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A nova redacção do art 34.º da Constituição da República Portuguesa

CAPÍTULO IV – AS COMPETÊNCIAS PRÓPRIAS DOS ÓRGÃOS DE POLÍCIA

3. As buscas domiciliárias em caso de flagrante delito

3.1. A nova redacção do art 34.º da Constituição da República Portuguesa

indagássemos sobre a exegese do art. 34.º da CRP e aferíssemos o alcance que o legislador constituinte pretendeu com a alteração introduzida em 2001.

O n.º 3 do art. 34.º da CRP dispõe que “Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei”. Não é perceptível, através de uma hermenêutica literal, se os casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente

organizada se reportam somente às autorizações judiciais, permitindo-se assim a busca domiciliária para todos os casos de flagrante delito com as respectivas restrições da lei ordinária180, ou se respeita às duas situações, e neste caso só será constitucionalmente admissível a busca em flagrante delito se o crime em causa se enquadrar na criminalidade

especialmente violenta ou na criminalidade altamente organizada181-182. A questão afigura- se pertinente se tivermos em conta crimes como a violência doméstica (art. 152.º do CP) ou os maus-tratos (art. 152–A do CP), os quais, muito embora corresponda uma moldura penal abstractamente aplicável superior a três anos, não se enquadram nem na

criminalidade especialmente violenta (al. l) do art. 1.º do CPP) nem na criminalidade

altamente organizada (al. m) do art. 1.º do CPP). Cabe, por isso, “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo”, colocando “a lei na ordem social”183.

Segundo PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE “o art. 34.º, n.º 3, da CRP, lido à luz dos

trabalhos de revisão constitucional, permite a busca domiciliária nocturna em caso de

180 Neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, op cit., pp. 482 e 483.

181 Entendendo-se “que quer em flagrante delito quer mediante mandado judicial só é admissível quando os

crimes promotores da diligência se confinam aos «casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes”. Cfr. M.GUEDES VALENTE, Processo Penal … p. 398.

182 Para PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, a opinião de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA vai no sentido

de restringir “o flagrante delito à criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada”. Idem, p. 483.

flagrante delito sem restrições relativamente ao tipo de crime indiciado”184-185. De facto, o legislador constituinte manifestou claramente o intuito de permitir as buscas domiciliárias às situações de flagrante delito como acontece com a Constituição espanhola186, e esse facto consubstanciou-se na nova redacção da al. a), do n.º 3, do art. 177.º, do CPP, que admite a busca domiciliária, em caso de flagrante delito, por crime a que corresponda pena de prisão. Mas seria intenção estender a possibilidade ao período nocturno nos mesmos moldes, colocando o flagrante delito como requisito bastante para legitimar uma busca domiciliária, independentemente da hora a que seja executada?

Para se descortinar o pensamento do legislador constituinte relativamente a esta matéria é necessário que analisemos cuidadosamente os trabalhos de revisão constitucional, elaborados em 2001. A razão apresentada para a abertura da possibilidade da realização de buscas domiciliárias durante o período da noite teve a ver com o problema da “luta contra o crime organizado, o crime de terrorismo e das associações de malfeitores” que “actuam durante a noite, porque têm a cobertura legal, clássica, dos direitos fundamentais, de que ninguém pode ser perturbado ou atacado na sua residência ou no seu domicílio, desde o pôr do sol até ao nascer do sol” e “porque há fundado receio de que, em determinado «domicílio», estão a ser desenvolvidas, durante aquelas horas, das 21 às 7 horas, actividades por parte de associações criminosas, terroristas, de criminalidade violenta ou altamente organizada.”187-188. No entanto, achou-se que deveriam ser

densificadas todas as “cautelas de modo a que esta providência continue a ser extremamente excepcional, porque há um trauma nacional sobre a violação do domicílio à noite que, efectivamente, é preciso respeitar”189. O deputado JORGE LACÃO entendeu, por

isso, que se deveria “procurar uma delimitação material em sede constitucional para a tipologia dos crimes que permita essa excepção ao princípio geral da proibição”, v.g.

184 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, op cit., p. 483.

185 Neste sentido, FRANCISCO ANTÓNIO CARRILHO BAGINA, “Notas ao Regime Geral das Buscas

Domiciliárias” in Polícia Portuguesa, n.º 8 – III série, JUL-SET 2008, p. 37, Col. 1.

186 Cfr. DAR, n.º 5, de 06/06/2001, II série – Revisão Constitucional, 8ª legislatura, 1ª sessão legislativa, p.

79. O n.º 2 do art. 18.º da Constituição espanhola determina que “não poderão ser feitas buscas domiciliárias sem o consentimento do seu titular ou decisão judicial, salvo nos casos de flagrante delito”, não havendo lugar a qualquer ambiguidade como no caso português.

187 DAR, n.º 3, de 30/05/2001, II série – Revisão Constitucional, 8ª legislatura, 2ª sessão legislativa, pp. 43 e

44.

188 Essa preocupação reflectiu-se na criação “de legislação especial destinada a servir (…) os propósitos de

contenção e domínio daqueles fenómenos” e “à reformulação da legislação geral tradicionalmente aplicável às associações criminosas”. FIGUEIREDO DIAS, “As «Associações Criminosas» no Código Penal Português de

1982 (Arts. 287.º e 288.º)” in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3751, Ano 119, p. 290. São evidentes exemplos dessa legislação o n.º 3, do art. 1.º da Lei n.º 53/2008, de 28 de Agosto (Lei de Segurança Interna) e a Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto (Lei de Combate ao Terrorismo).

“aqueles casos que envolvam criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo como tipos materiais, necessariamente, o terrorismo, o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes”190.

Ora se a preocupação do legislador se prendeu com a dicotomia entre a necessidade de maior eficácia investigatória por parte das polícias relativamente à criminalidade

especialmente violenta ou altamente organizada e a quebra desse direito absoluto que era a inviolabilidade do domicílio durante a noite, não parece que pretendesse de alguma forma permitir as buscas domiciliárias nocturnas em flagrante delito, independentemente do crime em causa, ou mesmo para qualquer crime com moldura penal superior a três anos. Para mais, se fosse esse o pensamento legislativo, a positivação dessa possibilidade seria, em harmonia sistemática, inserida no n.º 2 do art. 34.º da CRP191. Ao colocar a premissa apenas no n.º 3 – referente à inviolabilidade do domicílio durante a noite – o legislador pretendeu, em nossa opinião, subjugar o flagrante delito às condicionantes previstas nessa norma, durante o período da noite.

Acompanhamos, por essa razão, GUEDES VALENTE, quando afirma que a norma

“não está conforme com o pensamento do legislador constituinte”, pois “o espectro criminal de restrição” constitucional “enquadra-se nas tipologias criminais puníveis com penas superiores a oito anos de prisão ou, quando muito, a penas superiores a cinco anos de prisão”192.