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Considerando que o objeto de investigação nesta tese de doutoramento tem um forte enraizamento no cotidiano dos sujeitos pesquisados e no campo de suas subjetividades, decidiu-se por escolher dentro das abordagens metodológicas qualitativas a pesquisa-formação. Entende-se que essa concepção metodológica é a melhor forma de apreender a realidade, pensá-la na fluidez de seu processo e envolver ativamente os pedagogos e pedagogas numa dinâmica que, além de permitir um mergulho nas suas subjetividades, desvelando os sentidos que os mesmos atribuem às suas práticas, também promove um processo de envolvimento e autoconscientização acerca da problemática investigada.

A pesquisa-formação tem sua matriz na pesquisa-ação, já que busca um efetivo envolvimento dos pesquisadores no movimento de transformação individual e coletiva, trazendo uma variedade de atividades no campo empírico, bem como colocando a possibilidade de transformação social. Esta perspectiva encontra fundamentação na dialética histórica, no conceito de práxis, tal como proposto por Marx, que convoca uma Filosofia que não apenas interprete o mundo, mas que possa transformá-lo, por meio de uma relação de imbricação entre prática-teoria-prática (JOSSO, 2004).

Além do caráter de ação dialética, de busca de transformação, Josso destaca como característica dessa proposta metodológica o sentido de

“experiência”– a pesquisa-ação e a pesquisa-formação geram uma experiência

que apresenta uma natureza específica. Se no positivismo encontramos uma separação entre sujeito e objeto, na perspectiva que analisamos, é no movimento intersubjetivo, no encontro e na partilha do processo de investigação que o conhecimento é produzido e, assim, a pesquisa-formação assenta-se numa

experiência existencial que produz conscientização. O postulado da pesquisa- formação é, pois, de que a intensidade dessa experiência pode produzir conscientização como processo que não pode ser ensinado, mas que é vivido de maneira muito pessoal pelo sujeito – um movimento que leva à busca de

transformação. Essa perspectiva de investigação não nega o caráter científico, antes busca um saber, fruto de uma objetivação, apresentando múltiplas dimensões.

No que tange à escolha das técnicas de pesquisa utilizadas para apreender a realidade, buscou-se, inspirada no conceito de “implicação epistemológica”

desenvolvido por Barbier (2002, p.102), utilizar técnicas que permitissem envolver os sujeitos da pesquisa num processo de autoconscientização e de engajamento no processo, de modo que eles pudessem refletir sobre sua própria prática, os sentidos e os significados presentes em sua ação pedagógica.

Diante disso, houve a preocupação de escolher técnicas que contribuíssem para que as pedagogas e os pedagogos refletissem sobre suas visões de mundo, os significados sociais dos conceitos implícitos na sua prática e o sentido que constroem sobre suas ações - tentando, como diz Bourdieu (id.: 37),

“compreender por que se compreende e como se compreende” o trabalho

pedagógico desenvolvido por aquele grupo.

Nesta perspectiva, trabalhou-se num primeiro momento com a técnica de grupos focais em encontros organizados na forma de seminários nos quais se desenvolveram os temas norteadores da investigação. Esse recurso permitiu escutar os sujeitos da pesquisa na construção real do aprendizado e produzir, junto com eles, um “novo olhar”, aquilo a que se chama de “ruptura

epistemológica” (BOURDIEU,1998a, p.49). Para nós, este movimento poderia ser

denominado de “pesquisa-formação na análise da prática pedagógica”. Em

história de vida, a qual emergiu como possibilidade de realizar um mergulho profundo nas nuances e particularidades que o objeto comporta.

A definição dos temas norteadores da pesquisa implicou um momento de profunda reflexão, pois, se por um lado deveriam tornar explícitos para a pesquisadora os aspectos a serem desvelados na investigação, por outro lado deveriam ser portadores do potencial de fazer o grupo viver a reflexão, extrair dali elementos que contribuíssem com a sua formação, provocar um olhar diferente sobre a sua realidade e “seduzir” o grupo para o engajamento no processo de

análise do campo empírico da pesquisa.

A escolha dos temas norteadores, portanto, além de se preocupar com os aspectos acima expostos, foi precedida da seguinte necessidade: identificar quem eram as pedagogas e os pedagogos, suas identidades, suas visões de mundo, o significado construído acerca de sua atuação na educação profissional, os sentidos atribuídos à sua prática, suas percepções acerca de como acontece a sua intervenção na realidade e no cotidiano da escola de educação profissional.

