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3.2 A Educação Profissional sob Duas Lógicas: formação humana e formação

3.2.1 Formar para o mercado ou para a emancipação?

As propostas de educação profissional, face às significações sociais que lhes são conferidas, situam-se entre duas fronteiras: de um lado, a defesa dos educadores críticos de que sua função é formar o ser humano em sua integralidade, na qual se insere o trabalho como princípio educativo; e de outro lado, a existência de práticas subsumidas ao mercado, nas quais a educação profissional é sinônimo de treinamento. Face ao exposto, o presente capítulo

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Cf Macário (2005). A necessidade que está na origem da educação consiste em que a continuidade da experiência humana exige que cada indivíduo singular reproduza a cultura material e intelectual objetivada

pelo trabalho e pela práxis social. A função específica da educaçãoconsiste precisamente nisto: em mediar a

apresentará uma breve discussão sobre essas significações, analisando os seus reflexos para o sentido concreto das práticas e função social da escola de educação profissional.

Os processos de transformação na base técnica e econômica do modelo capitalista de produção na contemporaneidade, discutidos no item anterior, não só repercutem nos modos de organização dos processos de trabalho especificamente, mas também interferem em diferentes dimensões da vida social, atingindo de forma direta o Estado, as políticas sociais e o mundo do trabalho.

Os diversos contextos da sociabilidade humana passam a ser fortemente impactados pelas forças econômicas que impõem seus modelos como receitas de sucesso a serem seguidas nas várias instâncias de organização da vida social. O mercado erige-se ao patamar de modelo ideal a ser seguido e a organização empresarial passa a ser sinônimo de organização perfeita para inspirar as práticas sociais em diversos âmbitos.

A escola, principalmente a escola de educação profissional, devido à proximidade que mantém com o mundo produtivo, é fortemente impactada por essas mudanças, que passam a imprimir novos rumos às suas práticas.

Essas mudanças se expressam no interior das escolas de educação profissional tanto através da adequação das suas formas de gestão aos requisitos da competitividade que rege as empresas capitalistas quanto através da aproximação das suas práticas formativas com as demandas e exigências do mercado. Nesse movimento em que a educação profissional tem sido valorizada como fator de elevação da competitividade das organizações e dos indivíduos, tem também se intensificado o surgimento de empresas que vendem treinamento no mercado para fazer frente a essa demanda.

Do ponto de vista dos projetos pedagógicos implementados, há uma significativa diferença entre essas empresas e as escolas das principais redes de educação profissional do País, como, por exemplo, a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica5 e o Sistema S6. Todavia, essas escolas também têm sido fortemente impactadas pelo ideário do modelo mercadológico.

O Sistema S, por exemplo, sob os efeitos da reforma do Estado brasileiro implementada a partir do Governo Collor, em meados dos anos de 1990, passou por grandes mudanças. A ocorrência do questionamento do chamado Custo Brasil impulsionou alterações no recolhimento do imposto compulsório, que constitui o fundo de financiamento do referido Sistema. Para fazer frente ao encolhimento desse recurso e à ameaça de sua possível extinção, o referido Sistema passou a adotar estratégias de gestão baseada na autossustentabilidade financeira. Isto implicou a adoção de práticas de gestão que cada vez mais tendem a ocorrer numa perspectiva alinhada ao mundo da mercadoria e dos negócios.

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A Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica cobre todos os estados brasileiros, oferecendo cursos técnicos, superiores de tecnologia, licenciaturas, mestrado e doutorado.

6 O chamado sistema

“S” é formado por instituições criadas pelos setores produtivos (indústria,

comércio, agricultura, transportes e cooperativas), com a finalidade de qualificar e promover o bem- estar social de seus trabalhadores. As instituições que compõem o sistema “S” são as seguintes:

SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, a quem cabe a educação profissional e a prestação de serviços de assistência técnica e tecnológica às empresas do setor industrial, SESI –

Serviço Social da Indústria, que desenvolve ações em educação, saúde e lazer para o trabalhador da indústria e para os seus dependentes, SENAC - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, que promove a educação profissional para trabalhadores do setor de comércio e serviços, SESC –

