequentemente, no seu ambiente profissional. O adjetivo “tremenda”, que ela utiliza após a negação da facilidade da prática de atos corruptos, enfatiza, conforme sua visão, que as pessoas consideram fácil realizar atos de corrupção no setor público. Tal negação de aceitação da existência da corrupção no ambiente profissional da entrevistada pode indicar uma dificuldade, por parte ela, em analisar de forma mais profunda seu ambiente profissional e, assim, criar barreiras para sua interpretação da corrupção.

Nesse padrão de discursos, percebemos que os entrevistados tomam como conceito para o fenômeno a chamada “grande corrupção” (HEIDENHEIMER, 2002; MASHALI, 2012), ou “corrupção de segunda ordem” (ZYGLIDOPOULOS, 2016), ignorando a presença da “pequena corrupção” (MASHALIM 2012) que ocorre, no seu dia a dia, no nível organizacional, abaixo do gerencial, e sem uma organização prévia, ao contrário da grande corrupção.

O fragmento 022, emitido por Cláudia, foi também obtido em seu ambiente profissional a partir da realização de entrevista individual, tendo a enunciadora conhecimento de que o consumo de seu discurso se daria em ambiente acadêmico. Ela o constrói com a

distribuição a partir de cadeias intertextuais que, nesse caso, é proveniente de falas informais de outros indivíduos que a enunciadora utiliza para desenvolver seu argumento.

Os fragmentos 017, 020 e 022, quando analisados pela perspectiva da prática social, podem ser entendidos como condizentes com a atual estrutura social hegemônica, uma vez que é um discurso que nega a existência de corrupção no ambiente organizacional, reforçando o papel das organizações como instituições isentas de responsabilidade com a corrupção. Ignorando a existência do fenômeno em sua realidade profissional, os enunciadores caracterizam as organizações em um discurso ideológico que preconiza o ambiente profissional das organizações como ideal, uma vez que, nesse tipo de ambiente, não seria notada a corrupção. Essa visão colabora para que o conceito de corrupção seja cada vez mais aquele disseminado pela mídia que, geralmente, refere-se a casos da chamada grande corrupção e propicia a perpetuação do fenômeno no âmbito das organizações, pois diferentes tipos de prática de corrupção nos níveis micro (pequena corrupção) são ignorados e contribuem para a manutenção do problema.