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Riviére Ritos Profanos 15 Abr

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Prefácio à edição brasileira

Prefácio à edição brasileira

Q

Q

  ponto de partida de Claude Rivière não parece ser  ponto de partida de Claude Rivière não parece ser muito diferente do de Berkeley, o grande filósofo muito diferente do de Berkeley, o grande filósofo in-glês:

glês: ser é ser percebido.ser é ser percebido.  Só existimos, enquanto seres hu-  Só existimos, enquanto seres hu-manos, isto é, como "animais sociais", na medida em que manos, isto é, como "animais sociais", na medida em que somos reconhecidos. Ora, o rito, envolvendo a ação somos reconhecidos. Ora, o rito, envolvendo a ação con-certada e padronizada dos membros do grupo ou certada e padronizada dos membros do grupo ou socie-dade, é por excelência o meio e a ocasião do dade, é por excelência o meio e a ocasião do reco-nhecimento mútuo. Apesar do aparente declínio das nhecimento mútuo. Apesar do aparente declínio das grandes religiões, o rito, representando por assim dizer grandes religiões, o rito, representando por assim dizer a respiração da sociedade, não desapareceu. Podemos a respiração da sociedade, não desapareceu. Podemos reencontrálo não só entre as seitas, igrejas e movimentos reencontrálo não só entre as seitas, igrejas e movimentos que tentam recuperar a herança das igrejas tradicionais que tentam recuperar a herança das igrejas tradicionais (que também atravessam processos de reforma, (que também atravessam processos de reforma, renova-ção e ressurgência), mas também  e este é o objetivo ção e ressurgência), mas também  e este é o objetivo es-pecífico de

pecífico de Os ritos profanosOs ritos profanos   nos ritmos quotidianos da   nos ritmos quotidianos da vida social

vida social11..

Não há então

Não há então sociedade propriamensociedade propriamente dita sem te dita sem queque os indivíduos que a compõem, de um modo ou de outro, os indivíduos que a compõem, de um modo ou de outro,

1.

1. Claude Claude Rivière,Rivière, LesLes rifes rifes profanes, profanes, Paris, Presses Universitaires de  Paris, Presses Universitaires de FranceFrance (coleção "Sociologie d'Aujourd'hui"), 1995,261 p.

(coleção "Sociologie d'Aujourd'hui"), 1995,261 p.

77 Claude Riviére,

Claude Riviére, Os Ritos ProfanosOs Ritos Profanos. Petrópolis:. Petrópolis:

Vozes, 1997

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se apercebam de seu reflexo na percepção dos outros. A se apercebam de seu reflexo na percepção dos outros. A interação social realizase através de reflexos de reflexos. interação social realizase através de reflexos de reflexos. O rito representa, para empregarmos os termos de Emile O rito representa, para empregarmos os termos de Emile Durkheim  do qual Claude Rivière é herdeiro, tanto nas Durkheim  do qual Claude Rivière é herdeiro, tanto nas idéias como na cátedra que ocupa na Sorbonne  a idéias como na cátedra que ocupa na Sorbonne  a socie- socie-dade em ato,

dade em ato,  a sociedade agindo precisamente enquanto  a sociedade agindo precisamente enquanto

sociedade: sociedade:

O rito exprime o ritmo da vida social, da qual é o O rito exprime o ritmo da vida social, da qual é o resultado. Só se reunindo é que a sociedade pode resultado. Só se reunindo é que a sociedade pode reavivar a percepção, o sentimento que tem de si reavivar a percepção, o sentimento que tem de si mesma

mesma22..

Rivière confere às idéias de Durkheim Rivière confere às idéias de Durkheim surpreenden-te ampliação. Já não precisamos passar pelos aborígenes' te ampliação. Já não precisamos passar pelos aborígenes' da Austrália, com seus complicados sistemas de divisão da Austrália, com seus complicados sistemas de divisão em clãs exogâmicos e seus rituais totêmicos. O rito em clãs exogâmicos e seus rituais totêmicos. O rito tor-nase fenômeno banal e quotidiano, mesmo sem que essa nase fenômeno banal e quotidiano, mesmo sem que essa descoberta venha a contradizer a distinção durkheimia descoberta venha a contradizer a distinção durkheimia na entre tempo profano e tempo sagrado.

na entre tempo profano e tempo sagrado.

Vamos encontrar a ritualidade já na vida infantil, Vamos encontrar a ritualidade já na vida infantil, Ri-vière assinalando que a educação em grande parte se vière assinalando que a educação em grande parte se ba-seia "na aquisição de hábitos e valores que implicam em seia "na aquisição de hábitos e valores que implicam em numerosos microrrituais na vida diária da criança" . numerosos microrrituais na vida diária da criança" . Podese igualmente reconhecêla nos trotes estudantis, Podese igualmente reconhecêla nos trotes estudantis, bem como nos concertos de rock e outros grandes bem como nos concertos de rock e outros grandes espe-táculos musicais, representando "os ritos de exibição da táculos musicais, representando "os ritos de exibição da adolescência marginal"

adolescência marginal"44.0 ritualismo encontrase igual-.0 ritualismo encontrase

igual-mente na apresentação regulada do corpo, "feita de evi mente na apresentação regulada do corpo, "feita de evi tamentos e de ocultações, canalizando assim as emoções tamentos e de ocultações, canalizando assim as emoções que implicam numa ameaça constante de que implicam numa ameaça constante de desequilí-brio"

brio"55. Há também a ritualidade associada à prática es. Há também a ritualidade associada à prática es

2. Emile Durkheim,

2. Emile Durkheim, Les formes élémentaires de lã vie religieuse: Le systèmeLes formes élémentaires de lã vie religieuse: Le système totémique en Austrnlie,

totémique en Austrnlie, Paris, Alcan, 1925, p. 499. Paris, Alcan, 1925, p. 499. 3.

3. Op. cit.,Op. cit., p. 81. p. 81. 4.

4. Op. cit.,Op. cit., p. 121. p. 121. 5.

5. Op. cit.,Op. cit., p. 141. p. 141.

88

portiva. A propósito desta e sobretudo do futebol, portiva. A propósito desta e sobretudo do futebol, Riviè-re se baseia inclusive em Roberto da Matta

re se baseia inclusive em Roberto da Matta66 ,  , para para desta-

desta-car a integração resultante da "comunicação simbólica car a integração resultante da "comunicação simbólica entre os participantes, conectando numa vasta entre os participantes, conectando numa vasta repre-sentação os sentidos e os valores mobilizados pelos sentação os sentidos e os valores mobilizados pelos par-ticipantes"

ticipantes"77..