Serviço Social do Comércio, que desenvolve ações em educação, cultura, saúde e lazer para o trabalhador do comércio e serviços e para os seus dependentes, SENAR - Serviço Nacional de Aprendizagem Rural, que desenvolve educação profissional para trabalhadores rurais, SENAT - Serviço Nacional de Aprendizagem em Transportes, que desenvolve educação profissional para trabalhadores do setor de transportes, SEST - Serviço Social de Transportes, responsável pela promoção da qualidade de vida dos trabalhadores do setor dos transportes, SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Médias Empresas, que desenvolve programas de apoio ao desenvolvimento de pequenas e médias empresas e o SESCOOP - Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo, que visa ao aprimoramento e desenvolvimento das cooperativas e capacitação profissional dos cooperados para exercerem funções técnicas e administrativas.

A partir dessa orientação, tanto as ações educativas que compõem os currículos da educação profissional nessas instituições passam a ter uma vinculação mais estreita com os fins e valores do mercado de trabalho, como a própria forma de gerenciamento das referidas instituições passa a ser conformada aos moldes de uma empresa capitalista moderna e aos critérios de produtividade, eficácia e eficiência dos processos produtivos.

Da adequação da gestão das instituições de educação profissional aos padrões de eficiência e competitividade empresarial decorrem várias consequências como, por exemplo, o aligeiramento da formação, uma vez que a urgência e a funcionalidade da produção capitalista contrastam com o tempo exigido para a formação humana, que é um tempo de reflexão e amadurecimento sobre seus possíveis encaminhamentos. Decorre também um novo e sutil exercício linguístico que vai sendo posto em prática para nomear e criar outra realidade. Os termos e conceitos da Pedagogia vão sendo substituídos pelos termos e conceitos da retórica pragmática do mercado, através da naturalização de uns, construção, re-significação, modificação ou substituição de outros, o que, por seu turno, vai também demandando uma nova postura dos educadores, uma vez que a incorporação dos novos conceitos implica condutas mais convenientes ao postulado pedagógico do mercado.

A Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, a partir da implantação da nova legislação – a Lei 9.394/96 (LDB), e do Decreto 2208/97, que

regulamentava a LDB no tocante à educação profissional até 2004, quando foi substituído pelo Decreto 5.154, e a Portaria 646/97, disciplinadora do assunto no âmbito da rede federal de educação – também passou por profundas mudanças.

Kuenzer (2001, p.82-83), ao analisar as referidas mudanças, tece as seguintes considerações:

a) nos anos de 1990, a Secretaria do Ensino Médio e Tecnológico do Ministério da Educação e Cultura - SEMTEC/MEC adotou como meta reduzir os custos das Escolas Técnicas Federais - ETFs e Centos Federais de Educação de Educação Tecnológicas – CEFETs, sob a

ensino médio e formação técnica implementados por aquelas instituições, tendo em vista que tais instituições deveriam beneficiar exclusivamente os que vão para o mercado de trabalho sem ingressar na universidade. Conforme a referida autora, tal prerrogativa teve como base uma proposta defendida por Cláudio Moura Castro, consultor do Banco Mundial, que afirmava que a existência de alunos que já nascem por efeito de alguma determinação biológica, porém jamais social,

“academicamente menos dotados”, e que caminhariam mais cedo para

a preparação ocupacional por meio de currículos “mais aplicados”, mais

práticos e, portanto, não acadêmicos;

b) o PL 1603/96 propõe o desmonte das escolas da rede federal para que pudessem abranger parcela maior de trabalhadores, independentemente da escolaridade, com cursos profissionais básicos de curta duração ou de módulos independentes que poderão levar ou não levar à conclusão do curso técnico de nível médio;

c) esses cursos deveriam ser oferecidos “obedecendo à lógica do

mercado (e da mercadoria, porque deveriam reverter em recursos captados junto ao setor privado) por meio da identificação de perfis, estudos de demanda e acompanhamento de egressos, bem ao gosto da teoria do capital humano”.

