• Nenhum resultado encontrado

A origem do mal – a questão da responsabilidade moral

Capítulo II – A presença do mal ma Ordem como um problema de natureza

2.1. A origem do mal – a questão da responsabilidade moral

Após sua conversão ao cristianismo (ano 386) Agostinho almeja uma forma de vida cujo fim seria encontrar, através do estudo de grandes temas caros ao pensamento filosófico e do aprofundamento das verdades da fé cristã recém assumida por ele, o equilíbrio e a paz da alma, capazes de fazê-lo experimentar a vida feliz. Tratava-se do grande ideal do sábio no mundo antigo: purificar sua mente através do estudo e da sabedoria para encontrar-se com a Verdade e atingir a felicidade, este é o ideal que Agostinho afirma contra o ceticismo acadêmico136. Naquele momento era óbvio para ele afirmar que “o sábio deseja consagrar-se ao estudo de si mesmo e de Deus para gozar ainda aqui do domínio da razão, [...] e gozar com justiça da divina bem aventurança, depois de ter gozado a humana”137 (Contra Acad. I, 8, 23, tradução nossa). A contemplação da Sabedoria consistia, em

135 Em Confessiones, sobretudo nos sete primeiros livros, Agostinho apresenta uma descrição desta

experiência na natureza humana olhando para a própria história de sua intimidade. O cume deste processo pode ser visto no Lº VII onde sua descrição tem como ponto nevrálgico o conceito de “vontade cindida”, sobre o qual comenta Horn (2008, p. 107-132).

136 Segundo Horn (2008, p. 114) a filosofia na Antiguidade tinha a forma de uma orientação de vida,

onde a vida boa dependia do correto conhecimento produzido na alma. Agostinho é influenciado por esta perspectiva, sobretudo, em seus primeiros escritos, e em parte baseado nela vem a entender o cristianismo como a “Verdadeira Filosofia”.

137 [texto latino]: sed in se atque in Deum semper tranquillus intenditur: ut et hic, quod beatum esse

supra inter nos convenit, ratione perfruatur [...], fruaturque merito divina beatitudine, qui humana sit ante perfructus.

última análise, na capacidade de contemplar regras práticas capazes de orientar o devido uso da racionalidade de modo a encontrar a felicidade.

No entanto, Agostinho logo percebe que para dar conta de qualquer perspectiva de progresso espiritual, precisa resolver o paradoxo criado pela presença destoante do mal na natureza humana138, trata-se de um ponto de partida inevitável. Compreender a origem do mal a fim de superá-lo é condição básica para quem almeja atingir a excelência espiritual que lhe dá o direto de gozar o título de “sábio”. Em larga medida De libero arbítrio, obra central em sua polêmica contra o maniqueísmo, demonstra o truncado “percurso metafísico” enfrentado pela alma carente de sabedoria e consciente de seu limite139.

O problema da origem do mal para Agostinho assenta-se basicamente na elucidação de duas questões140: (1) diante da realidade do mal, como compreender Deus? (2) em que dimensão da Ordem situar o ser humano depois do pecado? Agostinho não se debruçará de imediato em uma análise acerca da natureza de Deus, é sobre o ato humano que ele fará incidir sua argumentação. Desse modo, se distancia da forma de pensar do maniqueísmo "que não atribuía qualquer função à atividade humana no dilema do mal [...]. É um fato que, associada à análise agostiniana do ato humano está uma determinada concepção do Ser” (OLIVEIRA E SILVA, 2007, p, 95), a qual será compreendida por ele em consonância com sua

138 É importante ter claro o sentido que o termo natureza possui na obra de Agostinho. Ela não é

tomada no sentido da physis, caro ao pensamento antigo, mas em um sentido metafísico similar à substância, conforme ele enuncia: “Toda a natureza ou é corruptível ou incorruptível. Portanto, toda natureza é boa. Chamo natureza àquilo que também se costuma designar por substância. Por conseguinte, toda substância ou é Deus ou provém de Deus, porque todo o bem é Deus ou provém de Deus” (De lib. arb. III, 13, 36); [texto latino]: Omnis autem natura aut corruptibilis est aut

incorruptibilis. Omnis ergo natura bona est. Naturam uoco quae et substantia dici solet; omnis igitur substantia aut Deus aut ex Deo, quia omne bonum aut Deus aut ex Deo.