E não esqueçamos os rituais ligados à alimentação, E não esqueçamos os rituais ligados à alimentação, que formam inclusive a base da Eucaristia, configurada que formam inclusive a base da Eucaristia, configurada na missa, que é o rito por excelência da tradição católica. na missa, que é o rito por excelência da tradição católica. Como salienta nosso autor, "partilhar com os outros a Como salienta nosso autor, "partilhar com os outros a alimentação, muitas vezes significa situar a identidade alimentação, muitas vezes significa situar a identidade individual dentro da identidade do grupo, no lar ou na individual dentro da identidade do grupo, no lar ou na Eucaristia"

Eucaristia"88. O capítulo sobre "o cerimonial da comida". O capítulo sobre "o cerimonial da comida"

bem que poderia ser ampliado em livro independente, já bem que poderia ser ampliado em livro independente, já que em talvez nenhum outro domínio seja mais íntima e que em talvez nenhum outro domínio seja mais íntima e  __

 _______ _ fundamental a imbricação entre ritmos biológicos e ri-fundamental a imbricação entre ritmos biológicos e ri-tuais. Segundo Rivière:

tuais. Segundo Rivière:

Momento-chave da interação familiar e elemento Momento-chave da interação familiar e elemento da arquitetura da vida social, a refeição da arquitetura da vida social, a refeição apresen-ta-se como ritualização da partilha da comida, ta-se como ritualização da partilha da comida, num crimonial influenciado pelas preferências num crimonial influenciado pelas preferências religiosas e que se transmite através das gerações, religiosas e que se transmite através das gerações, respondendo à lei cultural da aliança e de troca respondendo à lei cultural da aliança e de troca representada pela comensalidade. No seio da fa representada pela comensalidade. No seio da fa mília, a refeição contribui para o aprendizado mília, a refeição contribui para o aprendizado dos papéis, da solidariedade e da distinção so dos papéis, da solidariedade e da distinção so cial. No seio do grupo d

cial. No seio do grupo d os comensais, ela asseguos comensais, ela assegu ra a transmissão e a

ra a transmissão e a permanência dos valores culpermanência dos valores cul turais e das regras socialmente definidas, a turais e das regras socialmente definidas, a

con-6.

6. A referência de Rivière é a "Notes sur le Football Brésilien",A referência de Rivière é a "Notes sur le Football Brésilien", Le DébatLe Débat (Paris), 1982, p. 68-76. Este artigo, porém, é versão resumida de "Esporte na (Paris), 1982, p. 68-76. Este artigo, porém, é versão resumida de "Esporte na Sociedade; Um Ensaio sobre o Futebol Brasileiro", em Roberto da Matta Sociedade; Um Ensaio sobre o Futebol Brasileiro", em Roberto da Matta et al.,et al., Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira,

Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira, Rio de Janeiro, Edições Pinako- Rio de Janeiro, Edições Pinako-theke, 1982, p. 19-42.

theke, 1982, p. 19-42. 7. Rivière,

7. Rivière, op. cit.,op. cit., p. 168. p. 168. 8.

8. Op. cit.,Op. cit., p. 190. p. 190.

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lores metafísicos; potências superiores mitifica lores metafísicos; potências superiores mitifica das pertencentes ao domínio do indizível, inaces das pertencentes ao domínio do indizível, inaces sível e inefável. Essa força é ainda chamada de sível e inefável. Essa força é ainda chamada de imperativo categórico, de instituído inquestioná imperativo categórico, de instituído inquestioná vel, de postulado arbitrário, transferindo para o vel, de postulado arbitrário, transferindo para o invisível as razões da ordem social e cósmica. O invisível as razões da ordem social e cósmica. O sagrado religioso, como o sagrado político ou so sagrado religioso, como o sagrado político ou so cial, é o que se situa além de nossa apreensão e de cial, é o que se situa além de nossa apreensão e de nosso poder; é o mito ou a certeza íntima (que nosso poder; é o mito ou a certeza íntima (que significam a mesma coisa) de uma totalidade que significam a mesma coisa) de uma totalidade que se responsabilizaria por tudo aquilo que nos su se responsabilizaria por tudo aquilo que nos su pera. É um modo de teorizar a impotência pera. É um modo de teorizar a impotência1818..

O que significa não que a religião se reduza a simples O que significa não que a religião se reduza a simples epifenômeno de forças sociais, mas o caráter analógico epifenômeno de forças sociais, mas o caráter analógico do conceito de sagrado, que se realiza de muitas do conceito de sagrado, que se realiza de muitas manei-ras

ras1919. Qualquer que seja o. Qualquer que seja o outro,outro,  implícito no vivido da  implícito no vivido da

ritualização, o ponto de partida dó aütor

ritualização, o ponto de partida dó aütor ê ê   qüe nãò há  qüe nãò há sociedade sem rito, nem rito sem

sociedade sem rito, nem rito sem sociedade.sociedade.

Ora, o Brasil em matéria de secularização  e de se Ora, o Brasil em matéria de secularização  e de se cularização acelerada  em nada fica a dever à França e cularização acelerada  em nada fica a dever à França e a outros países do mundo ocidental. E secularização se a outros países do mundo ocidental. E secularização se entende em primeiro lugar como declínio da influência entende em primeiro lugar como declínio da influência exercida pelas grandes igrejas históricas, no nosso caso a exercida pelas grandes igrejas históricas, no nosso caso a católica. Tratase de uma das características decisivas da católica. Tratase de uma das características decisivas da modernidade, implicando a'perda da referência modernidade, implicando a'perda da referência especi-ficamente religiosa para a afirmação da identidade ficamente religiosa para a afirmação da identidade cole-tiva. Já não nos definimos como cristãos em face de tiva. Já não nos definimos como cristãos em face de mou-ros, como nas cruzadas ou na

ros, como nas cruzadas ou na Reconquista Reconquista  do solo ibérico,  do solo ibérico,

nem como católicos diante de protestantes, nas lutas nem como católicos diante de protestantes, nas lutas contra os invasores holandeses do Nordeste no século contra os invasores holandeses do Nordeste no século XVII. Fazemos parte de uma organização política, a XVII. Fazemos parte de uma organização política, a

Re-is.

is. Op. cit.,Op. cit., p. 16-17. p. 16-17. 19.

