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A origem sacrificial do rito

No documento Riviére Ritos Profanos 15 Abr (páginas 32-35)

Do mesmo modo que, a partir da lógica do pensa- mento e da vida, Claude LéviStrauss extrai a lógica do rito, assim também René Girard  em sua obra Laviolence et le sacré   procura reduzir os ritos a uma explicação úni- ca e original, empreendendo um trabalho que pretende ser pluridisciplinar, mas carece de cientificidade biológi- ca e antropológica, e se coloca à margem das ortodoxias psicanalíticas.

Em suma, para o autor, o homem é um ser de desejo que não pode desejar sozinho, mas cujo objeto de desejo é sempre designado por uma terceira pessoa. No fundo da natureza humana: esse desejo mimético, compreen- dendo a mimesis  como força de imitação que leva a dese-

jar o que já é desejado pelos outros. Daí, uma violência original pela apropriação do raro e do outro em seu ser e haver. Não se trata de exploração e alienação marxista, ou rivalidade edipiana entre pai e filho, mas de violência recíproca pela satisfação dos desejos pessoais que é a conseqüência de uma imitação, fonte de aprendizagem e conformismo, ao mesmo tempo que de rivalidade pela partilha de mulheres, alimentos, armas e territórios.

Quando as proibições não são suficientes para frear a violência, um mecanismo sobressalente é o da vítima ex piatória. O sacrifício de um bode expiatório (ser sacrifi cável tal como o estrangeiro, o deficiente, a criança, o ani- mal, determinado bem ou objeto), enquanto aconteci- mento fundador da comunidade, permite que, de forma ritual, esta conserve sua coesão. Nas sociedades arcaicas, esse sacrifício de uma vítima carregada arbitrariamente com todos os males do grupo é um remédio curativo preventivo para fesolver ou impedir as explosões de vio- lência. Opera uma transferência coletiva dos problemas internos para uma vítima de substituição.

Nessa catarse,  diversas idéias são postuladas por Gi-

rard como fundamentais: o pensamento mítico referese sempre ao começo. Na origem, em qualquer ritual, existe um assassinato. Os deuses e os heróis apresentam o jogo dá violência em seu conjunto. Ora recíproca, ora unâni- me, a violência fundadora dá conta do duplo caráter de toda divindade primitiva. A vítima expiatória é conde- nada à morte sob a aparência do duplo monstruoso. Toda criatura sagrada é monstruosa e desempenha, su- cessivamente, todos os papéis na violência. A função da religião como máquina de sublimação social é produzir nãoviolência por um ato violento. Nos ritos mágicore ligiosos, teatrais ou terapêuticos, assim como no sistema judiciário, a liberação purificatória do grupo situase no prolongamento ritual da violência fundadora.

Observaremos, com certeza, que a cortesia pode ser concebida como precaução contra o surgimento poten- cial da violência e que os ritos profanos atuam, em geral, como inibidores da violência (exceto em alguns ritos mi- litares). No entanto, será verdade que existe, como é enuncia'do por Girard contra Freud, uma primazia da violência no desejo e um imperativo de imitação mais importante do que o desejo sexual?

Girard apóia sua teoria no fato de que o mimetismo e a violência são naturais ao homem. No entanto, Kon