Neste sentido, foram consideradas as seguintes proposições de execução do projeto de formação/ação:

a) a necessidade de construir uma trajetória equilibrada na seleção dos temas norteadores que pudessem tanto desencadear um processo de conscientização no grupo acerca de questões subjacentes à sua prática quanto elucidar as questões e o problema que inspirou a pesquisa; b) a apreensão desses temas teria de ser um dos fios condutores a

estruturar os encontros, aprimorando o desenvolvimento de competências e saberes relativos aos processos de significação social acerca da pedagogia do trabalho, da educação profissional e do sentido pessoal que cada um atribui ao trabalho pedagógico desenvolvido nas práticas em educação profissional;

c) o entendimento do caminho metodológico traçado para melhor compreender a relação teoria/prática e os tipos de conteúdos que estariam em jogo nas diferentes situações de ação/pesquisa e aprendizagem.

Esboçadas as proposições, seria importante refletir até que ponto a perspectiva da pesquisa-formação emanciparia as pedagogas e o pedagogo. Isso significaria pensar nas implicações epistemológicas: como elas e ele estariam se fortalecendo na interação com a pesquisa, na reciprocidade do sentir, pensar e agir no cotidiano da escola de educação profissional.

Dentro dessa perspectiva, deu-se encaminhamento aos encontros do grupo tendo em vista “conhecer a realidade do mundo tal qual nós a percebemos nas

nossas interações” (BARBIER, 2002, p.115). Refletiu-se coletivamente, portanto,

sobre os temas norteadores que dariam suporte ao caminho metodológico da pesquisa.

O interesse não era o de explicar/aplicar esses temas diretamente na pesquisa, mas o de que eles servissem de guia, de orientação e discussão da prática pedagógica, das visões de mundo, dos significados e sentidos subjacentes a essa prática, trazendo à tona as questões propostas de esclarecer na pesquisa e tornar conscientes para os sujeitos as suas opções e direções na condução de sua própria prática. Era preciso, então, escutar os sujeitos, dar-lhes voz: compreender como eles estavam se inserindo no campo do referencial teórico- prático da pesquisa-formação e se a reflexão acerca desse referencial estaria contribuindo para a ressignificação das suas respectivas práticas.

Definiram-se três temas para trabalhar com o grupo e, na medida em que os três temas norteadores iam sendo refletidos, debatidos, esclarecidas, as pedagogas e o pedagogo compreendiam qual o caminho que estavam tomando e como seria possível apostar em mudanças na realidade investigada.

Partiu-se da ideia de que era preciso “pronunciar o mundo” (FREIRE, 1997,

p.10), mas com coerência. Tomar posições e decisões em “um sistema de

relações entre posições que conferem sua particularidade a cada posição e às tomadas de posição implicadas” (BOURDIEU,1998b, p. 190).

Assim, o primeiro encontro serviu para compartilhar as intenções metodológicas e discutir com o grupo a pertinência da pesquisa-formação como forma de poder realizar um trabalho mais consciente na escola de educação profissional.

As atividades tiveram início com a apresentação da proposta da pesquisa, estabelecendo certa “contratualização” (BARBIER, 2002, 118): pensar em uma

espécie de “contrato de ação”. E assim, juntos, construiu-se um “contrato de ação”

indicando:

a) suas finalidades;

b) suas funções dentro dos diferentes contextos trabalhados na pesquisa; c) o tempo dedicado às atividades de pesquisa e formação, à organização

do trabalho individual e coletivo;

d) o resgate da história de vida através de relatos individuais, assistidos pelo grupo, assegurando a coerência e a continuidade;

e) a troca de experiência;

f) a validação de todo material produzido.

Merece destaque a riqueza da experiência produzida, as formas de participação e de interação com os temas norteadores, a qualidade das relações interpessoais nas atividades com os grupos focais e, sobretudo, as histórias de vida que permitiram a imersão na esfera da subjetividade e do simbolismo, firmemente enraizados no contexto social do qual emerge o objeto enfocado. Foi através dessa imersão que se penetrou nas intenções e motivos a partir dos quais as ações e relações adquirem sentido no âmbito da prática dos pedagogos que atuam na escola de educação profissional.

