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C ONCLUSÕES PRELIMINARES

II. A LTHUSIUS A SSOCIAÇÃO E R EPRESENTAÇÃO

12. C ONCLUSÕES PRELIMINARES

A tentativa de responder à pergunta sobre se existe representação política em Althusius resultou na ilustração de duas formas bastante díspares em que ela se apresenta em Política. De qualquer modo, nunca é o indivíduo a ser representado, pois este é um sujeito oculto, cuja vontade manifesta-se apenas através da identificação com algum tipo de grupo ao qual deve associar-se para ingressar na vida conjunta. A representação é, pois, identitária. Além disto, quer no modelo da cidade, quer no dos estamentos, o representante é concebido nos mesmos moldes em que são estruturadas desde a base as relações sociais e institucionais. Há sempre um mandante e um mandatário: o representante apenas executa uma função que lhe foi delegada. Exercendo tal comissão, pode ser interpelado sobre seus atos e destituído.

Por sua vez, a designação de “povo total” dada ao mandante originário expressa bem a inexistência de um povo unificado. Em Althusius o povo é pensado quase da mesma maneira que a organização federativa do Estado. O povo é uma totalização de grupos sociais com status desiguais preservados em diferentes estatutos pelo costume, e reconhecidos no direito comum que cria a união simbiótica.

Sem fugir da pergunta, parece interessante relativizá-la. A resposta dependerá do parâmetro utilizado: se a representação é considerada como expressão plena da vontade do povo, então certamente não há representação em Althusius — de fato, com uma definição tão restrita talvez a representação seja uma utopia. Caso se

entenda por representação a capacidade do povo de manifestar limites ao poder do governante, então o sistema althusiano é representativo.

Qualquer explicação para a acentuada assimetria entre a representação dada ao povo na cidade e aquela empregada no nível federativo tende a ser perigosamente especulativa, se tentar ir além da mera constatação de que era mais ou menos isso que acontecia ao final do medievo no Sacro Império. Mas para esboçar uma resposta deve-se partir exatamente daí, quer dizer, porque a representação na cidade era tão mais ‘avançada’ que nas outras instâncias? Caso se conceda que Althusius não estava apenas fazendo descrição histórico-social, mas inovando em ciência política, fica difícil pensar que a diferença na qualidade da teoria seja casual, ou pior, que lhe tenha passado despercebida. Talvez a acusação nem sempre justa, mas feita com insistência a Althusius, de ele estar continuamente acomodando a teoria aos poderes existentes, possa ser virada em favor dele para ajudar na resposta.

Muito antes da primeira edição de Política o movimento comunal já se tornara uma força incontestável no território europeu, desestabilizando progressiva e irremediavelmente o poder feudal. A capacidade dos burgos em ascensão para comprar quer cartas de franquia, quer o apoio militar do imperador, ou ainda para estabelecer a defesa dos seus interesses por meio das ligas era uma forma evidente de um poder diferenciado. Nesse sentido, Althusius teria percebido o quanto as forças econômicas presentes no burgo não mais se encaixavam no modelo tradicional de representação pelos estamentos. Assim, os primeiros capítulos da sua obra seriam uma teorização desse novo feitio de organização social. No estudo sobre como ‘viver junto’ numa cidade — numa simbiose economicamente produtiva — teria expressado a busca da liberdade e autodeterminação dessas cidades como soberania, invertendo as teses de Bodin. Além disso, como foi cogitado anteriormente, ao transformar as corporações de ofício em associações primárias de seu sistema representativo, encontrou uma fórmula para legitimar a participação da burguesia nas assembleias do reino, entre os estamentos tradicionais.48

48 “O papel histórico dos estamentos foi balancear o poder da administração central através de

estruturas sociais e regionais. Tanto o capital móvel nas mãos de indivíduos como o Estado unitário finalmente destruíram essas estruturas. Althusius plenamente incorporou pela última vez o sistema medieval de vida em grupo das corporações e regiões na teoria política, mas pela primeira e última vez deu-lhe uma estabilidade constitucional moderna” (HUEGLIN 1979, 33).

A questão da representação fica então na dependência do que se exige dela. “O direito de decidir repousa, na verdade, no julgamento e no voto da maioria de seus membros...” (XVII,58). O duplo sentido de inserir esta citação aqui é proposital. É preciso haver uma escolha por parte de todos os que passarão a ser representados sobre o que estão dispostos a conceder ao representante. A representação será uma coisa para quem considera que a transferência de poderes restritos é suficiente para que o Estado garanta a convivência social. Será diferente para quem aceitar que para preservar a paz a entrega deva ser total e incondicional.

Algumas propostas do sistema althusiano dão a impressão de que o equilíbrio de poder perdido ao final do medievo poderia ser reconstruído sem grandes alterações estruturais. Talvez a excessiva acomodação da teoria à situação histórica limite sua capacidade de solver os litígios existentes. Lembre-se, por exemplo, que Althusius passa da associação familiar à harmonia social e ao amor ao próximo sem considerar que é o medo ao senhor do lar que mantém familiares e servos submissos. O representante da família e de seus agregados — de uma das associações primárias da organização simbiótica — não é eleito, impõe-se. O mesmo sucede em outros níveis.

E antes de mais nada é evidente que o domínio, o governo e as leis são bem mais antigos que a história ou qualquer outro escrito, e que o início de todo domínio entre os homens foi nas famílias. [... Qualquer] terra na qual se instalasse o senhor e de que ele fizesse uso para seu próprio benefício e o de sua família era sua propriedade pela lei da primeira posse, caso antes dele esta terra estivesse desabitada ou caso, pela lei da guerra, fosse conquistada. Nessa conquista os inimigos pegos e salvos eram seus servos e os homens que, carecendo da posse de terras [...] vinham morar sob a proteção da família se tornavam seus súditos [...]. E tudo isso é conforme não somente com a lei natural como também com a prática da humanidade, exposta na história sagrada e na história profana (HOBBES 2004, 184).

A vida doméstica descrita por Hobbes desnuda a natureza conflituosa das relações humanas. A família é vista como unidade bélica num mundo onde o temor ao próximo mantém todos em permanente desconfiança e prontos para o ataque. A citação acima se une à epígrafe

que abre esta apresentação da vida simbiótica. Nelas não há lugar para o “entusiasmo pela concórdia” (VI,46). Hobbes aponta o medo como o sentimento capaz de servir à pacificação das demais paixões humanas. Para o filósofo de Malmesbury o poder dividido teorizado por Althusius seria fatal para o Estado. Como se verá a seguir, a ideia de soberania como poder ilimitado de representação é nuclear no pensamento hobbesiano.