19. Sobre Sobre esta esta temática, temática, pode-se pode-se ler ler com com proveito proveito Claude Claude Rivière Rivière e e AlbertAlbert Piette (dirs.),

Piette (dirs.), Nonvelles idoles, novenux cultes: dérives de Ia sacralité,Nonvelles idoles, novenux cultes: dérives de Ia sacralité,  Paris: L'Har- Paris: L'Har-matten, 1990.

matten, 1990.

pública Federativa do Brasil, que simplesmente não pública Federativa do Brasil, que simplesmente não pos-sui filiação religiosa, apesar das reivindicações por assim sui filiação religiosa, apesar das reivindicações por assim dizer residuais do Catolicismo que presidiu a nossa dizer residuais do Catolicismo que presidiu a nossa for-mação.

mação.

O início dessa

O início dessa descatolicizaçãodescatolicização  remonta seguramente  remonta seguramente a meados do século XIX e mesmo a antes. Nessa a meados do século XIX e mesmo a antes. Nessa mudan- mudan-ça desempenhou papel decisivo o exemplo do enciclope ça desempenhou papel decisivo o exemplo do enciclope dismo francês, cujo ideário foi posto em prática pela dismo francês, cujo ideário foi posto em prática pela Re-volução, com suas muitas seqüelas, na Europa e nas volução, com suas muitas seqüelas, na Europa e nas Américas. Entre os primeiros sinais da quebra do Américas. Entre os primeiros sinais da quebra do mono-pólio religioso encontrase, em meados do século XIX, o pólio religioso encontrase, em meados do século XIX, o aparecimento de congregações protestantes compostas aparecimento de congregações protestantes compostas de lusobrasileiros, bem como, no outro extremo de de lusobrasileiros, bem como, no outro extremo de nos-so espectro religionos-so, dos primeiros

so espectro religioso, dos primeiros terreirosterreiros  afrobrasi  afrobrasi leiros mais ou menos autônomos, isto é, separados, de leiros mais ou menos autônomos, isto é, separados, de irmandades e confrarias ostensivamente católicas, ao irmandades e confrarias ostensivamente católicas, ao mesmo tempo em que distintos da simples prática mesmo tempo em que distintos da simples prática oca-sional de algum curandeirismo pela invocação a deuses sional de algum curandeirismo pela invocação a deuses ou espíritos africanos

ou espíritos africanos2020..

Tratase de processo muito lento e que, embora já Tratase de processo muito lento e que, embora já an-tigo, ainda hoje não se completou, atingindo, em tigo, ainda hoje não se completou, atingindo, em diferen-tes velocidades, regiões, classes e segmentos de classe. O tes velocidades, regiões, classes e segmentos de classe. O processo parece ter se acelerado muito no último quartel processo parece ter se acelerado muito no último quartel do século XX, em ligação com as mudanças do século XX, em ligação com as mudanças experimen-tadas pela Igreja em decorrência do II Concilio do tadas pela Igreja em decorrência do II Concilio do Vati-cano ou contemporaneamente a ele. Passa então a cano ou contemporaneamente a ele. Passa então a predo-minar, em ambientes da própria Igreja, sobretudo nos minar, em ambientes da própria Igreja, sobretudo nos mais chegados à

mais chegados à teologia da libertação,teologia da libertação,  uma concepção do  uma concepção do relacionamento entre catolicismo e sociedade relacionamento entre catolicismo e sociedade priorizan-do não mais a priorizan-dominação, ou impregnação, das do não mais a dominação, ou impregnação, das estrutu-ras sociais pela Igreja, mas

ras sociais pela Igreja, mas a transformação muitas vezesa transformação muitas vezes

20.

20. Sobre Sobre descatolicização descatolicização e e sincretização sincretização ver ver Roberto Roberto Motta, Motta, "Le "Le Métis- Métis-sage des Dieux dans les Religions Afro-Brésiliennes"

sage des Dieux dans les Religions Afro-Brésiliennes" ReligiologiquesReligiologiques  (numéro  (numéro special sur

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formidade com o modelo expressando a partici pação do indivíduo no grupo9.

Aparte mais descritiva do livro não se acaba sem ca-pítulos adicionais sobre o ritualismo das empresas, do qual servem de exemplo, ainda este "eucarístico", os banquetes de confraternização, dos lazeres e diversões, sem contar com saudações e cumprimentos, "microrri tuais do quotidiano, que perpetuam uma identidade na medida em que sua execução revela a identificação a um grupo específico e diferenciado"10.

Rivière trata ainda da loteria, da caça (na qual, se-gundo Walter Burkert11 , encontrase o arquétipo do

ar-quétipo de todos os ritos, que é o sacrifício, compreen-dendo imolação e comunhão), dos espetáculos teatrais e dos ritos do judiciário. Luxo e ostentação não são esque cidos, através dos quais se exibem e reafirmam classe, identidade e poder. Tudo isto porque outro não é o pro-jeto do autor senão "colocar" o quotidiano sob o micros-cópio sociológico"12.

 Já vimos que o rito é a respiração da sociedades Ri-vière, ainda na introdução, o define, da maneira mais ge-ral, como

conjunto de condutas individuais ou coletivas, relativamente codificadas, com base corporal (verbal, gestual, postural), de caráter mais ou me nos repetitivo, com forte carregamento simbólico para seus atores e habitualmente para os seus as sistentes, condutas essas fundamentadas numa adesão mental, muitas vezes inconsciente, a valo

9. Op. cit., p. 217. 10. Op. cit., p. 239.

11. Walter Burkert, Homo Necans: The Antropology ofAncient Greek Sacrifi-cial Ritual and Myth. Berkeley: University of Califórnia Press, 1983.

12. Op. cit., p. 237.

res relativos a escolhas sociais consideradas como importantes, e cuja eficácia não depende de uma lógica puramente empírica que se esgotaria na instrumentalidade técnica da ligação entre causa e efeito13.

Colocase aqui o problema da relação entre três ter-mos, que são rito, sagrado e religião,  que já era, a seu

modo, o problema fundamental de Emile Durkheim, em

 As formas elementares da vida religiosa.  A obra de Rivière configurase, como ele próprio diz e já foi aqui citado, na elaboração de um paradigma pára a análise microscópi-ca da vida social, o sagrado constituindo a transfigura-ção da experiência social. Nosso autor encara o rito como "forma geral de expressão da sociedade e da cultura"14 ,

o que lhe possibilita "emanciparse do contexto religioso no qual costumava ser enquadrado"15. Ora, "o funciona.

mento dos ritos encontrase ligado à sua utilidade so-cial"16 , o que implica  e a passagem seguinte poderia ser

subscrita pelo próprio Durkheim  que "sua execução é imperativa para recriar periodicamente a identidade moral(L'être moral) da sociedade"17.