rad Lorenz mostrou que, até mesmo no animal, existem mecanismos reguladores da agressividade (submissão, fuga), assim como do nãogregarismo. Será que existe, efetivamente, um mecanismo universal das regulações culturais da violência? Estaremos seguros da origem de seu desencadeamento? Pecado original, estupidez hu- mana, instinto irrepressível? Os postulados girardianos devem ser ponderados. Da mesma forma que nem toda a violência é sagrada, assim também o sagrado não é re dutível à violência. Nem todos os ritos têm o mesmo ob- jetivo ou mecanismo. O reducionismo filosófico atinge seu cúmulo nesse apetite de generalização apodíctica a partir de pressupostos, somente lógicos e insuficiente- mente escorados em dados científicos que cedem ao cos- tume evolucionista de explicar tudo pela origem, como se esta não fosse hipotética e como se o complexo encon- trasse sua explicação no simples, è o atual no arcaico. Com que direito poderá o rito ser isolado de seus contex- tos socioculturais, como se um significado flutuasse fora dos significantes? Será que o sacrifício é verdadeiramen- te hierofânico e originário? Será que a origem é acessível e verificável? Será possível resolver a etiologia da violên- cia fora da etologia e da préhistória? Será que a função do bode expiatório tem a mesma eficácia reconhecida por toda a parte? Será que as religiões (assassinas, no Ocidente) são realmente os baluartes contra a violência? O que representa essa mimesis  na natureza do homem, como o flogístico na natureza do fogo? Poupemos os se- res de pensamento, diria Guilherme de Ockam!

A maneira como formulamos as questões leva, com certeza, a uma resposta que contesta as posições de R. Girard. No entanto, embora atacando os princípios de sua demonstração, podemos julgar bastante sedutoras algumas de suas argumentações fragmentárias. De qual- quer modo, ao inscrever à violência e o sacrifício no âma- go do sagrado, a teoria tem pouca utilidade para apreen- der os ritos profanos, a menos que seus mecanismos se- jam idênticos  mas tal asserção teria de ser comprovada

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fora de uma referência ao transcendente  ou que todo rito profano tenha sua origem no mito ou rito religioso, limitandose a reproduzilo; ora, mostraremos que isso é improvável.

Em suma, da mesma forma que a releitura da men- sagem crística da misericórdia ou o receio de uma vio- lência nuclear não suscitarão tal racionalidade invocada por Girard para liquidar a violência e o rito, assim tam- bém não nos parece razoável reduzir a maioria dos ritos profanos ao esquema sacrificial, fazendoos derivar de ritos religiosos.

A origem animal do rito: dados da etologia

Se a suposta origem dos cultos do homem, sua vio- lência^ sua mimesis  não são suficientes para explicar

toda a riqueza do processo de ritualização, será que po- demos encontrar um fundamento desse processo em nossa relação originária ao mundo animal e explicar por esse meio o que haveria de profano em nossa tendência para ritualizar um grande número de nossos comporta- mentos? Sem que seja possível demonstrar, experimen- talmente, a fixação de um comportamento ritualizado do ponto de vista da evolução, os biólogos pensam que um processo de ordem filogenética tem como efeito fornecer um excelente valor sinalético para certos  padrõesmoto res provenientes de atividades instintivas específicas às quais, por herança, terseia acrescentado uma função de comunicação, sendo que a realização do rito teria, então, valor de sinal desencadeador.

O padrãomotor pode assumir a forma de:

1. uma atividade instintiva  por exemplo, alimenta- ção ou fuga  com valor funcional direto.

2. um movimento de intenção, inibido pelos centros motores, ou incompletamente realizado por falta de mo- tivação.

3. uma atividade de conforto (higiene, alisamento das plumas) integrada na exibição sexual (como a ma quilagem para os seres humanos).

4. uma atividade de deslocamento na interação de duas tendências antagonistas como a agressão e a sexua- lidade (afirmase o entendimento para evitar uma briga).

5. determinados apelos à reciprocidade que, no jogo sexual, desencadeiam coordenações motoras nos dois parceiros. A ritualização propriamente dita acentuaria o caráter expressivo desses comportamentos e tornaria es- pecífico e não ambíguo o sinal desencadeador, seja por um movimento exagerado e ostensivo, seja pela apresen- tação de uma parte do corpo ou por uma mímica que reduziria a incerteza da informação transmitida (exibi- ção do traseiro em sinal de submissão, pênissentinela delimitando o território por micção, ritos de intimidação para decidir a respeito de uma dominância hierárquica, arrulho do pombo e roda do pavão como convite à cópu la, alimentação dos filhotes pelo macho em certas espé- cies, etc.). Como as mensagens são transmitidas mais pe- las posturas, gestos e mímicas do que por vocalização, não seria possível ler no animal a infraestrutura primi- tiva de alguns de nossos ritos profanos: os gestos de sal- vação traduziriam o embaraço, o beijo encontraria sua origem na alimentação?

