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1. Gêneros textuais

1.3. A noção de gênero para Bronckart

Para tratar da noção de gênero para Bronckart, convém ressaltar que não se pode atribuir ao autor isoladamente um conceito de gênero, porquanto o que convencionalmente se atribui a Bronckart é,em geral, o produto de trabalhos desenvolvidos pelo grupo de pesquisadores da Unidade de Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra. Entre os lingüistas que compõem o grupo se destacam, além de o próprio Bronckart, os pesquisadores Schneuwly e Dolz.

Esse grupo é responsável por trabalhos cuja importância foi fundamental para a constituição do interacionismo sociodiscursivo, que encontrou nas teorias de Vygotsky e na abordagem marxiana sua fonte de referência.

A obra que publicamente dá início às pesquisa do grupo (Bronckart et al., 1985) visava à comprovação de que, para condições de produção diferentes, havia diferentes tipos de textos (gêneros textuais). Ao tratar desses diferentes tipos de textos, os autores não apresentavam uma definição explícita de gênero, que eram tratados de acordo com a rotulação social que lhes era usualmente atribuída.

Por esse motivo, ao tecer considerações sobre essa obra, Machado (2005, p. 242) afirma que havia uma concepção de gênero subjacente, a qual consistia em defini-lo como “aquilo que sabemos que existe nas práticas de linguagem de uma sociedade ou aquilo que seus membros usuais consideram como objetos de suas práticas de linguagem” (grifos da autora).

Embora na obra supracitada (Bronckart et al., 1985) não houvesse um conceito de gênero formalmente constituído, encontram-se, nesse estudo, noções que serão importantes

para a compreensão do fenômeno dos gêneros textuais já devidamente elaborados. Essas noções dizem respeito aos tipos de discurso e às seqüências discursivas.

O conceito e a classificação dos tipos de discurso surgem com heranças das reflexões de Benveniste acerca da situação de enunciação. Em relação à classificação, os tipos são divididos em quatro categorias básicas: relato interativo, interativo, teórico e narração. Eles são apresentados como segmentos de textos (ou o próprio texto como um todo) com características próprias em diferentes níveis, entre os quais convém considerar o nível

semântico-pragmático; o morfossintático; o psicológico; o da planificação e o do texto.

No nível semântico-pragmático, é dada ênfase na relação existente com o contexto físico de produção, relação essa que pode ser de implicação ou de autonomia. Assim, o contexto físico estaria implicado na produção de tipos de discurso interativo e de relato interativo, enquanto haveria autonomia em relação ao contexto físico no caso da produção dos tipos de discurso teórico e de narração. Ainda no que diz respeito ao nível semântico- pragmático, pode haver uma relação de conjunção em função do tempo-espaço na produção do discurso interativo e do teórico, ao passo que, na produção do relato interativo e da narração, haveria uma relação de disjunção.

No nível morfossintático, marcando a relação existente entre o contexto e a apresentação dos conteúdos em cada tipo do discurso no que diz respeito ao tempo-espaço, haveria um conjunto de unidades lingüísticas discriminativas.

No nível psicológico, devem ser citadas as operações discursivas de interação, as quais são consideradas imprescindíveis à produção de qualquer um dos tipos de discurso.

No nível da planificação, é necessário enfatizar a existência de seqüências textuais que organizam os conteúdos de cada tipo de discurso.

No nível do texto, salienta-se a possibilidade de um mesmo texto ser composto por apenas um tipo de discurso ou ainda a possibilidade de um único texto apresentar vários tipos.

Apesar de apresentarem características distintas, os tipos de discurso podem se mesclar, de modo que um único texto pode ser constituído por segmentos com características discursivas de mais de um tipo. Assim, não há como estabelecer formas de identificação de caráter mecânico, pois os tipos não podem ser definidos pela quantidade de unidades lingüísticas de que são compostos, é necessário, na realidade, fazer uma análise qualitativa de seu valor, para que haja o seu reconhecimento.

As considerações sobre os tipos de discurso são importantes para a compreensão dos gêneros, dada a relação que se pode estabelecer entre os dois fenômenos. Todavia, com isso,

não se deve crer que há uma relação direta entre tipos discursivos e gêneros de texto. Mesmo admitindo que os tipos estão presentes em todos os textos, que, por sua vez, só se realizam por meio de algum gênero, o que leva à conclusão de que os tipos também se manifestam nos gêneros textuais, é necessário reconhecer que, para a definição dos gêneros, não é suficiente a identificação dos tipos discursivos.