O sagrado, portanto, não se confunde com o religio-so, se este se conceber como transcendente ou sobrena-tural no sentido mais estrito. Para Rivière:

O campo do sagrado supera em muito o campo do religioso, sobretudo do religioso instituciona lizado. [...] A essa força fascinante e terrível que Rudolf Otto denomina de sagrado, os povos atri buem conteúdos diferentes: gênios; Augusto;

va-13. Op. cit., p. li. 14. Rivière, op. cit., p. 45. 15. Op. cit., ibid. 16. Op. cit., ibid. 17. Op. cit., ibid.

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revolucionária dessas estruturas, o que vem a envolver, não sem algum paradoxo, a secularização da própria igreja.

Secularização e descatolicização implicam, como sem dificuldade se compreende, a superação do ritoie ligioso como expressão da sociedade global. Tomemos o exemplo da festa de Corpus Christi,  isto é, da celebraçãd

solene do dogma central do catolicismo, que é a presença real e, por assim dizer, material, de Cristo, em "corpo", sangue, alma e divindade", sob as espécies eucarísticas do pão e do vinho, festa essa que, nos países católicos do Antigo Regime, isto é, no período anterior à Revolução, era também o do solene desfile de toda a sociedade, ci-mentada pelo vínculo eucarístico, com suas hierarquias e corporações, sem faltar sequer, conforme consta de al gumas descrições, a participação, por certo um pouco constrangida, dos judeus.

Tornouse inconcebível, no Brasil contemporâneo, a expressão da identidade nacional em termos de Catoli-cismo, apesar, repitase, de algum resíduo que subsista aqui ou acolá. A Igreja Católica acabou, afinal, por trans-formarse em não mais do que uma das religiões ou sis-temas ideológicos que concorrem dentro do mercado na-cional dos bens simbólicos. A procissão de Corpus Christi

subsiste como um fantasma do que foi outrora, servindo às vezes de pretexto para exibições folclóricas.

Mas, como dizia Oscar Wilde, "a verdade é raramen-te pura e nunca simples". Uma das caracraramen-terísticas da for-mação social brasileira encontrase não apenas nas dis-paridades regionais, mas, ainda mais, na coexistência de estilos de sociedade, cultura e economia, na verdade de períodos históricos completamente diferentes e que muitas vezes "hurlent de se trouver ensemble", dentro das próprias regiões e áreas urbanas. E a secularização se faz em ritmo menos rápido entre certos setores de nossa sociedade, os quais, confrontados com o avanço da des-crença entre as elites e com o recuo consentido da Igreja, :

elaboram sua própria religiosidade a partir dos mate-riais legados pela história.

Apesar, então, dos progressos da descrença, ou  por  causa  desse progresso, que eliminou o monopólio

reli-gioso exercido pelo catolicismo tradicional, o Brasil pos-sui enorme variedade de manifestações religiosas. As-sim é que convivem em nosso País, muitas vezes em ás-pera disputa pela mesma clientela, religiões sacrificiais e

religiões éticas 21  .As primeiras em grande parte derivam do catolicismo popular da tradição ibérica, seus ritos fundamentais assumindo a forma do dom exterior, pro-messas, peregrinações, procissões, quando não repre-sentados, sob influência do sincretismo afrobrasileiro, pelo sacrifício cruento de animais, muito mais praticado entre nós do que se poderia imaginar. Já nas religiões éti cas o sacrifício assume, ou tende a assumir, a forma pura da "adoração lógica", da"logike latreia'' 22  a que já se refere São Justino, que vem afinal confundirse com o "sacrifice de la pensée" de que tanto fala Durkheim em seu livro sobre As formas elementares da vida religiosa. E essa moda-lidade mais interiorizada de sacrifício vem resultar, nas versões renovadas de catolicismo, que surgem em nosso País em ligação com a chamada romanizaçãoou reeuropei zação  da Igreja, a partir da última parte do século XIX, bem como em igrejas e seitas protestantes, numa espécie de racionalização do próprio comportamento do devoto, em vez de limitarse ao plano da manifestação exterior.

O contraste entre ritos religiosos, uns de caráter sa crificial e outros mais de tipo ético, está evidentemente

21. Sobre este contraste, nas religiões populares do Brasil, ver Roberto Motta, Edjé Balé: Alguns aspectos do sacrifício no Xangô de Pernambuco,   tese de titularização, Universidade Federal de Pernambuco (Recife), 1991, no momento no prelo em coedição da EDUSP (São Paulo) e da Editora Universitária (Recife).

22. Sobre o "sacrifício lógico" e outros conceitos, ver Louis Bouyer, Le rite et lliomme: sacralité naturelle et liturgie, Paris, Le Editions du Cerf, 1962.

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muito longe de coincidir com a oposição entre o sagrado e o profano. Estamos diante de uma sociedade "fractal". De modo que, lado a lado com as liturgias sacrificiais e com a racionalização ética do catolicismo renovado e das igrejas protestantes (como se fôssemos disputados por períodos históricos em teoria separados por milênios), o quadro se complica com o avanço da secularização e com o surgimento, ou pelo menos a intensificação dos ritos profanos.

Retomemos a análise de Rivière. O rito é a respiração da sociedade. Mesmo se as pessoas não se articulam só por causa do prazer de estarem juntas, mas com objeti-vos políticos e econômicos, mesmo aí, e talvez sobretudo aí, a execução do rito, como assinala nosso autor, é indis-pensável para recriar periodicamente, isto é, para reno-var ou refazer a identidade, a personalidade, l'être moral ,

do grupo e da sociedade. Lembremos também que em todo rito há os participantes e os excluídos. E, entre aque-les, nem todos participam da mesma maneira. Há neófi tos e iniciados e, entre os extremos, muitas gradações. Se precisamente o rito deve servir para reafirmar a identi-dade coletiva, fatalmente os critérios de inclusão e exclu-são têm de alguma maneira que manifestarse durante o processo ritual. Sancta sanctis,  as coisas santas para os santos: até às reformas dos últimos 20 ou 30 anos, distin guiase na missa católica a "missa dos catecúmeros" (até à leitura do evangelho) e a "missa dos fiéis" (a partir do ofertório).

