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Capítulo 2 – O que é isso, companheiro?: Memória, Mercado e Política

2.2 O oper ário, o torturador e a juventude

2.2.2 Em defesa do operário

Nascido no Rio Grande do Norte, Virgílio Gomes da Silva foi ser operário em São Paulo durante os anos cinquenta, filiando-se ao PCB anos depois, em 1957. Preso após o golpe, Virgílio não pode mais trabalhar devido à perseguição política. No processo de fissuras do “partidão”, acompanhou Carlos Marighella na criação da ALN, ocupando cargo de direção no Grupo Tático Armado daquela organização. Foi preso ainda em setembro de 1969 e levado à Operação Bandeirantes, onde a intensidade das torturas o matou. Enquanto os presos políticos denunciavam a sua morte, Virgílio tornou-se um desaparecido, sendo inclusive condenado à revelia, mesmo tendo sido morto pelo Estado que o julgava.

As reações diante do filme de Barreto e da maneira como o personagem Jonas foi composto, afirmavam as suas qualidades morais, que o distanciariam da versão cinematográfica, disposta a torturar o embaixador e matar os militantes vacilantes. Dois textos são contundentes na crítica ao filme, ambos publicados no jornal O Globo e reproduzidos no livro Versões e Ficções. O primeiro partiu do jornalista Franklin Martins e comentava o filme de Barreto a partir de uma história da Bíblia.

O antigo testamento fala do profeta Jonas, que ao fugir de uma missão dada por Deus, é engolido por um grande peixe durante uma tempestade. Ao se arrepender de não ter seguido as ordens divinas, o peixe o devolve ao mar e o profeta ganha uma segunda chance. Franklin Martins volta à Bíblia e afirma,

que ao contrário do profeta, o operário teria morrido duas vezes.

A segunda morte de Jonas é mais recente. Está acontecendo, com estardalhaço, no filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto, com roteiro de Leopoldo Serran. Não se trata de uma morte física, mas de uma execução moral. Jonas é apresentado ao mundo inteiro como um monstro, um primata, um boçal, um desequilibrado, quase um psicopata. Entra em cena recusando o cumprimento de um companheiro, como se fosse um campeão dos maus modos. Logo em seguida, reúne os guerrilheiros que vai chefiar e adverte-os: a primeira bala de sua arma está destinada ao companheiro que não cumprir suas ordens; a segunda, àquele que sair em defesa do indisciplinado. E completa com algo mais ou menos assim: “Estamos entendidos?” Só faltou rosnar.362

Franklin conviveu com Virgílio (ou Jonas) apenas durante os dias do sequestro. Virgílio militava em São Paulo e integrava a ALN, enquanto o carioca Franklin fazia parte da DI-GB. Mesmo com os poucos dias de convívio, Virgílio era apresentado como um sujeito radicalmente diferente do que tinha sido exposto no filme. Nas palavras de Franklin: “Posso assegurar que o Jonas do filme é um insulto ao Jonas da vida real363. A narrativa fílmica, ao buscar o equilíbrio político – a tão propalada neutralidade – teria escolhido aquele que não pertencia aos meios intelectualizados para ser a expressão de uma esquerda autoritária e violenta, capaz de usar os mesmos métodos – a tortura – da ditadura que combatia.

É preciso contentar a todo mundo e nunca se expor tomando posição. É isso o tempo todo: uma no cravo, outra na ferradura. Barreto/ Serran julgam que essa atitude é sinônimo de isenção e apartidarismo. Não é. É indício de superficialidade, de insegurança, de dificuldade para tirar conclusões próprias. Quiseram fazer um filme equilibrado, fizeram um filme equilibrista.

A obsessão dos autores pelo muro é a condenação de Jonas. Ele é animalizado para que o torturador possa se humanizar. Ou terá sido ao contrário, numa nova versão do enigma do Tostines?364

Em Hércules 56, os autores do sequestro voltaram a falar em Virgílio Gomes. Cláudio Torres, membro da direção da DI-GB no momento do sequestro, narra um momento semelhante ao trecho do filme de Barreto,

362 MARTINS, Franklin. As duas mortes de Jonas. in REIS FILHO, Daniel Aarão et al. Versões

e ficções: o sequestro da história. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997. p. 118.

363 Idem. p. 119. 364 Idem. p. 122.

quando Jonas ameaça de morte algum militante que atrapalhasse a ação. Nas palavras de Cláudio:

lembro até de um recado que ele nos deu, que marcou também, que eu considero positivo, faz parte daquilo que se esperava naquelas circunstâncias de um comandante militar. Ele disse assim: “Olha, se houver algum problema de que, por desobediência a uma ordem minha, ou por vacilação, algum de vocês colocar em risco a operação, não pensem que eu vou ficar esperando pela justiça revolucionária, mais tarde. Eu executo na hora.” (…) naquele contexto, eu acho que pegou bem, senti firmeza: “Esse cara comanda mesmo!”. Eu me senti seguro, esse cara sabe comandar.365

Se Virgílio fez ou não tal declaração, não é a preocupação aqui exposta. Me chama a atenção que apenas uma década depois do lançamento do filme de Barreto, há alguma menção por parte da esquerda de algo semelhante ao que é mostrado na película. Em 1997, a firmeza elogiada por Cláudio era dada como autoritarismo e violência da cúpula dirigente dos movimentos armados. Ao escrever sobre o filme, Franklin Martins achava pouco importante o debate das “minudências”, termo com o qual se referiu às alterações factuais realizadas por Serran e Barreto. Talvez por ele mesmo estar no centro de uma delas, já que era de sua autoria o manifesto divulgado em cadeia nacional de rádio e televisão, Franklin centrou na figura de Virgílio, a sua reflexão sobre a obra.

