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Entre as barras de urdidura: mito e culto na Grécia

CAPÍTULO 1: PELAS MUSAS COMECEMOS A CANÇÃO

1.1 A ENERGIA ESTÉTICO-FORMATIVA EM TEMPOS

1.1.1 Entre as barras de urdidura: mito e culto na Grécia

deuses. (Odisséia, I: 267)

A palavra mito, de acordo com Zacharakis (1995) procede do grego mythos, que é uma palavra ligada ao verbo mytheuô, significando “criar uma história imaginária”. O mito, portanto, se refere a uma crença, a uma tradição ou a um acontecimento. A Mitologia articula os mitos, estuda sua procedência, seu significado, sua interpretação e oferece as informações básicas sobre a origem, a crença e o desenvolvimento sociopolítico de um povo.

Segundo o Dicionário Mítico-Etimológico, organizado por Brandão (2002, p. 9), todos os símbolos existentes numa cultura e nas suas instituições sociais são marcos do grande caminho da humanidade, das trevas para a luz, do inconsciente para o consciente. Estes “são as crenças, os costumes, as leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as festas, todas as atividades, enfim, que formam a identidade cultural [de um povo]”.

O mito, ainda de acordo com Brandão (1997, p. 13), se apresenta como um sistema que tenta, de maneira mais ou menos coerente, explicar o mundo e o homem. Opondo-se ao λόγος (lógos), como a fantasia à razão, como a palavra que narra à que demonstra, λόγος (lógos) e μύθος (mythos) são as duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida e do espírito.

Segundo Vernant (2009, p. 200-201), as funções da linguagem são apresentadas nos mitos por meio de narrativas que demonstram uma crença não existente em livros sagrados, mas é o que se conta por meio das narrativas. É esta tradição poética, no caso específico da cultura pré- helênica, esta tradição cantada por aedos, que constitui o “breviário” das

crenças, mas também a enciclopédia do saber coletivo do povo nos primórdios da história desta civilização.

O mito conta uma história sagrada, narra um fato importante ocorrido no tempo primordial, no tempo fabuloso dos começos. Ou ainda, conforme explicita Brunel,

O mito é uma narrativa (...) animado por [seu] dinamismo. (...) O mito explica, essa é sua segunda função. Em outras palavras, o mito relata como, graças às façanhas dos seres sobrenaturais, uma realidade chega à existência, seja à realidade total, o Cosmo, ou somente um fragmento [dela]. (...) O mito é o lugar onde o objeto se cria a partir de uma pergunta e de sua resposta. O mito é o lugar onde, a partir de sua natureza profu nda, um objeto se torna criação (BRUNEL, 2000, p. xvi- xvii).

A partir desta ‘criação’ de uma realidade por meio da explicação mítica, podemos inferir também que exista, no centro de cada homem, entre o divino, o físico e o humano, mais do que continuidade: há parentesco, co-naturalidade. Ou ainda, também para Brandão (1997, p. 35-36), mito é a narrativa de uma criação que conta-nos como algo que não era, começou a ser, sendo, portanto uma representação coletiva. “Na medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional” (idem). Assim, ainda segundo o autor, “o mito atrai, em torno de si, toda a parte do irracional no pensamento humano, sendo, por sua própria natureza, aparentado à arte, em todas as suas criações” (p. 14).

Os mitos, portanto, têm lugar de destaque na organização social devido à profundidade e abrangência com que funcionam no grande e difícil processo de formação da consciência coletiva. Assim é que, em sua essência, são símbolos que denotam a formação social dos povos helenos, e sua consolidação como berço da cultura ocidental, aqui entendida no seu sentido mais amplo de Paidéia, que nos foi legado ao longo de três mil anos.

Não é possível dissociar a explicação mítica sobre a origem do mundo e os fenômenos naturais, das concepções religiosas de um culto politeísta, bem como da vida política das polis gregas que se desenvolveram posteriormente. Cada homem de nobre estirpe o é, porque pertencente a uma casta que descende dos deuses. E esta co- naturalidade com os deuses do panteão olimpiano nos é importante, para

compreendermos o fio da formação humana. Segundo Jaeger (2010, p. 32), os deuses de Homero são uma sociedade imortal de nobres e a essência do culto grego exprime-se no fato de honrar a divindade pela sua areté.

Encontramos, na época homérica, sob o aspecto religioso, uma mistura de tradições que, antes de tudo, está longe de ser primitiva. “Os poemas homéricos são testemunhos das crenças não só dos helenos, mas também dos aqueus e pré-helenos, talvez até dos minoanos e cários” (AUBRETON, 1956, p. 102).

A superior força do espírito grego considerava, tanto a natureza quanto a comunidade, como um todo ordenado em conexão viva, onde tanto o mito, quanto o culto fornecerão as bases necessárias para o surgimento do pensamento reflexivo. Sua poesia, segundo Vernant (1984, p. 26), “tende a afastar o mistério a partir do seio do próprio mito”.

O mito serve, portanto, de instância normativa. Contudo, os grandes homens da Grécia não se manifestam como profetas de um deus, mas antes como mestres e formadores do povo. A educação pelos mitos se reveste, em parte, mesmo assim, na forma de mandamentos, tais como: honrar os deuses, honrar pai e mãe, respeitar os estrangeiros. Ela consiste, por outro lado, numa série de preceitos sobre a moralidade externa e em regras de prudência que são transmitidas oralmente de geração a geração.

Assim, tal como escreveu Brandão (1997, 39), “a religião, para os antigos, é a reatualização e a ritualização do mito. (...) Através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as forças e energias que jorraram nas origens”.

Os mitos, portanto, justificam a transmissão da cultura, recriam um povo, dão a este os tons, as tonalidades e as formas estéticas da dimensão humana. Vale relembrarmos que a plástica e inspirada religião da Hélade escalou montanhas nas asas da poesia e do mito. Para os gregos antigos, a lua, o sol, a aurora, a luz do dia, a escuridão da noite, e da mesma forma uma montanha, uma gruta, uma fonte, um rio, um bosque, podem ser percebidos e sentidos no mesmo regis tro de sentimento que um dos grandes deuses do panteão.

A mitologia grega chegou até nossos dias através da poesia, da arte figurativa e da literatura erudita. Ademais, houve, na Grécia, uma conexão forte de liame tênue entre a literatura, a arte figurativa e religião. Contudo, “ao plasmar o material mitológico, os poetas e artistas gregos não obedeciam tão-somente a critérios religiosos, mas também, e isso é fácil de perceber, a ditames estéticos” (BRANDÃO, 1997, p. 26).

Partindo destes ditames estéticos, podemos agora conhecer as mãos “divinas” (em sentido mitológico) que organizarão os primeiros fios na barra de urdidura.