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Capítulo 1 – Memórias da ditadura civil-militar brasileira

1.2 A memorialística sobre a d itadura

1.4.1 A opção pela luta social

O cristianismo considera batizado o indivíduo que morre pela fé antes de receber o sacramento. No ato do martírio, considera-se que há um batismo, não de água, mas de sangue. Batismo de Sangue torna-se uma das exceções da cena literária dedicada ao testemunho que ganha espaço no debate público do Brasil da abertura. Em seu livro lançado no primeiro semestre de 1982, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, narra a participação dos frades dominicanos de São Paulo no apoio a organizações da esquerda no Brasil. Além do autor do livro, Oswaldo Rezende, Luiz Felipe Ratton, Ivo Lesbaupin, Roberto Romano, Magno Vilela, Fernando de Brito, Giorgio Callegari, João Antônio Caldas e Tito de Alencar Lima seriam atingidos pela repressão por conta da aproximação com grupos guerrilheiros.

Batismo de Sangue, ao ser lançado em 1982, já era o décimo primeiro livro de Frei Betto. Tratava-se de um narrador distinto dos ex-militantes que se colocavam a falar da experiência da clandestinidade, do exílio e das torturas. Se a Igreja Católica será fundamental no desenvolvimento de uma agenda de lutas pelos direitos humanos no Brasil a partir da segunda metade da década de 1970, o frade que narrava a experiência da resistência à ditadura tinha uma

trajetória de proximidade com a guerrilha urbana que não se encaixava na ideia da luta pela constituição dos direitos humanos em uma sociedade de classes. Tratava-se muito mais de uma escolha pelo direito à rebelião, pela defesa da insurreição contra a tirania. Expor a história dos dominicanos era justificar as ações deste grupo, construir sob o signo da religião o argumento acerca da opção pelo apoio à luta armada.

Não só nas memórias de Frei Betto, como em falas de outros dominicanos, a explicação da aproximação com o movimento de oposição à ditadura é assunto privilegiado.

Como os frades no Brasil assumiram posições de esquerda? Abandonaram a fé e abraçaram o marxismo? Lobos travestidos de cordeiros revestidos em hábitos brancos?

O papa João XXIII varreu, como ele mesmo disse, a poeira acumulada no trono de Pedro. Seu breve pontificado (1958-1962) abalou os alicerces da Igreja Católica. (…) O Concílio Ecumênico Vaticano II, convocado por ele, foi o desaguadouro do movimento de renovação fermentado no interior da Igreja ao longo da primeira metade do século XX.

(…) O ano de 1967 marca a virada no modo de viver dos dominicanos de São Paulo. A Igreja Católica mergulhara na “secularização” (Harvey Cox, The secular city, 1965), a volta ao mundo, a desclericalização de seus agentes de pastoral. A moda consistia em dependurar a batina, usada apenas em ofícios religiosos, trocar o seminário pela universidade e o convento por pequenas comunidades residindo em apartamentos, e viver do próprio trabalho.192

A militância dos frades iniciou antes do golpe de 1964, através da Juventude Estudantil Católica e da Juventude Universitária Católica193. A permissão para utilizar trajes civis, trabalhar em instituições não confessionais e a possibilidade de estar no meio universitário, propiciou que os dominicanos unissem a prática social da Igreja pós-concílio com o ambiente de contestação dos anos 1960. Além da atuação junto dos oprimidos, o engajamento dos dominicanos expunha uma cisão na Igreja Católica, que embora tivesse boa parte da sua hierarquia apoiado a derrubada de João Goulart e mantivesse setores bastante conservadores, possuía em seu interior amplas divergências

192 BETTO, Frei. Batismo de Sangue: guerrilha e morte de Carlos Marighella. 14 ed. Rio de

Janeiro: Rocco, 2006, p.69-70.