Elio Gaspari, jornalista e autor de obra dividida em quatro volumes sobre a ditadura366, vai chamar de “fabulação”, o método utilizado para abordar a história pela visão do cinema. Para ele, pôr o filme frente a frente com “o que aconteceu” era relevante, pois o Gabeira da vida real acabava misturando as concessões dadas à ficção para compor a sua biografia. Partindo da origem da ação, Elio chega à figura de Virgílio, chamado de “homem determinado” e “valente”.

Há algo de estranho no papel que coube a Virgílio Gomes da Silva na

365 DA-RIN, Silvio. Hércules 56: o sequestro do embaixador americano em 1969. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 317.

366 Jornalista nascido na Itália, Gaspari desenvolveu, para além de seu trabalho na imprensa,

uma pesquisa em arquivos e documentos pessoais dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. O estudo resultou em quatro livros (A ditadura envergonhada, As ilusões

armadas, A ditadura derrotada, A ditadura encurralada) publicados em uma nova edição

memorialística do período. Como livro de memórias é coisa de intelectual, o operário acabou se tornando um estorvo. Virou um personagem ora secundário, ora embrutecido. Uma espécie de tipo excessivamente popular para caber num cenário habitado (e narrado) por gente fina. Mais estranho é que esse desconforto tenha se repetido anos depois, quando se teve de achar um lugar na história para um metalúrgico paulista chamado Manuel Fiel Filho, assassinado em 1976, em São Paulo. De sua morte resultou a demissão do comandante do II Exército, e a partir dela o presidente Ernesto Geisel encurralou os torturadores que desafiavam sua autoridade. Não só a morte de Fiel é pouco lembrada, como sua viúva não conseguiu receber integralmente a indenização que conquistou na Justiça em 1980. Ela continua na fila dos precatórios.367

Ao contrário do homem que ameaçava seus companheiros gratuitamente, quem se insurgiu contra o filme buscou reforçar a imagem de valentia e heroísmo de um homem que morreu sob tortura. A descrição da forma como Virgílio morreu veio à tona para acusar de desrespeito a forma como a ficção o representou.

Se o operário se deu mal, o descontentamento foi amplo. Vera Sílvia Magalhães, a única mulher envolvida na ação, não teve nenhum tipo de relações íntimas com seguranças da embaixada. A geração da luta armada se viu infantilizada e politicamente esvaziada de conteúdo, com a memória de seus mortos desrespeitada e com um filme que tinha a possibilidade de atingir um público expressivo com uma versão que destoava da ideia do engajamento heroico e da luta necessária.

Por outro lado, Daniel Aarão Reis, ainda em 1997, falava de objetivos inalcançados pelos produtores do filme. O público acabara não sendo o esperado. Elogiado por parte da crítica internacional, o filme não conquistou o Oscar, não obstante a euforia e confiança que transpareciam em alguns momentos. Acusada de absolver a ditadura, a película parece não ter sido recebida também com bons olhos por quem defendia o regime de exceção. Na seção “Cartas dos Leitores”, do jornal O Globo, um leitor identificado como Gilberto Pereira, mesmo sem ter visto o filme, comentava sobre o debate público gerado por ele.

367 GASPARI, Elio. O que é isso, companheiro?: o operário se deu mal. In: REIS FILHO, Daniel

Ao que tudo indica, o que faltava para a consagração e a apoteose dos guerrilheiros da década de 60, foi obtido com o filme “O que é isso, companheiro?” de Bruno Barreto, baseado em livro de Fernando Gabeira, um daqueles guerrilheiros. Não vi o filme, mas do que se depreende dos comentários publicados nos jornais, os guerrilheiros eram pessoas extremamente bondosas, a ponto de atenuarem o crime de sequestro graças ao tratamento de carinho e bondade dispensado ao sequestrado. (…) O processo se completou: primeiro a anistia, depois as CPIs e as reaberturas de processos contra os militares, a seguir, as indenizações inclusive com tentativa de resgate da honra de desertores, e, agora, o coroamento final através do filme.368

Se pensarmos a partir do que Chartier chamou de “história social das interpretações”369, os sentidos dados ao filme são capazes de dar a ver as diversas formas como a sociedade não só enxerga o seu passado, mas como viveu a população no Brasil durante a ditadura. Houve oposição e colaboração, mas também houve indiferença, como afirma Janaina Martins Cordeiro370. O que é isso, companheiro? teve o seu sentido completado – e disputado – pelas diversas interpretações, críticas e apoios que o acompanharam. O avanço da tecnologia, que hoje permite ver o cinema de outra forma através dos materiais extras que podem ser inseridos nas mídias digitais, pode fazer, no futuro, com que toda a polêmica também seja pelo espectador, compondo uma história da circulação do filme.

368 O Globo. Cartas dos Leitores. Opinião, 21 de fevereiro de 1997. p. 6.

369 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre:

Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

370 CORDEIRO, Janaína Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o

governo Médici. Disponível em:

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