139 Segundo Pich (2005A, p. 184) nesta obra de Agostinho não encontramos apenas sua primeira

análise a respeito da vontade, mas temos em absoluto a primeira obra da filosofia ocidental que indica a vontade no sentido que a concebemos ainda hoje: como um poder cognitivo-desiderativo ativo de livre decisão, que se deixa definir por autodeterminação e/ou do indeterminismo das ações, que, ademais, se diferencia claramente da faculdade da razão e do desejo.

140 Em Agostinho a “sustentação metafísica” da presença do mal na realidade é um problema

filosófico de primeira ordem, porque diz respeito à própria razoabilidade da vida humana e à consistência do conceito de Deus defendido pelo cristianismo. Neste sentido, a forma como Agostinho se coloca diante deste problema “é muito diferente do Problema de Justiça Divina apresentado pelo livro de Jó. Este livro nunca faz da mera existência do Mal um problema [...]. O Problema da Consistência do Mal não surge a menos que designemos atributos “omni” a Deus, em particular, o atributo de ser capaz de fazer o que Ele bem entender, além do atributo de possuir toda bondade” (MATTHEWS, 2007, p. 162-163).

análise acerca das funções da mente e seu lugar na Ordem depois do pecado. Neste sentido que em sua base a teodiceia agostiniana ganha os contornos de uma reflexão antropológica. Interrogar acerca da origem do mal o leva inevitavelmente a indagar sobre o modo como se recupera o bem primordial só conquistável mediante o alcance do Sumo Bem. Em De libero arbítrio encontramos uma espécie de acabamento desta procura engendrada por Agostinho bem antes de sua conversão141.

Fundamentos do mal moral – a paixão

Agostinho começa De libero arbítrio definindo a que tipo de mal sua investigação intenta esclarecer a origem. Trata-se precisamente do mal que o homem experimenta na intimidade da alma. Este difere do chamado mal físico, decorrente da natural e contingente mutabilidade da matéria a que todos os seres estão submetidos a sofrer de uma forma ou outra, e que pode ser compreendido à luz do conceito de Providência, através da qual o próprio Deus age na esfera temporal de modo a contribuir para a purificação e o crescimento das almas. Além disso, a mutabilidade e a degradação corporal fazem parte da natureza dos seres criados, do que estaria isenta unicamente a alma racional142. Deste gênero de males Deus pode ser considerado autor, mas não daquele que Agostinho considera o grande “espinho” presente na alma do homem – o mal moral. Ele não é o que sentimos enquanto seres temporais, mas o que realizamos mesmo que nossa natureza seja originariamente boa.

Deste mal entende Agostinho que do ponto de vista metafísico, “não existe um autor determinado, mas cada um é autor de suas más ações”143 (De lib. arb. I, 1, 1). A questão a ser investigada então versa sobre como a alma humana é capaz de produzir más ações. O entendimento quanto à origem do mal exige, portanto, a compreensão da natureza da alma humana e seu funcionamento. Em última análise,

141 A angústia intelectual vivida por Agostinho no período que vai de sua aceitação do maniqueísmo

até a sua conversão e o conflito com esta seita é expresso por ele em (Conf. VII, 7, 11), logo antes de enunciar o esclarecimento que sua inteligência vem a ter com a descoberta do platonismo, e a possibilidade de pensar a realidade do universo sob a égide da categoria metafísica do Verbo e da misericórdia divina.

142Este ponto é defendido por Agostinho em (Im. anima II, 3 – IV, 6).

significa o mesmo que definir um tipo de fundamento irrefragável de nossas más ações.

Agostinho começa então a dissecar as possíveis operações anímicas pelas quais o homem poderia construir uma ação qualificável como má. (1) A primeira a ser interrogada é a aprendizagem (De lib. arb. I, 1, 2-3). Ele busca entender se a ação má não nos é ensinada por um agente externo ou se não é fruto de uma falha de nossa inteligência; rapidamente conclui que uma situação assim seria logicamente impossível, pois em seu pleno funcionamento a faculdade intelectiva não levaria o homem a uma ação prejudicial à natureza criada, portanto, a si própria144. (2) Outro ponto questionado é a lei e seu aspecto proibitivo (De lib. arb. I, 3, 6-7), onde o autor conclui que não é a proibição aquilo que torna uma coisa má, a lei existe justamente para proibir e evitar que se realize uma ação má, assim qualificada previamente. Conclui-se então que a ação má cometida por qualquer agente não decorre de nenhum tipo de coação ou de necessidade arbitrária imposta por um agente exterior, mas provém de uma realidade que compõe a alma humana e esta realidade não pode ser a própria razão145.