193 Associações católicas com intervenção nos meios estudantis, fazem parte de um processo

mais amplo de proximidade da Igreja Católica com os problemas políticos e sociais. Também seriam organizadas juventudes católicas no meio operário e camponês.

acerca do seu papel político. Magno Vilela, um dos frades envolvidos na colaboração com os perseguidos políticos expôs em seu depoimento ainda no exílio, a ideia da proximidade entre o cristianismo e a luta contra a tirania:

eu tinha 17 ou 18 anos, um adolescente junto a outros adolescentes que se sentiam, muito modestamente, responsáveis pela sociedade brasileira. Não podíamos aceitar o que a ditadura pretendia ser, ou seja, uma revolução. Para nós ela era tudo o que havia de oposto a uma revolução. Essa convicção de base foi o que permitiu a nós cristãos, pouco aparelhados politicamente na época, analisar a situação, o que nos permitiu que em nenhum momento fôssemos enganados pela ditadura. Eu não me lembro de ter ouvido nenhum de meus camaradas dizer: “Vamos esperar, que isso pode ser positivo”. Nenhum! Isso no momento em que a maioria da Igreja, ou a sua totalidade, estava do lado da ditadura, organizando as marchas com Deus e pela propriedade, em que a direita católica funcionava em todas as partes do Brasil. Nós, da Ação Católica, éramos muito mal vistos pelo episcopado, vivíamos em conflito com a hierarquia, éramos uma minoria marginalizada, mas estávamos convencidos de nossa caminhada.194 A divergência presente no interior da Igreja Católica se amplia com o ascenso da contestação à ditadura. Em sua dissertação de mestrado, Sara Carolina Duarte Feijó, utiliza os veículos da imprensa como forma de enxergar a atuação dos dominicanos nas disputas políticas acerca do papel da igreja frente ao autoritarismo. Os dominicanos passaram a ser perseguidos pela hierarquia religiosa e pela ditadura, que fechava o cerco às vésperas do AI-5. Um dos casos que chocou as ações dos dominicanos com a orientação da cúpula da Igreja no Brasil foi a celebração da sexta-feira santa no convento dominicano em São Paulo em 1968.

Em abril de 1968, durante os festejos da Semana Santa, os frades de Perdizes convidam o cantor e compositor Geraldo Vandré, famoso por canções de protesto, para compor uma espécie de peça teatral sobre a Paixão de Cristo. Vandré utiliza o espaço para fazer seu protesto contra a ditadura. Ao som de instrumentos populares com violão e berimbau, o artista e os dominicanos encenam uma peça chamada A Paixão

Segundo Cristino. A imprensa aponta que o tal Cristino da encenação

seria, na verdade, o estudante Edson Luís de Lima Souto, morto pela polícia em um protesto no restaurante calabouço, no Rio de Janeiro, em 28 de março daquele ano.

Em 17 de abril, dia seguinte à encenação, em um duríssimo editorial, o

Jornal da Tarde critica a Ordem dos Dominicanos, chamando o

194 VILELA, Magno José, em entrevista aos organizadores do livro Memórias do exílio.

convento de “terreiro” e a peça encenada de “macumba”.195

A reação negativa da imprensa e da cúpula da Igreja Católica fez com que os frades responsáveis pela celebração respondessem e reafirmassem a atuação dos religiosos de Perdizes enquanto desdobramento do compromisso com a fé cristã.

A “Paixão Segundo Cristino”, como se recorda, foi apresentada pelo seu autor, Sexta-feira Santa, na Igreja dos Dominicanos, e foi acompanhada por coral, órgão, viola, trombone e outros instrumentos “profanos”. O cardeal não gostou e, na nota distribuída, alem de dizer que “não podemos aprovar”, salienta que a regulamentação da Sagrada Liturgia é de competência exclusiva da Santa Sé e que, consequentemente, os dominicanos transgrediram as leis canonicas.

