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Verdade e liberdade – o paradoxo da vontade na formação da consciência

Capítulo II – A presença do mal ma Ordem como um problema de natureza

2.3. Verdade e liberdade – o paradoxo da vontade na formação da consciência

A capacidade que a razão tem de julgar corretamente sobre uma parte da realidade depende de suas condições de remetê-la ao todo, isto é, de compreender sua importância no funcionamento e na harmonia da Ordem, isto é o que garante a veracidade do julgamento emitido sobre um ente criado. A parte é sempre parte de um todo e apenas nele tem sentido; em Agostinho, este “todo” é revelado pela Verdade. O nosso erro está aí: perder-nos em uma parte. Daí o julgamento tornar-se disforme em si”219 (De Vera Rel. XL, 76). A “desordem” da atividade intelectiva ocorre quando a parte é tomada pelo todo; o mesmo acontece com a ação, quando um bem ínfimo é amado como fonte de sentido. Para “criar ordem” o homem deve orientar-se devidamente pelas razões eternas, todavia, quando “ele subjuga as ideias universais a fins particulares, então, ele entra em luta contra elas; fazendo seu o que é para todos, toma tudo para si” (GILSON, 2010, p. 230).

Quando isto acontece a vontade se perde entre as paixões pelas coisas materiais e o homem não consegue projetar sua ação em um horizonte mais amplo que lhe mostre suas possibilidades e consequências, isto é, não consegue conhecer o fim a que se ordena. Ou seja, se colocada na esteira do que manifesta a Ordem

a razão perfeita do homem, que se chama virtude, primeiramente usa de si mesma para conhecer a Deus, se serve dos animais racionais para formar a sociedade e dos irracionais para exercer sua autoridade, inclusive ordena a própria vida a este fim [...]. Ela usa de tudo, tanto do sensível como do não sensível, sem que haja uma terceira categoria. Além do mais julga sobre o que usa [...]. Tudo o que foi criado, para o uso do homem foi criado, e a razão foi dada ao homem para que tudo use com correto juízo220 (De Div.

quaest. Oct. 30, tradução nossa).

A Verdade é desfrutada por todos os indivíduos desde que sua mente esteja em conformidade com a Ordem; é transcendente, por isso não pode ser

219 [texto latino]: sive de parte iudicet, pulchrum est: universo quippe mundo superfertur, nec alicui

parti eius, in quantum verum iudicamus, adhaeremus. Error autem noster parti adhaerens eius, ipse per se foedus est.

220 [texto latino]: Perfecta igitur hominis ratio, quae virtus vocatur, utitur primo se ipsa ad intellegendum

Deum, ut eo fruatur a quo etiam facta est. Utitur autem ceteris rationalibus animantibus ad societatem, irrationalibus ad eminentiam. Vitam etiam suam ad id refert, [...]. Ita omnibus et sensis et non sensis utitur; nec aliquid tertium est. Iudicat autem de omnibus quibus utitur [...].Omnia ergo quae facta sunt, in usum hominis facta sunt, quia omnibus utitur iudicando ratio, quae homini data est.

transformada em um bem privado, se assim o homem a conceber estará se submetendo à soberba, condição que Agostinho afirma ser o princípio de todo pecado221. A natureza da Verdade é eterna, e se esta diferença ontológica não for reconhecida pelo homem fatalmente ele incorrerá em erro. “Ao ser condição de possibilidade do ser e do pensar, a Verdade apresenta-se como o bem mais próprio da mente, o único que pode realizar sua natureza” (OLIVEIRA E SILVA, 1995, p. 22).

A mente humana é temporal e como tal se submete aos limites que o transcorrer do tempo222 lhe impõe, por isso a Verdade não pode ser apreendida por ela em plenitude, mas unicamente naquilo que dela se mostra quando habita na mente. Novamente Agostinho usa o sol como metáfora para explicitar esta condição: “se eu quiser contemplar o sol, e se pudesse fazer com persistência, ele escapar- me-ia, quer quando chegasse ao poente, quer quando as nuvens o ocultassem”223 (De lib. arb. II, 14, 38). A Verdade habita na mente como uma realidade que se revela e ao mesmo tempo permanece impenetrável, mas ao se revelar abre ao homem o horizonte da Beatitude, por isso, está sempre presente na vontade dos que escolhem perseverar no horizonte aberto por ela, todavia, “sem estar em nenhum lugar e sem estar ausente de nenhum sítio. De fora, admoesta. De dentro, ensina”224 (De lib. arb. II, 14, 38).