Desta feita, Agostinho entende que é preciso verificar nas más ações a preservação de um elemento fundamental, algo que não seja externo e contingente em relação ao agente, mas que se encontre de modo constante em suas ações e, diferindo da inteligência, possa ser tomado como elemento universal de qualificação das ações. O autor exaure cada um dos elementos que intervém de uma forma ou outra na atividade humana, de modo a determinar uma espécie de fonte originária para o mal no interior da alma. Ele a encontra na dimensão primária que estabelece a relação entre o homem e o mundo e do homem com Deus – a dimensão volitiva.

144 Este tema é retomado pelo autor em (De Vera Rel. XX, 39), onde ele declara que o mal não pode

ser uma experiência aprendida de fora, mas uma experiência interna à alma que se torna reproduzível.

145 Neste ponto Agostinho se afasta da posição predominante no estoicismo romano, abrindo caminho

à sua nova perspectiva do conceito de vontade. Para os estoicos a falibilidade da alma humana tinha origem no processo racional da mente que termina por incidir sobre a dimensão volitiva, isto é, o mal é antes tudo um problema produzido na esfera cognitiva da alma. Trata-se de um ponto bastante controverso na interpretação de (De lib. arb. I). Há autores como O’Connell (1970, p. 50) que demonstram a grande influência de uma espécie de ecletismo estoico na construção da argumentação agostiniana neste texto, já Torchia (2001, p. 517-521) e Oliveira e Silva (2007, p. 15- 30), ainda que não neguem tal influência, procuram evidenciar as diferenças entre a argumentação agostiniana e esta corrente de pensamento. Sobre este tema ver ainda Pich (2005A, p. 186).

Nela convergem ao mesmo tempo elementos de máxima imanência e realidades capazes de projetar o ser humano a um nível de máxima transcendência. Em (De

lib. arb. I, 3, 8) Agostinho encontra a manifestação mais elementar dela em uma

faculdade interior à alma e a mais primitiva em nossas ações – a paixão, aqui entendida como a faculdade que “domina” a alma nas ações equivocadas. Adiante, em (De lib. arb. I, 4, 9) o autor demonstra como esta paixão se torna “desejo desenfreado”.

Para Agostinho o homem é um ser cuja identidade se forma no tempo através das múltiplas relações que ele estabelece. As paixões designam o âmbito primário da relação do homem com o mundo, estão na nossa constituição natural e geram um efeito imediato na alma quando são estimuladas por alguma forma de ser. Contudo, ainda que a paixão (libido), além de ser uma válvula pela qual absorvemos o mundo, manifeste a característica essencial do homem que é tender para fora de si, ela não constitui uma ação determinada. O desejo supõe certa intencionalidade sobre a paixão, logo, quando desenfreado, efetiva a paixão em uma situação de perda de referências e de sentido frente aos objetos que se oferecem no mundo. Nesta situação psicológica, Agostinho identifica o “primeiro sinal” da presença do mal na alma humana.

Se aquilo que é produzido pelas paixões não contiver uma “racionalidade” não poderá coordenar a ação para o télos em que se forma a identidade de cada homem, mas, ao contrário, dispersá-lo-á entre os objetos no mundo. Assim, na medida em que o desejo humano se move por essas paixões sem uma coordenação racional, ele se afasta da busca pela Sabedoria e se projeta de maneira disforme sobre o mundo. Isto não significa atribuir às paixões a origem do mal de forma absoluta e restrita, pois a dimensão desiderativa do ser humano, revelada na paixão, só pode ser considerada origem do mal quando equacionada com um universo de bens dispostos no mundo e, quando articulada com a possibilidade de escolha da vontade frente a eles. Na medida em que apenas identifica uma dimensão vital do ser humano, a paixão não é vista como origem do mal stricto sensu. Para tal ela

necessita ser assumida e coordenada pela razão e pelo desejo a fim de designar existencialmente sentido a uma ação, positiva ou negativamente146.