Lembremos ainda que se, como assinala Rivière, o processo ritual pode levar a um estado de "communitas" na qual os participantes se percebem como se, pairando um momento acima do tempo roedor acedessem à imor-talidade, ao eterno presente da comunidade primitiva e arquetípica (e é por aí que se pode começar a entender o fenômeno do transe, no qual as consciências individuais se deixam penetrar e anular pela consciência coletiva através da qual recebem valor, identidade e

reconheci-16

mento), é também verdade que o rito significa ao mesmo tempo reafirmação da estrutura social, com todas as suas desigualdades e hierarquias.

Mas é impossível, nestas notas, replicar o trabalho de Rivière em Os ritos profanos,  isto é, passar no microscópio as manifestações rituais presentes na formação social brasileira. Para o futuro podese talvez pensar em pes-quisa que conduza ao inventário e à descrição de todas as nossas manifestações rituais, religiosas, sacrificiais, éticas, profanas... Já dispomos inclusive dos estudos pio-neiros de Roberto da Matta, cuja metodologia difere da de Rivière por causa sobretudo da escala macrosocioló gica adotada pelo brasileiro. Matta quer descobrir nos ritos que analisa  carnavais, paradas, procissões, cam-peonatos de futebol  a expressão dramatizada de nossa sociedade global. Não se trata apenas, para nosso emi  nente compatriota, de fazer a sociologia desses ritos; eles próprios já representariam a sociologia espontânea do homem comum, buscando, a seu modo, compreender o funcionamento das estruturas sociais23.

 Já Rivière, não obstante sua nítida afiliação ao soció-logo  por excelência que é Emile Durkheim (o qual,

dire-tamente ou através de Victor Tumer e de outras media-ções, achase também muito presente na genealogia inte-lectual de Roberto da Matta), adota outra perspectiva. Pois não se trata tanto de descrever fenômenos ligados à sociedade global (se é que, nesta nossa época de "de construções", podese ainda admitir a existência, ou pelo menos o pleno valor operacional de tal sociedade), mas de destacar manifestações associadas a grupos de paren-tesco ou de ocupação, conjuntos de coetâneos (corres-pondendo mais ou menos aosage sets da Antropologia

23. Ver Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.

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de língua inglesa), enfim, aos muitos grupos, às comu-nhões, aos nós  em que a sociedade  se acha fragmentada.

Notemos ainda que o paradigma de Rivière atribui me-nos importância à representação intelectual (ainda que transposta ou codificada em termos simbólicos) da es-trutura social, do que ao sentimento de pertença suscita-do pelo rito, e suscita-do qual nasce a intuição da identidade coletiva e individual.

Tomemos, como exemplo de possível aplicação deste modelo, os ritos dos universitários, isto é (entendendo o termo em acepção restrita), de professores e pesquisado-res. Estes, enquanto cultores professos e declarados de valores científicos, deveriam ser os mais desencantados de todos os homens, os menos afeitos a mitologias e rito logias, sem outro compromisso que com a formulação e a verificação de hipóteses e teorias. Mas na verdade, poucas profissões levam tanto à articulação de seus membros em comunidades parareligiosas como as que pretendem justificarse não mais que pela pesquisa e o ensino.

Ora, já sabemos que não há sociedade, qualquer que seja sua escala, que não sinta a necessidade de, peri-odicamente, reafirmar em comum seus valores comuns. É daí que nasce o comportamento ritual, cujo protótipo encontrase no sacrifício, pouco importando que a maté-ria deste sejam palavras, gestos, cantos, posições, dan-ças, objetos, animais, seres humanos ou o pensamento em sua forma aparentemente mais pura e decantada. Não há então sociedade que, de um modo ou de outro, próxima ou remotamente, fundada sobre o rito, não es-teja conseqüentemente baseada em alguma forma de dom e sacrifício.

No concreto, importa saber o que se oferece, por quem se oferece, a que ou a quem e em proveito de quem se oferece. Nas formas mais tradicionais de culto afro brasileiro, o sacrifício básico, a obrigação  por excelência, é constituído pela imolação de animais, oferecidos pelos

devotos (os sacrificantes,  na terminologia de Hubert & Mauss)24 , através de sacerdotes, denominados paisde

santo ou babalorixás sacrificadores,  a divindades

conheci-das como orixás  (nos quais se pode sem dificuldade des-cobrir a projeção da comunidade), em proveito dos pró-prios sacrificantes, o que à primeira vista redundaria em benefício da comunidade como um todo. Notemos ain-da, a respeito do candombléxangô, que, de maneira se-melhante ao que acontecia na prática ritual da Grécia Antiga ou do Israel do Antigo Testamento, nele não se estabelece, pelo menos não ao modo nítido das religiões ocidentais, separação entre alma e corpo, entre saúde e santidade, entre este mundo e o outro. O que acaba fa-zendo com que o sacrifício, a princípio bom para rezar e para pensar, termine bom para comer. A imolação resulta em banquete, no qual os deuses repartem generosamen te com os homens as carnes que lhes foram dadas. Mas este esquema complicase quando se levam em conta as desigualdades inerentes aoterreiro,  isto é, ao próprio gru-po de culto. Enquanto proprietários dos meios da produ-ção sagrada, os hierarcas, os pais e mãesdesanto,  exigem e obtêm um proveito, um lucro, tanto material como sim-bólico, que bem podemos chamar demaisvalia sagrada.

Voltemos aos nossos universitários e esclareçamos que os ritos que aqui nos interessam são menos as ceri-mônias sujeitas a um calendário mais ou menos regular, vestibulares e formaturas, do que outros mais sutis, inte-ressando segmentos especializados da academia, que se configuram em defesas de tese de mestrado e doutorado, congressos, conferências e assemelhados. Se a universi-dade está formalmente dividida em centros, institutos, faculdades, fundações, etc., tampouco são essas as cate-gorias mais pertinentes para a análise aqui sugerida. O

24. Henri Hubert & Mareei Mauss, "Essai sur  la Nature et la Fonction du Sacrifice", UAnnée sociologique, 1899, p. 29-138.

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que nos importa são antes os grupos e comunidades quase sempre informais, que se constituem à base da partilha de idéias aparentemente abstratas e interesses muitas vezes altamente práticos.