Para Agostinho não resta outra perspectiva à razão do que afirmar que esta realidade só pode ser Deus. Se existe outra realidade mais excelente do que a Verdade será ela Deus, todavia, se não pudermos conceber pela operação da inteligência nada mais excelente do que a Verdade, resta-nos unicamente afirmar que ela é Deus. Portanto, “já não o afirmamos como indubitável só porque o aceitamos pela fé, mas também porque o alcançamos através de uma forma de

221 Sobre este ponto por Agostinho em (De Civ. Dei XII, 6-7), comenta Gilson: “Tal é precisamente a

sabedoria: contemplação, não ação; voltada para o eterno, não para o temporal; comum a todos, não individual e possuída com avareza; que submete o indivíduo ao todo, e não que usa do todo tendo em vista o indivíduo” (GILSON, 2010, p. 232).

222Sobre a relação mente-tempo e sua dimensão fenomenológica em Agostinho ver Hermann (2015). 223 [texto latino]: Solem autem istum si uellem intueri atque id pertinaciter possem, et in occasu me

desereret et subuelaretur nubilo.

conhecimento certo”225 (De lib. arb. II, 15, 39). Na afirmação de Agostinho está suposta a fé como início de toda atividade humana de produção epistêmica. Ele adere a esta metodologia pela convicção de que o cristianismo guarda a razão universal e que a Escritura é depositária desta universalidade. Para ele, a dialética acreditar/compreender é a única forma possível de o homem conhecer e se relacionar com o mundo de maneira autêntica, de viver nele e até transcendê-lo, sem a íntima conexão destes dois elementos a atividade epistêmica estaria inviabilizada226.

Em (De lib. arb. II) Agostinho adere a uma gnosiologia baseada na eficácia causal da Verdade sobre a mente. Trata-se de um processo inerente à forma humana, onde “a razão humana estabelece uma relação constitutiva inquietante com um pólo que a supera e a transcende, sendo-lhe, a um tempo de máxima intimidade [...]; tal relação se justifica pela descoberta que a razão faz ao analisar o seu conteúdo intencional” (OLIVEIRA E SILVA, 2001, p. 36). Esta relação de penetração gradual da razão na natureza da própria mente, vai lhe revelando a Verdade como uma realidade totalmente outra que habita nela e lhe abrindo no horizonte um conteúdo de máxima universalidade. Disto decorre que a qualidade dos julgamentos da razão depende do nível de profundidade de sua relação com Deus, manifesto como Verdade no interior da mente. Aqui Agostinho mantém-se fiel à clássica fórmula da ontologia platônica: a mente humana não produz causalmente a Verdade, ela participa da Verdade, e tanto mais sábia se torna quanto mais aprofunda esta relação.

Tudo o que é no mundo enquanto é, é bom. Porque é sumamente bom aquele bem por cuja participação são boas as demais coisas. E tudo o que é mutável é bom enquanto é não por si mesmo, senão pela participação do bem imutável. Finalmente, o bem por cuja participação são boas as demais coisas, sejam como sejam, não por outro senão por si mesmo é bom, ao que chamamos sumo Bem, Divina Providência. Em consequência nada sucede no mundo por causalidade227 (De Div. quaest. Oct. 24, tradução

nossa).

225 [texto latino]: Quod iam non solum indubitatum, quantum arbitror, fide retinemus, sed etiam certa,

quamuis adhuc tenuissima, forma cognitionis adtingimus.

226 A respeito da relação entre fé e razão em Agostinho no sentido de sua complementariedade

epistemológica ver Novaes Filho (2009, p. 93-128).

227 [texto latino]: Omne autem quod est, in quantum est, bonum est. Summe enim est illud bonum,

cuius participatione sunt bona cetera. Et omne quod mutabile est, non per se ipsum, sed boni immutabilis participatione, in quantum est, bonum est. Porro illud bonum, cuius participatione sunt

Ao identificar a noção de Verdade com Deus Agostinho a identifica com o criador e fundamento de toda a Ordem228. Neste sentido que sua noção de Verdade não se reduz a uma ideia suprema que é condição de possibilidade para o uso da razão; ela é um fundamento que abrange em si o ser de todas as faculdades humanas, inclusive da vontade onde ele ancorou a origem do mal. Seu desafio será encontrar formas para articular esta noção de Verdade com o fator de permanente imprevisibilidade e instabilidade em que tais faculdades operam na natureza humana. Isto significa levar a razão ao ápice de sua capacidade natural que é ajuizar sobre a harmonia da realidade. Ou seja, levá-la a agir causalmente sobre o real do mesmo modo que a Verdade age sobre ela, respeitando a disposição natural das criaturas na Ordem.