Mesmo que essas determinações no interior dessas escolas não ocorram de maneira linear, apresentando-se como contraponto, inclusive, a adoção de projetos pedagógicos embasados em conceitos e categorias mais amplos de educação profissional e tecnológica, principalmente na rede federal, não podemos ignorar o peso das representações sociais da educação profissional como sinônimo de treinamento e encaminhamento de apelo mercadológico que ocorrem no interior dessas escolas, seja por força do modelo de gestão adotado que tem como fonte inspiradora a organização empresarial, seja por força da dimensão pedagógica implícita nas relações sociais de produção que acabam por imprimir suas exigências às referidas escolas.

Os efeitos desse movimento ocorrido no interior das instituições de educação profissional redundaram em algumas consequências nas suas culturas educacionais, como, por exemplo, o enfraquecimento da identidade pedagógica formativa e o fortalecimento de uma identidade empresarial mercadológica que melhor se coaduna com a nova pedagogia do trabalho.

A compreensão dos contornos que assume essa nova pedagogia do trabalho que atualmente se exercita nas instituições de educação profissional também passa pela compreensão dos efeitos da crise da razão sobre a atuação dos educadores, o desencantamento com a política que daí decorre e de como a política passa a ser, sem resistência, condicionada, ou mesmo determinada, pelas forças econômicas globais, o que certamente traz implicações para a educação do trabalhador.

Compreender, pois, a dinâmica dessa tendência é crucial não só para entender como a política está dirigida para o mercado, mas também para desvelar a sua oposição a propostas educativas comprometidas com a verdadeira formação humana, uma vez que uma política pedagógica submissa aos valores do mercado e uma política pedagógica emancipatória se apoiam em lógicas opostas.

Numa prática pedagógica submissa ao postulado do mercado, como das empresas de treinamento, os alunos são “clientes” de seus professores, os

educadores são os facilitadores da nova pedagogia da qualidade total, a educação é o produto educacional, os processos de efetivação da educação são denominados de produção, os administradores escolares passam a ser os agentes do mercado e a escola passa a ser a empresa que deve ser regida conforme a lógica da competitividade. Tal dinâmica, ao forçar as relações educacionais a caberem no molde do mercado, degrada as instituições de ensino que a incorpora e rouba o significado da educação.

Essa dinâmica que se exercita nas empresas de treinamento é copiada, em parte, tanto por algumas escolas de educação profissional como modelo ideal para atingir os níveis de eficiência e eficácia almejados pela organização empresarial, como muitas vezes se transfere para as políticas públicas de formação dos trabalhadores brasileiros, uma vez que muitas dessas empresas são contratadas para realizar os cursos de programas como o Programa Nacional de Capacitação – PNQ.

Como consequência, vai se conformando a pedagogia pragmática de inspiração liberal que defende a necessidade de formação de indivíduos cuja característica subjetiva principal seja a aptidão para a competitividade da vida urbana, do trabalho, da economia e dos demais espaços públicos. Tal pedagogia é regida pela lógica da prestação de serviços, pela eficácia, pelo culto ao irracionalismo e ao imobilismo em que o aluno recebe, também cada vez mais, reforços de uma educação funcionalista, pois é o mais bem aceito pelo mercado. Portanto, quanto mais o mercado requer, mais reforço há de que o mercado é a voz da realidade. Todavia, tal pedagogia se apresenta anacrônica, inclusive em relação às próprias demandas da nova pedagogia do trabalho. Como vamos formar o sujeito polivalente, com visão sistêmica, sem os fundamentos técnico- científicos e sócio-político-culturais para traduzir as exigências do mundo produtivo atual, por exemplo? Prepararmos um profissional "de mercado" pode trazer obviamente o erro de um profissional feito unicamente "para o mercado", para atender a demanda de um funcionalismo que tudo requer, menos a razão crítica que enxerga o mundo como uma totalidade e a análise dos dados que esse mercado de informações tão diligentemente divulga.

Com a implementação desse modelo pedagógico vamos dando cabo a uma prática educativa que cada vez mais suprime de seu seio a capacidade de pensar criticamente, de antecipar formas determinadas de interação, de manter a independência social e de comparar diferentes formas de interação que passam a integrar um repertório de indicações disponíveis na consciência, estabelecimento de comparações e reconhecimento de situações.