Prossigamos com a metáfora afrobrasileira. Se, nos terreiros, se oferecem animais, bons para pensar (en-quanto metamorfose tangível das representações dos de-votos), porém logo transformados em alimento material, na comunidade universitária o sacrifício assume a forma abstrata do pensamento puro. São teses, conferências, trabalhos, comunicações, em que a procura utópica da verdade se subordina à promoção do grupo e de seus chefes.

No terreiro, dáse a obrigação  aos orixás que repre-sentam, afinal, o próprio grupo de culto, inclusive com suas desigualdade. Na academia, a situação parece in verterse. O dom, no plano manifesto, dirigese à comu-nidade, muitas vezes concebida de maneira etérea e abs-trata. Mas, na realidade o sacrifício universitário é desti-nado, nem sempre de maneira só latente, ao Mestre ou aos Mestres, que, presumivelmente devido a seu talento pessoal e a toda uma série de circunstâncias aleatórias, conseguiram impor ao grupo sua maneira de pensar e a busca de seus interesses.

A organização do grupo acadêmico não é mais igua-litária que a dos terreiros. Cá e lá ocorre a apropriação da maisvalia simbólica. Lá, nos terreiros, sob a forma de acesso privilegiado  a parte do leão  às carnes das víti-mas de que desfrutam os hierarcas, das taxas e emolu-mentos que recebem, do poder de consagrar e excomun-gar, do prestígio ou reconhecimento de seu carisma e das muitas homenagens que lhes são dirigidas, gestos de de-ferência, pedidos de bênção, chegando até às prostrações solenes. Cá, na academia, a maisvalia atribuída a mes-tres e fundadores, a seu modo igualmente proprietários dos meios da produção simbólica, está representada pelo poder de aprovar e excluir, de atribuir cargos, empregos,

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promoções e bolsas, de ser citado e reverenciado, muitas vezes se tornando não só o chefe, mas o totem do grupo. Tudo isso sem falar em vantagens mais tangíveis, com plementações salariais, subsídios, verbas para pesquisa, licenças, viagens de estudo, convites, consultorias, fun-ções gratificadas em agências de fomento, etc. Na reali-dade, não há na República cargo suficientemente eleva-do que não se possa atingir através de uma sagaz admi-nistração do capital simbólico.

E por aí também se vê como o sacrifício do pensa-mento é paradoxalmente bom para comer.  Os universitá-rios encontramse presos a estruturas de poder, poder não apenas simbólico, mas do qual dependem empre-gos, aprovações em concursos, promoções, publicações, congressos e conferências no Brasil e no exterior. Daí jus-tamente a adoção de estratégias sacrificiais de confor-mismo e adesão, o reconhecimento, a homenagem pres-tada aos orixás do candomblé, ou aos senhores mestres da academia, representando a condição sine qua non do

eventual reconhecimento do próprio sacrificante, de sua cooptação e de seu avanço.

Os ritos universitários significam essencialmente ex-pressão de identidade de grupos que não são mais que variantes das "sociedades de pensamento", já estudadas, a partir de uma inspiração muito próxima à de Durk-heim, por Augustin Cochin. Para este historiadorsoció logo:

"Na vida real a comunhão de todos aparece como efeito da convicção de cada um. Seria uma ilu são? É o que pensa a escola sociológica do senhor Durkheim. Mas mesmo essa ilusão representa um fato, o único que aqui nos interessa. [...] Na sociedade de pensamento tudo se passa ao con trário. Pois é justamente para formar, através da discussão e do voto, a opinião comum - logo, fora de qualquer convicção comum - que as pessoas se reúnem. Não que as pessoas se reúnam porque

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 já estão de acordo, mas porque se reúnem ficam de acordo. É o fato social que vem em primeiro lugar"25.

Foi sobretudo à origem e ao desenvolvimento da Re-volução Francesa que Cochin aplicou sua análise. Efeti-vamente, tratase de um dos fenômenos típicos de nossa época, inclusive daquilo que vem sendo chamado "pós modernidade". O que vêm fazer nossos acadêmicos em colóquios, congressos e reuniões, senão sacrificar seu pensamento e seus trabalhos aos deuses (inclusive ao deus Durkheim) e, sobretudo, a seus sacerdotes e a seus profetas? E é nessas "sociétés de pensée", as quais vimos que estão muito longe de excluírem todo utilitarismo — o sacrifício nunca é apenas bom para pensar, mas, de ma-neira direta ou indireta, também serve para comer  que, com um gasto de emoções e sentimentos apenas na apa rência mais moderado, vamos descobrir, de acordo com as sugestões teóricas de Claude Rivière, o equivalente das matanças e dos transes do candomblé e do xangô, nos quais o ser, a identidade dos participantes, flui do reconhecimento proporcionado pelo grupo, ao mesmo tempo em que este, simbolizado pelos orixás, jorra do sangue do animal, o qual afinal outra coisa não é que efusão de pensamento.

***

Toda forma de vida social exige  é conclusão funda-mental de Osritos profanos  que o fiel abandone aos deu-ses, isto é, à vida social em diferentes formas e fadeu-ses, al-guma coisa de suas palavras, gestos, posições e convic-ções, de seu pensamento e de suas possessões. Mas o que exatamente se abandona, a quem, a quê ou como? São

25. Augustin Cochin, La révolution et Ia libre pensée, Paris, Copemic, 1979, p. 39.

perguntas a que Rivière, examinado cada caso específi-co, responde com a clareza, a limpidez, a simplicidade (características também de Durkheim), que representam algumas das qualidades mais preciosas do estilo francês.

Claude Rivière vem se afirmando como um dos prin-cipais ritólogos  contemporâneos. Seu livro anterior, As li-turgias políticas ,26  já representou, no seu campo, ensaio

paradigmático. Em que pesem os trabalhos de outros au-tores  entre eles o. inglês Victor Turner, prematuramente falecido, e o nosso Roberto da Matta, que fez escola no Brasil  é certamente Rivière que mais tem contribuído para a codificação desta disciplina, que está longe de re-duzirse a simples departamento da Sociologia ou da Antropologia da religião.

Se nos lembrarmos que o rito é a respiração da socie-dade, entenderemos como a ritologia bem compreendi-da significa a quintessência, o aspecto mais fino compreendi-da pró-pria Sociologia. Cada terra tem seu uso, cada tempo seus costumes. Os ritos variam de acordo com a época e o lu-gar. Certo, o Brasil não é a França. Nossa interpenetração de épocas e estilos talvez seja maior. Mas a secularização, mesmo competindo ou convivendo com outras atitudes, não parece, apesar de tudo, menos avançada aqui que na Europa. Nossos ritos profanos ocupam cada vez mais es-paço. Tanto por tratar, em geral, do estudo dos ritos, e, em particular, desse sagrado que é paradoxalmente pro-fano, o leitor brasileiro, antropólogo, sociólogo ou sim-ples estudioso, tem muito o que ganhar com a leitura de

Os ritos profanos e com a adoção de sua metodologia.

