• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2: QUANDO AS MOIRAS DETERMINAM O “FIO

2.1 A GRÉCIA DO PERÍODO HOMÉRICO: MÃOS

2.1.2 A Odisséia

“Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito

peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Tróia.” (Odisséia, I: 1-2)

A Odisséia pertence a uma época cujo ethos da cultura e da moral aristocrática, segundo Jaeger (2010, p. 81) encontra uma sociedade peculiar, que é representada idealmente, convertendo-se no fundamento vivo de toda a cultura helênica. Este fundamento também se expõe a partir do ideal de homem de que Odisseu é o exemplo por excelência – o modelo “ideal” entretecido.

Este poema é a mais antiga narrativa estendida de que se tem notícia na literatura grega. Na verdade, ele é centrado na representação de um homem que está se esforçando para alcançar o reconhecimento em sua sociedade, um homem que é mais que repetidamente comparado a um poeta.

Além disso, a Odisséia de Homero é, segundo Lourenço (2011, p. 96), o livro que exerceu maior influência sobre o imaginário ocidental, depois da Bíblia. “Não é por acaso que a literatura romana começa, no século III a. C., com a tradução para latim da Odisséia, tarefa empreendida por Lívio Andronico”. O Renascimento, também foi decisivo para a propagação do poema, com sua nova tradução para o latim feita por Leôncio Pilato, que tanto encantou Petrarca e Boccaccio

– o que “veio repor a primazia do modelo homérico, a ponto de a Odisséia ter acabado por ofuscar qualquer outro poema épico, à exceção talvez da Eneida de Virgílio” (idem).

Para muitos estudiosos modernos, há diferenças significativas entre a Ilíada e a Odisséia que não podem ser ignoradas, não apenas em termos de vocabulário e no emprego da gramática, mas também nas concepções e atitudes morais e religiosas – tal como já foi tratado anteriormente. De acordo com Knox (2011, p. 35), “antes de mais nada, embora pressuponha o conhecimento da platéia não só da saga da guerra de Tróia, mas da forma especial como esta foi contada na Ilíada, [o relato feito na Odisséia] prudentemente evita a duplicação desse material”.

O traçado poético da Odisséia é de mais fácil apreensão, pois é narrado, em parte, em primeira pessoa. É o próprio Ulisses (nome em latim, ou Odisseu, mais próximo à tradução do grego) que conta suas aventuras enquanto esteve ausente de sua esposa (Penélope), de seu filho (Telêmaco) e da terra natal, Ítaca, durante dez anos após a batalha narrada na Ilíada. É, segundo este autor e outros helenistas, o primeiro romance de formação da História, de enredo bem arquitetado, que prende a atenção do leitor desde o primeiro verso (o poema completo tem 12109 versos hexâmetros, separados em 24 cantos ); é menos grandioso que a Ilíada, mas mais aventuroso e romântico.

Neste poema, pela primeira vez o poeta recorre a um artifício estilístico que será repetido por outros após ele: começar a história pelo meio (in media res) e deixar o princípio para ser contado mais tarde. O sentimento que evoca um complexo de imagens faz-nos lamentar a tragédia de Odisseu, preso na Ilha de Ogígia, dez anos após o início da trama.

Segundo Knox (2011, p. 17), “a narrativa épica em geral anuncia o ponto da história em que ela começa e prossegue em ordem cronológica até o fim. Mas o prólogo à Odisséia renuncia ao tradicional pedido à Musa” para que o poeta inicie seu canto em determinado ponto.

Ela começa no vigésimo ano de sua ausência de casa, quando Atena compele Telêmaco a empreender a viagem a Pilos e Esparta e promove a fuga de Ulisses de seu cativeiro de sete anos na Ilha de Calipso. A razão para esse afastamento surpreendente da tradição não é difícil de encontrar. Se o poeta tivesse começado do princípio e observado uma cronologia rígida, teria

sido forçado a interromper a sequência da narrativa assim que seu herói houvesse voltado à Ítaca, a fim de explicar a situação extremamente complicada com a qual ele teria de lidar na própria casa. A Telemaquia o habilita a preparar o terreno para o retorno do herói e apresentar os protagonistas das cenas finais – Atena, Telêmaco, Penélope, Euricléia, Antino, Eurímaco – bem como um grupo de atores secundários. (KNOX, 2011, p. 18)

Assim, ainda de acordo com o autor, as descrições das viagens de Telêmaco, além de mapearem seu curso sob a orientação de Atena34, buscam modificar o rapaz, da timidez provinciana35 à autoconfiança principesca nas suas interações com reis36. E, para além de delinearem um protótipo educativo para o jovem, “elas também nos oferecem duas visões ideais do regresso do herói, muito diferentes do destino reservado a Ulisses – Nestor entre seus filhos37, Menelau com a mulher e a

34

“À Ítaca irei eu mesma para animar seu filho, para lhe insuflar coragem no espírito. (...) À Esparta quero enviá-lo e à Pilos arenosa,

para que sobre o regresso do pai amado se informe.” (Odisséia, I: 88-93) 35

“A ele deu resposta Psístrato, filho de Nestor: ‘Atrida Menelau, criado por Zeus, condutor de hostes! Este é mesmo o descendente de quem dizes.

