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A ORIGEM ARISTOTÉLICA OU CONTRATUALISTA DA SOCIEDADE

Este outro secionamento é feito tendo em vista a maneira como é pensado o surgimento do Estado. De um lado, estariam os que se enquadram no chamado modelo aristotélico, obviamente iniciado pelo filósofo que lhe empresta o nome, mas que também abrange os pensadores medievais, além de Bodin e Althusius3.

2 Afora a deficiência em relação a Althusius, o apêndice sobre a etimologia do termo

representação é bastante interessante (PITKIN 1967, 241).

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Quanto a Althusius, isto parece inadequado, conforme mais à frente será discutido. Aqui, porém, apenas apresento o esquema de Bobbio: “Quem examinar esta obra [Política] em seu desenvolvimento não poderá deixar de perceber que ela ainda corre no grande sulco — embora ampliado e aprofundado [...] — do modelo aristotélico” (BOBBIO 1991, 6).

Do outro lado, situar-se-iam os seguidores do modelo jusnaturalista (BOBBIO 1991, 1). Se a este fosse dado o nome de quem primeiro o empregou, bem poderia ser chamado de modelo hobbesiano. O problema é que estariam incluídos na mesma denominação filósofos que têm diferenças irreconciliáveis com Hobbes, como Locke e Rousseau. A repartição proposta é um bom instrumento didático ainda que as denominações utilizadas sejam um tanto dúbias ou controversas. Considero melhor designar o segundo tipo não como jusnaturalista, e sim contratualista, já que neste aspecto reside o elemento-chave do modelo4.

Não pretendo refazer aqui uma análise minuciosa das dicotomias que marcam essa separação entre os dois padrões explicativos. Este trabalho está muito bem detalhado no livro de Bobbio — Thomas Hobbes — onde, logo no início, ao enumerar os principais traços constitutivos do contratualismo (jusnaturalismo), ele tem o cuidado de advertir:

[Jamais] existiu uma formação histórico-social como a descrita. Na evolução das instituições que caracterizam o Estado moderno, ocorreu a passagem do Estado feudal para o Estado dos estamentos, do Estado dos estamentos para a monarquia absoluta, da monarquia absoluta para o Estado representativo, etc. A imagem de um Estado que nasce do consenso recíproco de indivíduos singulares, originariamente livres e iguais, é uma pura construção do intelecto. (BOBBIO 1991, 2)

Um dos pontos centrais da distinção entre os modelos refere-se à maneira de explicar o surgimento do Estado. No tipo aristotélico a formação dá-se de modo quase natural, a partir dos núcleos familiares que se juntam em grupos cada vez maiores, levados pela necessidade. A gênese de feitio contratualista parte de indivíduos autônomos, que por livre vontade fazem um pacto para unir-se. Ora, fica evidente aí a parte que se refere ao jus, mas nisso nada há de natural, daí a ressalva de Bobbio. O componente naturalista do modelo diz respeito a um suposto e muitas vezes idealizado estado de natureza que antecede a união e a criação do Estado por meio de um contrato imaginário. Assim, no caso

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Ao cotejar os dois modelos quanto aos fundamentos Bobbio afirma que aquilo que chamou de jusnaturalismo é uma “teoria contratualista”, enquanto o tipo aristotélico é uma “teoria natura- lista” (BOBBIO 1991, 8). Em outro texto afirma que “Hobbes é um jusnaturalista, ao partir, e um positivista, ao chegar” (BOBBIO 1997b, 41). Darei preferência ao termo contratualista.

aristotélico o Estado formal seria fruto de um progresso contínuo a partir de um estado natural, enquanto a categoria contratualista basear-se-ia na decisão de romper com uma situação em que não há qualquer domínio seguro ou regras, ou estas não têm a necessária força, para então iniciar uma formação que lhe é antitética, formal, que implica a aceitação de uma instância superior de mando e a submissão às leis.

No chamado modelo aristotélico a desigualdade está na origem do Estado, na própria hierarquia familiar tornada maior pela reunião em clãs. Ora, neste sentido, a dominação feudal também seria natural, uma enorme família, com suas relações de suserania e vassalagem reproduzindo o poder do pai sobre os filhos. A proposta contratualista quer justificar a cisão com a ordem existente, ruptura que se torna necessária, como foi visto, quando um contingente cada vez mais numeroso de pessoas liberta-se do jugo ao ingressar no burgo e começar a ter seus próprios bens. Deixando de ser servos, veem-se como indivíduos ‘naturalmente’ iguais. Por isso, torna-se imprescindível encontrar uma razão que legitime a existência de um poder organizador superior, por meio do qual todos aceitem ser governados, e para este fim serve a ficção de um contrato constitutivo do Estado.

Dessa modificação de paradigma emergem “as grandes dicotomias que envolvem [...] os problemas fundamentais de toda a teoria do Estado” (BOBBIO 1991, 8), por exemplo, as questões quanto à origem, finalidade ou legitimidade do Estado, as quais também irão se apresentar no estudo da representação. Tais contraposições permitem realçar traços que distinguem o representante althusiano do hobbesiano. Na medida em que são ferramentas auxiliares à compreensão das teorias sobre o surgimento dos Estados, é útil manter a divisão, ainda que cambiando um dos nomes — aristotélico e contratualista.

Não se esqueça, todavia, que são grandes generalizações, sujeitas a falhas. Assim, quando Bobbio expõe o nexo econômico que conecta o modelo contratualista (jusnaturalista) à expansão da sociedade burguesa, sustenta que “a sociedade política como ente artificial [é produzida] pela vontade dos possuidores de bens, tendo em vista a proteção de suas propriedades” (BOBBIO 1991, 10). Hobbes, porém, é taxativo ao afirmar que a propriedade dos súditos depende da vontade do soberano. Por outro lado, do mesmo modo que o contratualismo de Rousseau não pode ser chamado de hobbesiano, talvez não se deva incluir tão facilmente Althusius entre os aristotélicos, como espero deixar claro na continuação.