 Roberto Motta Universidade Federal de Pernambuco

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Introdução

ooooo

E

m particular, desde os anos 80, a proliferação dos estudos sobre os ritos  a ponto de se tomarem obses-sivos  devese ao fato de que, para além dos modos utilizados na apreensão de certos objetos teóricos, existe, sem dúvida, um fenômeno que se realiza com maior fre-qüência na sociedade, ou cujas significações se têm mo-dificado, ou cuja riqueza explicativa está longe de se esgotar; a menos que, pouco a pouco, cheguemos a nos convencer da autonomia de um objeto científico a ser ex-plorado sob novas dimensões.

Enquanto os antropólogos, principalmente, se de-bruçam sobre o fenômeno ritual, parece que a sociedade adota pontos de vista mais restritivos em relação ao rito: alergia à ritualidade, verificação de sua obsolescência, confisco da ritualidade por novos poderes  religião da técnica, biopoder, regimes políticos mobilizadores. Entre os intelectuais educados em uma tradição utilitarista, o rito  considerado irracional ou forma de sortilégio va-zia, oca e superficial  goza de má reputação.

Na verdade, a "desritualização", que parece estar a acontecer atualmente, limitase à perda de certas práti-cas religiosas historicamente datadas, correlata a um de

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clínio das crenças. A partir de tal verificação, é possível desacreditar a ritualidade ao considerála como destina-da a desaparecer em uma sociedestina-dade moderna em que a imagem ocupa o primeiro lugar, o ver é o último resíduo do crer e "é necessário ver para crer". No entanto, simul-taneamente, alguns pretendem combater o desencanta mento do mundo com uma ritualização deliberada, ad-ministrada com finalidade terapêutica (cf. as múltiplas' formas de culto do corpó.ou a política gerencial da ritua-lização de uma cultura da empresa); outros, com inten-ção exclusivamente científica, julgam perceber um de-senvolvimento da ritualidade profana e política que fun-cionaria como mecanismo de compensação pela perda do religioso. Será que o investimento de novas crenças em novos cultos profanos poderia, nesse caso, ser inter pretado como uma nova ritualização, embora bastante lábil (o tempo de uma moda), ou como um ersatz  de ri-tualidade com perda do sentido profundo da atitude de respeito e submissão em relação a potências sobrehu-manas, em situações predominantemente lúdicas?

Todo aquele que se questiona dessa forma acaba ce-dendo diante do antigo monopólio eclesial de tratamen-to do que era considerado como dependente da religião. Se as sociedades religiosas colocam em limites diferentes a distinção entre sagrado e profano é porque o sagrado é uma construção de diversos imaginários sociais. Como os mitos transbordam o quadro das crenças teofânicas e cosmogônicas, a ritualidade constitui uma atitude que faz parte, como é observado pela etologia, ao que há de mais arcaico e constante nos comportamentos entre seres vivos. Afirmar que só existem ritos profanos por analo-gia com o rito religioso é esquecer que, no início, este foi elaborado por analogia com os costumes codificados en-tre seres vivos/sendo que Deus foi concebido, progressi-vamente, como o Ser Vivo supremo insuperável e a codi-ficação, adotada como arma suprema do poder de uma religião, foi instituída como lei moral.

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Com certeza, o estudo dos ritos profanos utilizará uma verdadeira reflexão sobre os ritos, produzida em um quadro religioso, mas pode dispensar uma colocação em perspectiva temporal relacionada com o destino do aspecto religioso (desaparecimento, mutação, migração, ressurgimento) nas sociedades atuais, no sentido em que sempre existiram ritos profanos, independentemente do estado da sociedade na qual eles se foram inscrevendo e embora nos dêem a impressão de serem mais numerosos e legíveis na vida cotidiana moderna por efeito da foca lização de nossa atenção.

Com o declínio não só dos ri]tos tradicionais no Ter-ceiro Mundo, mas também dos ritos cristãos na Europa, antropólogos e sociólogos tendem cada vez mais a se de-bruçar sobre a observação e conceitualização da ritualidade profana nas sociedades contemporâneas. Para nós,

não se trata de produzir um novo ungüento sociológico, misturando determinados elementos  festa, hábitos ,

co-tidiano, símbolo  com resíduos de sagrado, mas de abrir novas janelas para formas de relações sociais. Quem não se entrega de bom grado, sem colocar o rótulo de rito, ao prazer codificado e coletivo de um esporte ou de uma refeição completa? Quem não fica encantado com uma medalha de mérito do trabalho que é alfinetada no correr de cerimônia solene, ou com a participação em um con-certo de rock ou o desfile do "Dia da Pátria"?

Ao ouvir falar de rituais esportivos ou alimentares, e dos ritos do trote de calouros ou do sexo, alguns recla-marão contra semelhante libertinagem conceituai, na medida em que a relação com o sagrado ou o elo com uma crença não são, de modo algum, garantidos. Mas tenham a ousadia de nos acompanhar ao longo desta tentativa para se questionarem, no fim, se não valeu a pena explorar a perspectiva ritual no cotidiano.

Tão rico e diversificado parece esse cotidiano nas so-ciedades  pelo menos, européias  que seria necessário

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selecionar nosso enfoque, não só do ponto de vista geo-gráfico (sobretudo, a sociedade francesa), mas também do ponto de vista temático (ritos de formação, do corpo, do trabalho e dos lazeres). Deixaremos de lado os ritos ligados ao calendário das comunidades camponesas ou regionais estudados pelos historiadores locais ou pelos folcloristas; os ritos puramente familiares e de passagem (nascimento, casamento, morte...) descritos pelos etnólo-g os e objetos de estudo de uma vasta literatura; os ritos de alegria ou aflição que são desencadeados por um acontecimento contextualizado (fim do ciclo agrícola, matança do porco, perda de um animal doméstico); as-sim como os ritos que implicam uma negociação entre grupos participantes (regresso de emigrante, rivalidade entre duas aldeias).