Mas é cauteloso e envergonha-se no coração de aqui chegar

pela primeira vez e se mostrar atrevido à tua frente.” (Odisséia, IV: 155-159) 36

“A ele deu resposta o prudente Telêmaco: ‘Atrida, não me retenhas aqui durante muito tempo. Decerto permaneceria ao teu lado um ano inteiro, sem que me viesse a saudade da pátria ou da família. Maravilhosamente me deleito quando ouço as tuas palavras. Mas os meus companheiros se agitariam na sagrada Pilos,

no caso de tu aqui me reteres algum tempo.” (Odissséia, IV: 593-599) 37

“Aqui se sentou Nestor de Gerênia, guardião dos Aqueus, de cetro na mão; em seu redor reuniam-se os filhos,

vindos de seus quartos: Esquefronte, Estrácio, Perseu e Areto, assim como o divino Trasimedes. Em sexto lugar veio depois o herói Pisístrato,

filha38”, ambos governadores de reinos abastados e tendo súditos leais sob sua tutela. É como se o leitor pudesse antever o futuro de Ítaca, sendo governada pelo grande herói após seu retorno – ou vislumbrar, sob lentes diversas um passado glorioso que poderia ter acontecido, caso Odisseu não tivesse se demorado tanto em seu nostos39.

De modo geral, o poema contém um amálgama indissolúvel, material que parece abraçar, lingüística e historicamente, muitos séculos – por isso, seu fundo histórico é mais obscuro. As viagens e aventuras marítimas de seu herói, segundo Baldry (1969, p. 39) “podem ser consideradas como uma recordação poética e lendária, acrescida de elementos folclóricos e fantásticos, das migrações a que novos invasores, os Dórios, forçaram os Gregos, poucas décadas depois da Guerra de Tróia”.

É o motivo do regresso do herói, o nostos, que conduz-nos à representação intuitiva da terna vida da comunidade em tempos de paz. A partir das viagens aventurosas e da rotina caseira com a família e os amigos, podemos encontrar referências para compreender a nobreza grega naqueles tempos arcaicos pois, sua descrição da vida familiar e política, aproxima-nos da realidade da antiga cultura aristocrática. De acordo com Jaeger (2010, p. 42), é deste modo que “a epopéia torna-se ‘romance’. Se a periferia da imagem do mundo da Odisséia nos arrasta para a fantasia aventureira dos poetas, para as sagas heróicas e mesmo para o mundo do fabuloso e do maravilhoso”, é com uma força muito maior que a sua descrição das relações familiares nos aproxima da realidade.

Também para Jaeger (2010, p. 54-55), “o conjunto da Odisséia constitui uma linda criação composta de duas partes separadas: Ulisses, ausente e retido na ilha da ninfa apaixonada40, rodeado de mar, e seu

38 “Chegaram à ravinosa Lacedemônia cheia de grutas

e o carro conduziram para o palácio do famoso Menelau. Encontraram-no em casa a oferecer uma festa nupcial

a muitos familiares, pelas bodas do filho e da fila irrepreensível. (...) pois a Helena não concederam os deuses

outro filho depois que dera à luz a filha lindíssima,

Hermione, que tinha o aspecto da dourada Afrodite.” (Odisséia, IV: 1-14) 39

Palavra grega que significa “retorno”, e será analisada com maiores detalhes posteriormente.

40

“A Zeus respondeu Atena, a deusa de olhos esverdeados: ‘Pai de todos nós, mais excelso dos soberanos,

filho inativo, à espera dele no lar abandonado41”. Ambos – pai e filho – se põem em movimento ao mesmo tempo, e assim a trama garante tanto o regresso do herói (auto) formado pelas experiências vividas, quanto a educação do jovem por meio da intervenção da deusa Athena. “A mais alta divindade é para o poeta uma força sublime e onisciente que se encontra acima dos esforços e pensamentos dos mortais. A sua essência é o espírito e o pensamento” (idem).

É precisamente neste ponto em que as Musas, agora detentoras também da habilidade de ler e escrever, entregam a tecelagem às mãos das “terríveis fiadoras” – serão elas a medir, ordenar e cortar o fio da areté na Grécia do período homérico.

2.2 NOBREZA, ARETÉ E UM IDEAL DE HOMEM A SER MEDIDO