Agostinho deduz assim um paradoxo de extrema fecundidade em sua visão de mundo – a tensão entre Verdade e liberdade. Enquanto princípio de inteligibilidade a Verdade é mandato de ação, do que decorre que toda ação humana necessariamente resulta da realização daquilo que a mente contempla no interior de si própria, ou seja, do julgamento que ela é capaz de realizar daquilo que conhece.

Que outra coisa fazemos, quando nos empenhamos em ser sábios, a não ser unir [...], toda nossa alma àquilo que alcançamos pela mente [...], a fim de que ela não se alegre já com seu bem privado [...], mas que despojada das afecções do espaço e do tempo, aprenda aquilo que é sempre uno e idêntico?229 (De lib. arb. II, 16, 41).

Por ser racional, a relação do homem com o mundo não se limita ao nível do que é produzido pelos sentidos, ele produz um julgamento superior que diz respeito a “o que fazer” com o mundo. Dado que os juízos verdadeiros produzidos na inteligência resultam de uma relação entre um elemento superior (Verdade) e um elemento inferior (seres criados), sua expressão é sempre exortativa, isto é, seus

bona cetera quaecumque sunt, non per aliud, sed per se ipsum bonum est, quam divinam etiam providentiam vocamus. Nihil igitur casu fit in mundo.

228 Tal como Agostinho o apresenta aqui Deus é “como o bem supremo num sentido potencial, a ser

atualizado pelo indivíduo [...]. O fim último do ser humano é, para Agostinho, não propriamente Deus, mas algo como “ser em Deus” [...]. Deus não é ele mesmo, a felicidade (o que, sem dúvida, seria também equivalência estranha), mas a grandeza potencialmente geradora da felicidade” (HORN, 2008, p. 143).

229 [texto latino]: Quid igitur agimus cum studemus esse sapientes [...], totam nostram quodam modo

colligamus [...], ut non iam priuato suo gaudeat [...], sed exuta omnibus temporum et locorum adfectionibus adprehendat id quod unum atque idem semper est?

juízos são da ordem do “dever ser”. Portanto, o “curso da vida humana no mundo” depende da harmonia entre a mente em que se manifesta a realidade inteligível superior (Verdade) e da vontade como potência de ser do homem. O pecado resulta exatamente do desequilíbrio destas duas esferas.

A Verdade é descoberta pela razão em uma atividade mental pura, todavia, a vontade é a faculdade intencional do homem, aquela pela qual ele define sua ação, se de acordo com o que lhe é revelado pela Verdade ou não230. Agostinho não credita a conquista da Sabedoria à função judicativa da mente. Ao invés, nesta tarefa é todo o ser humano que está comprometido em memória, inteligência e vontade. Com efeito, é na vontade mais do que na racionalidade que ele encontra uma propriedade inalienável da forma humana que se identifica com o ato criador de Deus231. Em outras palavras, o ser humano se distingue pelo “desejo natural” de buscar melhorar a sua forma. A perfeita e ordenada relação de “pertencimento” entre a inteligência e a vontade232, manifestam que o homem não é imagem e semelhança de Deus apenas por ser inteligente, mas, também, por ser intencional.

A origem da vontade cindida e a experiência da desordem na alma

230 “As ações que dependem da vontade humana. No lugar de serem necessariamente regidas pela

ordem divina, tem como objeto realizá-la. Aqui não se trata mais de submeter-se à lei, mas de querê- la e de colaborar com seu cumprimento. O homem conhece a regra; a questão é se ele a quer. Consequentemente, tudo depende da decisão que o homem tomar ou não tomar, de fazer reinar em si mesmo a ordem que ele vê ser imposta por Deus à natureza” (GILSON, 2010, p. 252). Segundo Pich (2005B, p. 148), o conceito de vontade agostiniano é fundamental não apenas por oferecer uma categoria descritiva de sua psicologia moral, mas também, porque dá sentido à linguagem acerca do dever e da responsabilidade. Sobre o debate contemporâneo a respeito da ideia de que há uma relação necessária entre livre escolha e bondade moral em Agostinho ver Matthews (2007, p. 167- 168).