Segundo Bronckart (1999), não é possível identificar um gênero com base no reconhecimento dos tipos discursivos, pois estes, teoricamente, podem combinar-se de infinitas maneiras. Um mesmo tipo pode se apresentar (ou compor predominantemente) inúmeros gêneros distintos, de modo que a identificação do tipo não conduz a uma relação direta com o gênero.

Contudo, é possível reconhecer grandes famílias de gêneros que apresentam um tipo discursivo como predominante, o que poderia levar à classificação de gêneros narrativos,

expositivos, interativos ou de relato.

Outro aspecto importante a ser ressaltado é que não se devem confundir tipos de

discurso com tipos de seqüências. O que Bronckart (1985; 1996) define como tipos discursivos não é equivalente ao que alguns autores, como Marcuschi (2002; 2008), por

exemplo, definem como tipos de texto ou de discurso, o que, em parte, corresponderia à noção de tipos de seqüências.

Os tipos de seqüências apresentados por Bronckart (1999) são possíveis formas de distribuição dos conteúdos nos textos. Segundo o autor, dividem-se em seis categorias:

narrativa, explicativa, argumentativa, expositiva, injuntiva e dialogal. Do mesmo modo como

nos tipos de discurso, é possível identificar os tipos de seqüências tomando como critério diferentes níveis de análise: o nível semântico-pragmático; o morfossintático; o psicológico; o

teórico; o de sua relação com os tipos de discurso e da relação com os textos.

No nível semântico-pragmático, constituem-se como formas de construção do mundo ordinário no mundo discursivo, por meio da narração, descrição, exposição, argumentação, injunção e do diálogo, conforme os efeitos que se queira produzir.

No nível morfossintático, sua identificação ocorre através das unidades lingüísticas típicas que os compõem.

No nível psicológico, correspondem às operações discursivas advindas da experiência criada pela vivência com diversos textos em suas dimensões práticas e históricas. São formas de organizar os conteúdos, as quais não dependem de competências textuais inatas, mas adquiridas no contato com o intertexto.

No nível teórico, configuram-se como construtos teóricos que não podem ser considerados modelos imutáveis.

No nível de sua relação com os tipos de discurso, estabelecem uma relação com os tipos de discurso, uma vez que estes tendem a apresentar um ou outro tipo de seqüência.

No nível da relação com os textos, não apresentam relações invioláveis, de modo que um texto pode apresentar apenas um tipo de seqüência ou mais de um tipo, geralmente com um que predomina sobre os demais.

De acordo com a perspectiva desenvolvida por Bronckart (1999), Machado (2005) apresenta o seguinte quadro-síntese dos tipos de seqüências e suas respectivas representações dos efeitos pretendidos, acrescidos das fases correspondentes a cada tipo de seqüência.

Quadro 01 – Seqüências, representações dos efeitos pretendidos e fases correspondentes FONTE: MACHADO (2005, p. 246-247)

SEQÜÊNCIAS REPRESENTAÇÕES DOS EFEITOS PRETENDIDOS FASES

Descritiva Fazer o destinatário ver em pormenor elementos de um objeto do discurso, conforme a orientação dada a seu olhar pelo produtor

Ancoragem Aspectualização Relacionamento Reformulação Explicativa Fazer o destinatário compreender um objeto de discurso, visto

pelo produtor como incontestável, mas também como de difícil compreensão para o destinatário

Constatação inicial Problematização Resolução

Conclusão/avaliação Argumentativa Convencer o destinatário da validade do posicionamento do

produtor diante de um objeto de discurso visto como contestável (pelo produtor e/ou pelo destinatário)

Estabelecimento de: - premissas

- suporte argumentativo - contra-argumentação - conclusão

Narrativa Manter a atenção do destinatário, por meio da construção de suspense, criado pelo estabelecimento de uma tensão e subseqüente resolução Apresentação de: - situação inicial - complicação - ações desencadeadas - resolução - situação final Injuntiva Fazer o destinatário agir de certo modo ou em determinada

direção

Enumeração de ações temporalmente subseqüentes Dialogal Fazer o destinatário manter-se na interação proposta Abertura

Fechamento

Percebe-se que essas características podem ser encontradas em diversos gêneros, muitos dos quais apresentam mais de um desses tipos, não havendo relação direta entre o gênero em que o texto se materializa e os tipos de seqüências existentes no texto. Conseqüentemente, os tipos de seqüências não podem se constituir, assim como os tipos de discurso, como critérios para a identificação dos gêneros, que, no máximo, podem ser agrupados em grandes famílias que apresentam uma seqüência predominante (gêneros de cunho narrativo, descritivo, expositivo etc).