De fato, a abordagem metodológica escolhida proporciona toda essa riqueza de relações e interações. A técnica de pesquisa com a história de vida, por exemplo, preocupa-se com uma realidade que não pode ser quantificada, respondendo a questões muito particulares, trabalhando um universo de significados, crenças, valores e que correspondem a um espaço mais profundo

das relações, dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.

Portelli (1997), discutindo a importância da história oral, recurso de muitas pesquisas qualitativas, afirma que é a subjetividade do expositor que fornece às fontes orais o elemento precioso que nenhuma outra fonte possui em medida igual. A história oral, mais do que eventos, fala sobre significados; nela, a aderênc ia ao fato cede passagem à imaginação, ao simbolismo.

Esta possibilidade, permitida pelo recurso da história de vida, afigurou-se como particularmente relevante neste estudo, mesmo considerando a crítica existente a esse tipo de abordagem.

Uma crítica constante à abordagem qualitativa é aquela que diz respeito ao rigor do método utilizado, ou seja, a problemática da validade e da verificação nas ciências sociais. Em outras palavras, a questão da cientificidade e a suposta fragilidade da pesquisa qualitativa nessa esfera. Embora se aceite que a produção intelectual é sempre um ponto de vista a respeito do objeto, Demo (1986) levanta critérios de cientificidade internos e externos para que um trabalho seja considerado científico.

Os critérios internos seriam a coerência, a consistência, a originalidade e a objetivação. A coerência significa a argumentação lógica, concatenada, premissas iniciais, construção do discurso e conclusões congruentes entre si. A consistência traduz-se na capacidade de resistir a argumentações contrárias; refere-se à qualidade argumentativa do discurso. A originalidade diz respeito a uma produção inovadora, que permite o conhecimento avançar. A objetivação é a palavra empregada por Demo (1986) para substituir o conceito de objetividade, uma vez que não aceita a possibilidade de um conhecimento objetivo, e tem por significado a tentativa de reproduzir a realidade o mais próximo possível do que é, ou seja,

expressa a busca de uma aproximação cada vez maior ao objeto que se pretende estudar e compreender.

Acredita-se, neste sentido, que o mergulho no cotidiano e no subjetivo dos sujeitos pedagogos propiciou uma melhor aproximação com o objeto estudado.

Demo (1986, p.17) aponta também como critério externo de cientificidade a intersubjetividade, significando “a ingerência da opinião dominante dos cientistas

de determinada época e lugar de demarcação científica”. Em outras palavras, a

vigência do argumento de autoridade em ciência. O autor alerta para a necessidade de visualizar a ciência como produto social, histórico e em processo de formação. Acrescenta, ainda, que toda discussão aberta de demarcação científica trará mais problemas que soluções, uma vez que a ciência dá soluções apenas à medida que levanta novos problemas.

Acredita-se, portanto, que considerar a história de vida dos sujeitos pesquisados é visualizar a ciência como produto social e apostar na possibilidade de captar a historicidade do fenômeno investigado nos diferentes contextos de suas vidas e no ponto de intersecção que é a prática pedagógica na escola de educação profissional, considerando as características peculiares destes contextos e o caráter criativo da interação social.

A história de vida, neste sentido, permitiu captar o que acontece na intersecção do individual com o social, assim como identificar os elementos do presente que se fundam em evocações passadas. Pode-se dizer, assim, que a vida olhada de forma retrospectiva faculta uma visão total de seu conjunto, e que é o tempo presente que torna possível uma compreensão mais aprofundada do momento passado. É o que, em outras palavras, nos diz Soares (1994) quando discute as articulações entre os conceitos vida e sentido: “somente a posteriori

podem-se imputar, aos retalhos caóticos de vivência, as conexões de sentido que os convertem em ‘experiência’” (SOARES, 1994, p.23).

Contudo, ficou-se atenta aos avanços e recuos da cronologia própria e da fantasia e idealização que costumam permear narrativas quando elas envolvem lembranças, memórias e recordações. Farias (1994) adverte que as entrevistas de história de vida trabalham com memória e, portanto, com seletividade, o que faz com que o entrevistado aprofunde determinados assuntos e afaste outros da discussão. Para minimizar este aspecto, os temas norteadores das discussões nos grupos focais também serviram como questões norteadoras dos relatos. No entanto, como diz Bosi (1994), o que interessa quando se trabalha com história de vida é a narrativa da vida de cada um, da maneira como ele a reconstrói e do modo como ele pretende que seja narrada. Assim, tomou-se o cuidado para que essas questões norteadoras fossem suficientemente amplas e abertas, de modo a não limitar a liberdade de reconstrução dos sujeitos pedagogos.