A resposta de Vandré e dos frades está na “Carta ao Povo de São Paulo e ao sr. Cardeal-arcebispo”. Segundo ela “a apresentação foi digna de Cristo e de sua mensagem” e “a celebração não teve qualquer caráter amadorístico”. “Houve apenas – observou – um grande esforço para que a mensagem da morte do Senhor pudesse falar de modo vigoroso ao coração de todos que lá estavam, no sentido de colocarem suas vidas em acordo com a mensagem anunciada. Nós não temos nada mais a anunciar senão Cristo, ele mesmo, na sua dimensão atual e total, como força de vida para os homens de hoje, evitando-se tranformá-lo numa relíquia de museu, tendo um papel decorativo na sociedade.196

A perseguição à ala progressista da Igreja – que tinha na vigilância aos dominicanos um dos seus ramos – passava pelo acompanhamento das cerimônias religiosas realizadas no Convento das Perdizes, pelo impedimento da imprensa em divulgar atividades de padres que questionavam de algum modo a ditadura197 e pela acusação dirigidas aos padres progressistas de manter proximidade com o marxismo. Quando da queda de Marighella, a campanha contra os dominicanos possuía dois caminhos, o primeiro que deslegitimava a ação dos frades enquanto opção religiosa, dando-os como

195 FEIJÓ, Sara Carolina Duarte. Memória da resistência à ditadura: Uma análise do filme

Batismo de Sangue. São Paulo, Universidade de São Paulo, FFLC, 2011, Dissertação de

mestrado em História.

196 Folha de S. Paulo. Vandré e dominicanos respondem ao cardeal. 1° caderno, 19 de abril de

1968, p. 12.

197 No trabalho de Beatriz Kushnir, acerca da relação entre censura, imprensa e seus sujeitos,

chama-se a atenção para o comunicado que o regime enviou à imprensa paulista e carioca no dia em que o AI-5 é decretado. O “manual de comportamento”, previa que não fosse noticiado movimentos ou ações políticas de padres. KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda:

jornalistas e censores, do AI-5 à constituição de 1988. Campinas, SP, Universidade

comunistas que atuavam no interior do cristianismo e o segundo que buscava pôr exclusivamente nos dominicanos a responsabilidade pela morte do guerrilheiro. Tomamos o exemplo da cobertura dedicada pela revista Veja à operação que culminou com a morte de Marighella. Na cobertura do acontecimento, a revista faz uma breve matéria sobre os dominicanos paulistas, envolvidos com a proteção aos perseguidos políticos. Lembrando do apoio aos congressos da UNE – que eram realizados de modo clandestinos – e do engajamento junto à movimentos grevistas, como o de Osasco, a opção política dos religiosos é amplamente criticada.

Admitindo que o sacerdote não pode viver numa comunidade sem se interessar política, econômica, jurídica e socialmente por ela, acreditam que não devem apenas estudar tais problemas, mas precisam aprender agindo e atuando. A tudo isso chamam de amor. E sustentam que o sentimento de amor é exigente: deve impelir o homem a agir sem medidas, sem temer riscos, comprometendo-se totalmente quando se trata de promover o próprio amor, a justiça e a verdade. Defensor dessa filosofia (e apontado como o frade dominicano que estabeleceu a primeira ligação com o grupo de Marighella), Frei Osvaldo, 26 anos, atualmente na Europa, dizia: “O homem que ama uma pessoa ou uma causa é capaz de dar a vida por essa causa ou por essa pessoas, pois não há prova maior do que morrer por amor”.

Ao que parece, êsse pensamento não seria seguido pelos dois dominicanos, Frei Ivo e Frei Fernando, que levaram vários companheiros de subversão à cadeia e ainda serviram de isca para que Marighella caísse na armadilha e fôsse morto pela polícia.198

A versão oficial, tomada como verdade pela publicação, ainda diria que os frades presentes no encontro armado para a eliminação de Marighella teriam atraído o guerrilheiro para dentro do Fusca utilizado na operação, o que teria facilitado ainda mais o cerco montado pela repressão. A pecha da traição teria sido colada à imagem dos dominicanos e o desejo de contrapor a visão dos frades ao discurso oficial aparece como motivação para a escrita de Batismo de Sangue.

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