Realizando a sutil, porém, decisiva distinção entre paixão (libido) e desejo desenfreado (concupiscentia), Agostinho identifica que cabe a este último a responsabilidade por efetivar uma tendência natural do ser humano a um bem de maneira alheia à razão que tem a capacidade de equilibrar a paixão em conformidade com a Ordem, o que remete o autor a considerar que está na dimensão desiderativa, enquanto articulada com um universo de bens e com a possibilidade de escolha sobre eles, a origem do mal, por isso, diz que

desejar viver sem medo é comum a bons e maus. Mas há uma diferença: os bons desejam-no afastando o amor daquelas coisas que não se podem ter sem perigo de se perderem; os maus, porém, desejam-no para desfrutar destas coisas com segurança, esforçando-se por remover o que os impeça e, por causa disso, levam uma vida facínora e criminosa147 (De lib. arb. I, 4,

10).

Tomar o mal simplesmente como uma operação intelectual seria reduzir seu impacto na realidade humana. Agostinho entende que a instrução e as operações mentais através das quais apreendemos a realidade são tão acidentais e transitórias quanto os objetos pelos quais passamos no mundo. O mal se sedimenta na alma humana não como algo “aprendido”, mas enquanto algo “praticado” e interiorizado como hábito, logo, não se configura como a imagem de um ser contingente que “passa pela memória”, e sim como um modo de ser que interfere na natureza da vontade. Diz ele que “a instrução é tão acidental a alma como a indumentária e o ornamento em nossos membros [...], o hábito se diz de tudo aquilo que chega a nós para que o tenhamos”148 (De div. quaest. Oct. 73, 1 tradução nossa). Assim que a

146 Sobre isto afirma Pich: “mesmo que o desejo que se tem esteja sempre qualificado pela disposição

atual da estrutura psicológica do sujeito moral, ele é, de si, indiferente a uma qualificação. Daí que Agostinho faz referência, com a mesma expressão cupiditas, ao desejo culpável (culpabilis cupiditas) ou mesmo à “libido sive improbanda cupiditas. Neste sentido, há, para Agostinho um elemento qualificante e sempre presente no desejar (cupere), tal que há “bons” e “maus” que desejam. Sabe-se que os “bons” agentes e os “maus” agentes são o que são por causa do modo como desejam. E isso depende do ser humano interior” (PICH, 2005A, p. 189-190).

147 [texto latino]: Cupere namque sine metu uiuere non tam bonorum, sed etiam malorum omnium est;

uerum hoc interest, quod id boni adpetunt auertendo amorem ab his rebus, quae sine amittendi periculo nequeunt haberi; mali aute, ut his fruendis cum securitate incubent, remouere inpedimenta conantur et propterea facinorosam sceletamque uitam.

148 [texto latino]: doctrina accidit animo, et succus ac robur corpori; et vestís atque arma, non dubium

alma experimenta o mal através das paixões, por isso superá-lo exigirá a ela um nível de instrução que compreenda a realidade de uma forma mais ampla e integrada, algo que mais tarde ele afirmará não ser possível sem o auxílio divino.

Ao realizar uma análise do ato humano tomando como parâmetro a paixão, tanto no caso do adultério como da autodefesa (De lib. arb. I, 5, 11-13), Agostinho ratifica que a qualidade da ação está intimamente ligada à dimensão mais íntima do desejo de quem a pratica. Enquanto tal a paixão é um movimento indiferenciado e intencionalmente indeterminado, não específico dos seres humanos na medida em que também é comum aos animais irracionais, embora seja no ser humano que ganhe o estatuto de desejo. Segundo Oliveira e Silva (2001, p. 52) desta compreensão da paixão como elemento último da natureza anímica do homem obtém-se um princípio de máxima validade no interior da visão de mundo agostiniana acerca da origem do mal. Todavia, o esclarecimento disto requer a compreensão da relação entre a vontade como força intencional da natureza e a Ordem, o que o autor vislumbra na relação da inteligência com a “lei eterna”149.