Tendo dirigido um colóquio sobre a ritualização no homem e no animal, Julian Huxley propõe a seguinte de- finição: "Etnologicamente, a ritualização (no animal) pode ser definida como a formalização ou a canalização adaptativa de um comportamento com motivação emo- cional, sob a pressão teleonômica da seleção natural des- tinada a:

a) garantir uma eficácia maior da função de diversão e diminuir a ambigüidade, do ponto de vista intraespe cífico como interespecífico;

b) fornecer aos outros indivíduos determinados esti- mulantes ou desencadeadores de esquemas de ação mais eficazes;

c) reduzir as perdas no interior da espécie;

d) servir de mecanismo de ligação sexual e social" (Huxley, p. 9).

Duas tendências se opõem no comportamento ritual do animal: "Por um lado, ele tende para o reflexo etoló gico através da elaboração de sinais que desencadeiam a ação apropriada no prazo mínimo; por outro, para a pro- dução de cerimônias persistentes que servem para refor- çar o elo sexual e social" (ibid ., p. 21).

Da diferença entre ritualização humana e animal, o mesmo autor retém seis pontos de comparação: conver- gência dos resultados funcionais da ritualização no ani- mal e no homem; diferença no modo de transmissão  genética no animal, cultural no homem; capacidade re- dobrada de aprendizagem do homem que engendra uma grande complexidade e variabilidade de ritos; no homem, grau de individuação superior ao de todos os outros animais; consciência da individualidade peculiar ao homem; recalcamento humano do sentimento de cul- pa infantil em decorrência da formação do inconsciente (cf.ibid.,p. 2325).

Convém acrescentar que a função de comunicação é indubitavelmente um ponto de convergência entre ritos animais e humanos; no entanto, em relação ao homem, o rito tem lugar a partir de uma alteridade que ocorre, si- multaneamente, no plano material pela comunicação in terindividual e no plano das idéias com seres de pensa- mento ou potências sobrenaturais. Quanto à função de reconhecimento e coesão social, vamos encontrála tam- bém em muitos ritos profanos entre os quais os ritos ali mentares abordados por Mary Douglas: refeições em co- mum e crenças compartilhadas como são as proibições

alimentares. No entanto, M. Douglas adotou uma abor- dagem mais cognitivista lembrando que, paralelamente às funções conativas, as crenças e os ritos possuíam uma função de conhecimento. As crenças dos homens dife- rem das representações animais no sentido em que pro- duzem uma ordem, graças a seus "sistemas simbólicos" que variam enormemente no âmago da mesma espécie (cf. Douglas,  passim).  Se tais variações fossem transpa- rentes, não haveria necessidade de etnólogos para deci- frálas. Enfim, se a função de canalização da agressivida- de convergir para a teoria de Girard, será passível das mesmas observações. Determinados ritos, como a ora- ção, são dificilmente redutíveis a essa função. Em algu   mas culturas, certos comportamentos agressivos podem

ser reprimidos ou, pelo contrário, encorajados. E, em uma mesma cultura, os ritos são comportamentos espo rádicos que, muitas vezes, caracterizam somente alguns membros, enquanto o rito animal repetitivo caracteriza

toda a espécie.

Apesar de serem perceptíveis analogias pontuais, as diferenças são suficientemente importantes para que o etnólogo renuncie a efetuar extrapolações de etologia animal que se fundamentariam nas relações de identida- de entre o homem e os outros animais.

No documento Riviére Ritos Profanos 15 Abr (páginas 32-35)

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