231 Sobre este ponto diz Ullmann: “O homem é criado à imagem e semelhança de Deus. Se o ser

humano é uma imagem da espontaneidade criadora de Deus, ele necessariamente tem que ser inteligente e livre. Por serem criaturas, os seres humanos são limitados em suas faculdades. Devido à liberdade e à razão finitas, pelo menos não se pode excluir a possibilidade de usar a liberdade para o mal” (ULLMANN, 2010, p. 19).

232 Sobre este ponto Oliveira e Silva diz ainda que “a vontade humana, na sua dimensão intencional, é

o lugar privilegiado da manifestação da existência de cada ser humano. A tendência da vontade ao ser é entendida por Agostinho como expressão inconcussa da relação de união que a Deidade estabeleceu com os seres humanos [...]. É a especificidade desta relação de vontades, a divina e a humana [...], que garante a subsistência do ser humano como realidade contingente [...]. Tal fato significa que não cabe ao ser humano decidir se quer ou não existir, e se quer, ou não, que seu modo de ser seja este” (OLIVEIRA E SILVA, 2007, p. 100). Segundo Matthews (2007, p. 169), sem a vontade não seria possível definir o homem como agente moral.

Em visão agostiniana uma mente purificada é aquela que vive pela Sabedoria em comunhão com a Verdade, ela o deixa de ser quando sua vontade se apega aos bens transitórios do mundo chamados de carnais233. Nesta situação, ainda que a Verdade se revele à mente, a vontade se projeta em outra direção, faz do desejo por um bem inferior seu sentido de primeira ordem, a beleza harmônica da Ordem torna-se-lhe estranha em função do deleite por único bem inferior. Este deleite pode ser satisfatório para o homem em um primeiro momento, mas é incompleto porque não tem a capacidade de revelar um sentido à sua existência como o faz a Verdade. Assim, os homens “fixam-se nas obras carnais como na sua própria sombra [...]. Mas enquanto se ama a sombra, o olhar do espírito torna-se mais fraco”234 (De lib. arb. II, 16, 43), e a Verdade revelada à mente torna-se obscura. Dá-se aí a origem da “vontade cindida”.

Quando se fala das “escolhas da vontade” em Agostinho é importante distinguir entre as que são erros e as que se tornam “pecado”. O erro faz parte da dinâmica da vida no tempo; significa confundir a finalidade de um determinado objeto sem a intenção de pervertê-la. Estes erros não ferem a identidade da forma humana, por isso, “devem ser contados entre as calamidades da vida, que está sujeita de tal modo à vanidade, que se aprova o falso como verdadeiro”235 (Enc. XXI, 7, tradução nossa). Já o pecado é a escolha voluntária contra a Ordem, é quando pela capacidade de sua mente o homem contempla a Verdade e decide viver de forma contrária à lei eterna, que para ele tem o peso de um dever. Aí ele desrespeita e ignora a vontade que deu origem à Ordem criada, nisto consiste seu afastamento de Deus (De Civ. Dei XI, 18). Significa que “Deus pode até ter permitido ao homem

233 Em (De Civ. Dei XIV, 2-3) Agostinho afirma que o pecado tem origem na alma e não no corpo, o

que se manifesta nele é a consequência de uma defectibilidade de origem espiritual e não carnal. O autor demonstra que a carne em si não é a fonte do mal como pensavam alguns filósofos antigos. Diferencia a concepção de “carne” e “corpo” no pensamento estoico e epicurista da concepção bíblica destes conceitos. Segundo Gilson (2010, p. 272) o apego que termina por levar o homem ao pecado, se explica em parte pela falta originária de ser que ele possui enquanto ser temporal. Esta é a origem metafísica da mutabilidade de sua vida anímica e não o fato de sua alma vivificar um corpo carnal. Duffy (2001) e Montagna (2009) tratam do sentido moral que Paulo dá aos termos “espírito” e “carne” em suas cartas e como a concepção de Agostinho é devedora dos escritos do Apóstolo.

234 [texto latino]: ponentes in carnali opere uelut in umbra sua defiguntur [...]. Sed umbra dum amatur

languidiorem facit oculum animi et inualidiorem.

235 [texto latino]: qui errores etiamsi peccata non sunt, tamen in malis huius vitae deputandi sunt, quae

errar quanto aos meios, mas não se perder a ponto de esquecer seu fim” (GILSON, 2010, p. 224).