Fundamentos do mal moral – a razão

Segundo Agostinho ao analisar seu próprio conteúdo a mente encontra em sua dimensão mais íntima um valor supremo identificado com a noção de Verdade. É uma evidência inconcussa que aparece à razão na forma de uma alteridade frente a qual a alma é levada a compreender sua identidade. Com efeito, nesta “interlocução” a razão descobre “no exercício de sua própria atividade e como sua condição de possibilidade, princípios superiores a ela própria: noções imutáveis e eternas” (OLIVEIRA E SILVA, 2001, p. 56). Trata-se da “lei eterna” entendida pelo autor como fundamento último não apenas de toda lei temporal, mas especialmente de toda ação moral. Segundo ele as leis temporais são ainda que justas ou injustas promulgadas no tempo, todavia, nelas, nada pode haver de justo que os homens

149 Segundo Pich “o tema da lei eterna é introduzido para afirmar que o ser humano possui um

conhecimento profundo de si mesmo. Aquela lei revela ao ser humano, em cujo espírito ela está impressa, os motivos de todas as determinações morais – os diferentes amores [...]. A lei divina evita que o ser humano não saiba da natureza do mal e também que não veja o motivo de sua ação atual [...], a lei manifesta também a intocabilidade do ser humano e de suas ações de fora para dentro. Essa última idéia é compatível aos princípios de Epicteto e Sêneca. Quem, segundo Agostinho, é intocável de fora para dentro, possui certamente a potência de decisão, que como na prohairesis de Epicteto, se limita a determinadas coisas não perdíveis que estão em nosso poder, as “prohairektika” (PICH, 2005A, p. 194). Sobre este tema ver ainda Gilson (2010, p. 249).

não tenham feito derivar pelo bom uso de sua razão da lei eterna, definida sinteticamente como “aquela pela qual é justo que todas as coisas estejam absolutamente ordenadas”150 (De lib. arb. I, 6, 15). Este é o fundamento do conceito primário de justiça em Agostinho: uma propriedade dos seres que deriva de uma disposição ordenada qualitativamente na própria criação, que é operada por uma lei eterna, cujo fim é colocar em ordem os seres preservando-os em seu estatuto ontológico. Especificamente quanto ao ser humano, a justiça expressa pela lei eterna se realiza na medida em que ele ordena racionalmente sua alma, deseja e conserva os bens que não podem se perder sem deixar que seu desejo seja o árbitro de suas ações.

Dessa forma, entender como o mal é realizado nas ações humanas requer compreender como o ser humano deveria estar ordenado em si mesmo, e de que maneira ele pode exercer a capacidade de comprometer a ordem “interna” de seu ser tornando o mal uma presença na Ordem da criação. Primeiramente é preciso ter suposto que pela razão o homem apreende e percebe a realidade com que se relaciona tanto em nível corpóreo como inteligível, por isso o autor define a consciência que se alcança com a razão ou inteligência como uma espécie de “forma de vida pura e superior” pela qual podemos obter uma singular relação com o ser divino (De lib. arb. I, 7, 17). Assim, afirma que se a razão “dominar e imperar sobre as demais realidades de que o ser humano se compõe, então ele estará perfeitamente ordenado”151 (De lib. arb. I, 8, 18). É preciso ressaltar que Agostinho “não identifica, no poder desiderativo da alma, nenhum desejo racional como a

boulesis aristotélica. A potência do desejo é tomada como irracional” (PICH, 2005A,

p. 200). Daí a ideia de que apenas a razão pode ser ordenadora da alma152.

150 [texto latino]: uerbis explicem, ea est qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima.

151 [texto latino]: si dominetur atque imperet ceteris, quibuscumque homo constat, tunc esse hominem

ordinatissimum.

152 Na descrição que faz da relação das vontades anímicas em Agostinho, Gilson destaca o caráter

“intermediário” da vontade na antropologia agostiniana. Além de efetuar a comunicação entre a razão e o mundo criado, também cabe a ela o papel decisivo de produzir a identidade de toda ação humana: “Em cada sensação, a vontade tem o papel de uma força ativa sem a qual o órgão sensorial não se aplicaria ao objeto e a sensação não teria lugar [...]. Quando nossa vontade fixa um dos nossos órgãos sensoriais em algum objeto sensível, ela intervém simultaneamente em dois sentidos

Documentos relacionados