Queiroz (1988) coloca a história de vida no quadro amplo da história oral, que também inclui depoimentos, entrevistas, biografias, autobiografias. Considera que toda história de vida encerra um conjunto de depoimentos e, embora tenha sido o pesquisador a escolher o tema, a formular as questões ou a esboçar um roteiro temático, é o narrador quem decide o que narrar. A autora vê na história de vida uma ferramenta valiosa exatamente por se colocar justamente no ponto no qual se cruzam vida individual e contexto social.

Haguette (1987) considera que a história de vida, mais do que qualquer outra técnica, exceto talvez a observação participante, é aquela capaz de dar sentido à noção de processo. Este “processo em movimento” requer uma

compreensão íntima da vida de outros, o que permite que os temas abordados sejam estudados do ponto de vista de quem os vivencia, com suas suposições, seus mundos, suas pressões e constrangimentos.

A definição de história de vida complementa os vários elementos já apontados pelos autores acima cotejados. Denzin (1984) acrescenta ser a história de vida um arquivo entrelaçando o verdadeiro, o vivido, o adquirido e o imaginado.

A história de vida pode ser, desta forma, considerada instrumento privilegiado para análise e interpretação, na medida em que incorpora experiências subjetivas mescladas a contextos sociais. Ela fornece, portanto, base consistente para o entendimento do componente histórico dos fenômenos individuais, assim como para a compreensão do componente individual dos fenômenos históricos.

Assim, as técnicas de pesquisa com grupos focais de discussão de temas norteadores complementados com a técnica das histórias de vida se constituíram em instrumentos por excelência de pesquisa, ação e formação dos sujeitos envolvidos no processo, possibilitando à pesquisadora uma importante imersão nas circunstâncias e contexto da pesquisa, além de um mergulho profundo nos sentidos e emoções. Legitimaram também o reconhecimento dos atores sociais como sujeitos que produzem conhecimentos e práticas; os resultados da pesquisa como fruto de um trabalho coletivo resultante da dinâmica entre a pesquisadora, as pesquisadas e o pesquisado; a aceitação de todos os fenômenos como igualmente importantes e preciosos: a constância e a ocasionalidade, a frequência e a interrupção, a fala e o silêncio, as revelações e os ocultamentos, a continuidade e a ruptura, o significado manifesto e o que permanece oculto.

Como procedimento de coleta de dados utilizou-se a técnica de videogravação, tanto dos seminários com os grupos focais quanto nos relatos das histórias de vida, visando à análise e autoavaliação do material produzido pelos sujeitos protagonistas acerca de seus posicionamentos nos diversos momentos da pesquisa. Por meio da videogravação objetivou-se apreender as posições ou pontos de vistas dos atores nas diversas situações enfocadas no processo da pesquisa-formação e devolvê-las aos mesmos para serem refletidos, discutidos e

reelaborados, propiciando, assim, um maior grau de autorreflexão. O material videogravado foi submetido a sessões de análise a posteriori por cada um dos sujeitos, com questionamentos que o fizessem refletir, à luz dos temas norteadores, sobre suas verbalizações durante os seminários e relatos das histórias de vida videogravadas. Essa ação imprimiu um maior potencial formativo- reflexivo acerca das questões trabalhadas, constituindo-se numa excelente estratégia de formação e de autopercepção. Nos questionamentos teve-se o cuidado de não direcionar ou tendenciar os posicionamentos, atendo-se mais a questionar como se chegou a determinado posicionamento e o que isso significa, na percepção do ator, para a sua prática. Considerou-se, pois, a necessidade de reconhecer e respeitar as pedagogas e o pedagogo, co-autores da investigação, enquanto sujeitos de sua ação, promovendo, além da avaliação de si, a autonomia do seu pensar e fazer.

As estratégicas, as premissas e as diretrizes de ação organizacional, através da coleta de dados de diferentes fontes, já vinham sendo observadas desde o projeto político pedagógico até outros documentos que retratam as práticas na instituição pesquisada.