Com isso evidencia-se que uma pedagogia que tem o mercado como referência é vazia e não tem base de sustentação para respaldar sequer as exigências desse próprio mercado e muito menos ainda para dar conta da finalidade ética da educação e da função social da escola. Ao contrário de uma pedagogia que se inspira no mundo do trabalho e toma o trabalho como princípio

educativo, o que por si só corrobora para não se perder de vista a finalidade da educação e a função da escola.

Se a finalidade da educação é de humanização e, portanto, a função da escola é de organizar e transmitir os conhecimentos, habilidades e valores construídos histórica e coletivamente no processo civilizatório, pode-se dizer que a educação profissional é uma instância mediadora da condição humana em sua historicidade que lida com o fenômeno educativo em suas especificidades e se dirige para o trabalho.

Compreende-se que a educação, particularmente a educação profissional, se constrói a partir de relações sociais historicamente situadas. Assim como em Manfredi (2002, p.57), considera-se que a educação profissional tem uma dimensão social intrínseca que extrapola a simples preparação para uma ocupação específica no mercado de trabalho e “postula a vinculação entre a formação técnica

e uma sólida base científica, numa perspectiva social e histórico-crítica”.

Assim, visualizam-se três dimensões imprescindíveis à educação profissional, sem as quais a mesma não se realiza em seu sentido amplo. A dimensão técnico-científica, por se entender que essa modalidade de educação não pode desprezar os elementos culturais que precisam ser assimilados, ou seja, os saberes científicos enquanto conhecimento metódico e sistematizado. Significa, pois, colocar à disposição dos educandos os elementos para que “cada indivíduo

singular realize, na forma de segunda natureza, a humanidade produzida historicamente” (SAVIANI, 2003, p.14).

A dimensão sócio-político-cultural como aquela que contempla os saberes sociais e que servem como referências para desvelar a realidade, entender a essência e a lógica dos fenômenos que hoje determinam as relações sociais. Sem essa dimensão os educandos correm o risco de construírem suas visões a partir dos substratos teóricos hegemônicos dos quais se nutre o sistema social vigente,

que justifica e encobre as contradições da sociedade capitalista, uma vez que tais substratos, além de serem formadores de pensamento, também são formulados para justificar essas contradições.

Por fim, a dimensão específica da formação profissional, a que comporta os saberes profissionais. Entendendo, assim como Savianni (2003), que o “habitus” é

condição da liberdade e que não é possível ser criativo sem dominar determinados mecanismos. O referido autor, ao se reportar ao desenvolvimento de habilidades como, por exemplo, dirigir, ler e escrever, ressalta que isso se faz a partir da fixação de certos automatismos e de sua incorporação, isto é, quando passam a fazer parte do nosso corpo, de nosso organismo, são interiorizados em nosso próprio ser para nos permitir agir com segurança e desenvoltura.

Com isso se quer dizer que também as habilidades dos ofícios são desenvolvidas através de um processo deliberado e sistemático de domínio de mecanismos e que nem por isso essa dimensão perde em importância na educação profissional, uma vez que ela ocorre através de um processo de superação no sentido dialético, ou seja, os aspectos mecânicos são negados não por exclusão, mas por incorporação, se convertendo, assim, numa espécie de segunda natureza. Tal dimensão certamente tem um papel preponderante na evolução e transformação das técnicas e tecnologias do trabalho.

Contudo, nenhuma dessas dimensões isoladamente é capaz de dar conta da complexidade da educação para o trabalho, mas somente o seu conjunto pode ser capaz de conferir uma finalidade voltada à humanização do homem na educação profissional.

Franco (2005a), chama a atenção para o fato de que se a educação é o instrumento por excelência da humanização dos homens em sua convivência social, ocorre que dadas as condições sócio-político-culturais concretas do momento histórico atual, impõem-se limites ao projeto humanizatório, uma vez que

nem todas as condições educacionais conduzem a mais humanidade e mais emancipação. Muitas práticas educativas não se concretizam como tal e funcionam, muitas vezes, como instrumentos de desumanização, de opressão e de alienação.

Adorno (1995, p.21) sabiamente sentencia que “a educação tem sentido

unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica”. Ou seja, cabe à

educação, qualquer que seja sua modalidade, formar pessoas capazes de pensar.