Por essa razão, Bronckart (1999) conclui que a análise dos gêneros não deve se ater às propriedades lingüísticas que os textos apresentam, pois identificações, classificações ou definições que adotem esse critério mostram-se falhas, visto que as propriedades internas são insuficientes para a caracterização dos gêneros.

Para tanto, o autor considera relevante o estudo dos gêneros como reguladores e como produtos das atividades sociais de linguagem.

De acordo com Bronckart (2003, p. 54), é necessário:

admitir que todo membro de uma comunidade lingüística é confrontado com um universo de textos “já vistos”, universo organizado em “gêneros” empíricos e históricos, ou seja, em formas de organização concretas que se modificam com o tempo.

Tendo em vista que se constituem como um elemento de aprendizagem social, essas formas de organização são apropriadas pelos sujeitos, que podem empreender desvios e reorganizações nas regularidades apresentadas, conforme o desenvolvimento de suas ações, que visam à realização de uma atividade. Nesse contexto teórico, torna-se imprescindível a distinção entre atividade e ação.

Segundo Bronckart (1999), as atividades determinam o funcionamento psíquico humano e se constituem como princípio motivador das ações individuais. Sendo assim, a atividade estaria ligada ao plano da coletividade, ao passo que a ação ao plano do individual. As atividades sociais são constituídas pelo conjunto das ações de cada indivíduo, cujos efeitos são orientados tendo em vista a realização das atividades sociais.

Para realizar as ações, que são motivadas pelas atividades, os seres humanos, ao longo da história, desenvolveram ferramentas que permitiram a transformação da natureza e do

entorno social. Como as atividades são cada vez mais diversas, foi necessária a criação de ferramentas igualmente diversas, próprias para cada atividade.

As formas semióticas, assim como as ferramentas, surgiram para auxiliar o homem na realização dessas atividades. Assim, historicamente, o ser humano precisou se apropriar de ferramentas e formas semióticas, tais como os signos e as línguas, para que pudesse agir e, conseqüentemente, realizar as atividades sociais.

Em decorrência do uso dessas formas semióticas, os gêneros surgiram, no decorrer da história humana, como formas comunicativas estabilizadas de maneira relativamente forte, as quais estavam inseridas no quadro das atividades sociais, que apresentam esferas bastante diversificadas, o que deu origem à grande diversificação dos gêneros hoje existente.

Estando atrelados à necessidade humana de realizar determinadas atividades sociais, os gêneros pré-existem à ação, cuja realização auxiliam, constituindo-se como pré-construtos que todo produtor pode usar para realizar ações de linguagem. Mas, para usar essa espécie de ferramenta semiótica, cada produtor deve realizar uma análise da situação de ação, a fim de escolher o gênero mais pertinente à situação em que pretende agir.

Diante disso, não causará surpresa a constatação de que os gêneros emergem como

ferramentas semióticas complexas que possibilitam a realização de ações de linguagem com

objetivos que têm em vista a inserção dos indivíduos em atividades sociais específicas.

Essa inserção é possível graças ao conhecimento que vai sendo acumulado à medida que são vivenciadas diversas situações sociais que motivam o uso de gêneros diversificados. A ativação desse conhecimento permite que o indivíduo, ao se deparar com determinada situações social que exige uma ação de linguagem específica, possa escolher o gênero adequado aos seus propósitos.

No entanto, não se deve concluir que o homem consegue controlar os resultados de sua ação por meio de modelos que pré-existem à ação. Embora utilize os gêneros de acordo com o conhecimento que tem acerca de situações passadas, cada situação nova traz valores particulares cujo resultado, de certo modo, é sempre diferente, o que confere a cada texto um estilo particular.

Esse processo de pequenas modificações individuais acaba contribuindo para que haja modificações nos gêneros ao longo do tempo. Por isso, pode-se afirmar que as ações de linguagem apresentam um caráter essencialmente dinâmico e histórico.

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