A justiça se torna uma virtude impraticável para o homem quando sua mente se põe distante das regras que lhe garantem a correspondência com a lei eterna, por consequência, a capacidade de sua inteligência na tarefa de orientar a vontade se demonstra cada vez mais limitada. Ao negar o apelo à virtude colocado diante de si pela lei eterna, a vontade se dispersa entre uma diversidade de apelos que a razão não consegue julgar e ordenar. Agostinho volta a afirmar que a vontade livre está entre os melhores bens da condição humana (De lib. arb. II, 18, 47), sem ela o homem não poderia ter uma vida de retidão, porém, ainda que a Verdade venha a habitar na mente, a adesão da alma ao que ela apresenta como melhor depende do livre consentimento da vontade. A inteligência por si não opera a edificação do ser do homem se não tiver o impulso da vontade, ou seja, ao mesmo tempo em que compreende a lei eterna o homem a toma como preceito. Esta lei se converte em um mandato de colaboração com o ser divino na edificação do real, que unicamente pode se efetivar se a vontade o assumir intencionalmente como compromisso a ser realizado livremente.

A imago Dei que caracteriza a mente humana se estende à vontade como faculdade operante e, pode-se dizer, criativa236. É ela que torna possível qualquer atividade anímica do homem, inclusive a atividade racional. O processo de crescimento da forma humana no tempo supõe o reconhecimento simultâneo de duas dimensões que compõem unidas seu modo de ser – a vida racional e a liberdade. No esse uelle (querer ser) da alma humana se inscreve o desiderato último do ser humano inscrito na intencionalidade manifesta pela vontade que é anterior à própria razão, ou seja, o mal, enquanto corrupção, ao se instalar na natureza humana encontra-se em uma realidade ainda em formação237. Assim, a

236 Este ponto é mais sistematicamente desenvolvido em (Trin. VIII-XIII), quando Agostinho

desenvolve o tema da imago Dei tratando das analogias trinitárias do ser perceptíveis na alma humana. Este tema é amplamente comentado por Ayoub (2011) e por Souza (2013).

237 Em (De pec. mer. I, 2, 2) Agostinho trata dos níveis de ser do homem expressos no corpo – (1) o

natural em que somos criados; (2) o corruptível, consequência do pecado e (3) o espiritual, destino último do homem. O gênero humano passaria diretamente do primeiro a este último se Adão não tivesse pecado (De Gen. ad lit. XI), o que nos dá a entender que mesmo no Éden a condição humana era uma realidade em formação, que deixou de ser e tornou-se de deformação em função da queda.

desordem se torna sinônimo de deformação em dois sentidos: primeiro porque impede o crescimento da forma humana no tempo, depois, porque lhe faz regredir ao nada.

A vontade humana não pode não querer ser, por isso, o mal na visão agostiniana não é mais do que uma deficiência na expressão de ser do homem, gera graves e pesadas consequências em sua alma, mas não passa de um permanente peso a impedir que o homem realize sua tarefa mais elementar – construir o mundo. Contudo, isto não significa que o mundo tenha sido entregue ao homem sem um parâmetro para o exercício de sua liberdade, ao contrário, a potencialidade da vontade só se realiza no âmbito do ser que tem a justa Ordem por fundamento. “O livre arbítrio é, neste contexto, a expressão do querer de Deus para o ser do homem” (OLIVEIRA E SILVA, 2001, p. 73). Neste sentido, que

segundo o exposto até aqui, não se cumpre aquela regra dos dialéticos: não podem dar-se qualidades contrárias em uma mesma coisa e ao mesmo tempo; pois vemos que bens e males coexistem [...]. Todos admitem que o bem e o mal são contrários e, não obstante, ambos podem existir simultaneamente no mesmo ser; além do mais, o mal não pode existir de modo algum sem um bem e fora dele, ainda que o bem possa existir sem o mal238 (Enc. XIV, 4).

Assim, correndo o risco de cair na substancialização do mal de que Agostinho tanto buscou se afastar, podemos defini-lo após a queda como uma “força” que atua como um “contra ser”, algo que compromete a vida de um bem em sua forma, mas que não o elimina da Ordem fazendo-o retornar ao nada. Neste sentido que em seu opúsculo Contra Epistulam quam vocant fundamenti, escrito contra os maniqueus, seguindo a perspectiva enunciada em De Ordine na “solução de Mônica”, Agostinho diz que

o mal não é uma natureza, senão algo contra a natureza. A este mal Deus adornou de tal formosura, das formas e de paz das partes que vivem em cada natureza – porque sem estes bens não se poderia pensar em

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