---O fato de nos interessarmos por uma categoria limi tada de ritos profanos não impede de nos interrogarmos sobre a razão de ser não só de tal rito, mas do rito em geral, enquanto modo de existência dos seres humanos, atividade refletida produzida por organizações huma-nas e forma de objetivação intencional do pensamento em comportamentos simbólicos. Colocarnosemos tam-bém a questão de saber como a representação coletiva, até mesmo fora da religião, implica a crença e esta a con-duta correspondente; como tal rito acaba sendo adotado: por costume familiar, gosto pessoal, tradição local...; e como se faz sua iniciação.

No início de qualquer pesquisa existe uma supera bundância de questões. Como as que nos formulamos no momento de uma reflexão com psicanalistas sobre o ri tualismo em situação de conflito. Por que motivo e de que maneira a atitude ritual se apresenta como resposta a uma crise antiga, atual ou ameaçadora? Qual é a parte de teatralidade na tentativa de transformar o enfrenta mento em complementaridade? Qual tipo de reestrutu-ração (mental, psíquica, cósmica) é produzido pela ritua lização? Na negociação ritual com uma alteridade, como

se organizam os campos de força afetivos? Onde se si-tuam os códigos de conduta legitimados que, nos grupos efervescentes, fazem apelo a comportamentos de reve-rência e conformidade? Será sempre a ordem dominante que se exprime por metáfora e metonímia no ritualismo? Não será que o fenômeno de ritualização pode suscitar, por si só, conflitos de integração, atribuição de papéis e diferença de potencial entre atores e espectadores? Antes de responder a algumas dessas questões, importa definir os conceitos utilizados com maior freqüência.

Rito, ritualismo, cerimonial

Entre o costume clássico de restringir o rito ao campo do sagrado e a tentação de considerar rituais todos os comportamentos rotineiros, o espectro da sinalização e explicação do rito é bastante amplo. Tanto a definição de M. Mauss (ato tradicional eficaz que remete a coisas cha-madas sagradas), como a de J. Beattie (ato social simbó-lico), devem ser indicadas com precisão e matizadas. Cada um puxa a definição para seu terreno. Em ligação com a magia e a religião das sociedades africanas, M. Fortes afirma o seguinte: "O oculto... é o objetivo princi-pal dos ritos (in Huxley, p. 254). Os culturalistas têm ten-dência a mostrar que, sendo produtos de uma cultura que articula representações, palavras e ações, os ritos fo-ram elaborados e repetidos por várias gerações, mas abrangem muitos campos profanos.

Até mesmo a etimologia consegue apenas esclarecer nos a respeito de um aspecto fragmentário do rito, ou seja, sua relação à ordem. Segundo E. Benveniste, o rito  da palavra latina, ritus,  ordem prescrita  está associa-do a formas gregas como artus (prescrição), amrisko  (har-monizar, adaptar), arthmos  (elo, junção). Por sua vez, a

raiz ar   deriva do indoeuropeu védico (rta, arta)  e remete

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e os homens e à ordem dos homens entre si (Benveniste, p. 100).

Antes de especificar nossas asserções pelos comentá-rios dos capítulos seguintes, propomos esta definição inicial dos ritos: quer sejam bastante institucionalizados ou um tanto efervescentes, quer presidam a situações de comum adesão a valores ou tenham lugar como regula-ção de conflitos interpessoais, os ritos devem ser sempre considerados como conjunto de condutas individuais ou coletivas, relativamente codificadas, com um suporte corporal (verbal, gestual, ou de postura), com caráter mais ou menos repetitivo e forte carga simbólica para seus atores e, habitualmente, para suas testemunhas, ba-seadas em uma adesão mental, eventualmente não cons-cientizada, a valores relativos a escolhas sociais julgadas importantes e cuja eficácia esperada não depende de

uma lógica puramente empírica que se esgotaria na ins trumentalidade técnica do elo causaefeito. Esta defini-ção não prejulga de modo algum o conteúdo das crenças, a força das adesões, os ritmos de reprodução das condu-tas, ou o grau de coloração misteriosa, fascinante ou ter-rível, dos valores que dão sentido à vida.

Para eliminar as ambigüidades, indicamos algumas precisões quanto a termos que poderiam parecer familia-res ou ter sido sobrecarregados com acepções exclusiva-mente religiosas. Antes de designar a ordem das cerimô-nias e das orações que compõem o serviço religioso, a palavra liturgia (leitourgía, de leitos =  público, e érgon =

obra) significou, em Atenas, um serviço público oneroso, prestado em favor do povo, pelas classes mais,ricas da cidade. A mesma origem profana é legível na etimologia da palavra cerimônia que foi aplicada aos ritos cívicos solenes antes de se referir às formas exteriores regulares da celebração de um culto religioso. Da mesma forma que a festa, com seus aspectos de jogo, efervescência e consumo, faz parte do registro profano (feiras, festa das

mães, do trabalho) e igualmente do registro religioso, as-sim também o termo rito abrange atos estereotipados, simbólicos e repetitivos do campo secular (rito do espor-te, do falatório, do showbiz) e do campo eclesial.

Na tradição francesa, os termos cerimonial e ritual possuem zonas semânticas vizinhas com fronteiras inde-terminadas e interpenetrações recíprocas  aliás, como os termos rito e ritual  a ponto de se tornarem, muitas vezes, sinônimos. No século XIII, a cerimônia referese à solenidade da celebração do culto religioso, sendo que o culto era o conjunto dos ritos; no século XX, qualquer forma de solenidade reconhecida a um acontecimento ou ato importante da vida social é cerimônia. Em 1614, sob o pontificado do papa Paulo V, foi publicado o Ritual  Romano,  livro litúrgico que contém a ordem e a forma das cerimônias católicas com as orações que devem acompa nhálas. No século XX, fora da Igreja, é inútil procurar uma verdadeira distinção, tanto em inglês quanto em francês, entre rito e ritual (cf. Moore, Lane, Higgins, Moingt). Também é difícil opor rito e cerimônia, toman-do como referência o caráter sério toman-dos ritos cerimoniais e a familiaridade dos ritos não cerimoniais! A seriedade cerimonial em Le bourgeois gentilhomme,  como demons-tração excessiva de etiqueta, derrapa na familiaridade; por sua vez, o nãocerimonial na maquilagem pode ser levado muito a sério.

Temos de evitar pensar a cerimônia como carência de alguma coisa (a partir da falsa etimologia: careo;  a

verda-deira é em sânscrito, kar =  fazer, môn =  a coisa, ou seja, a

coisa feita, a coisa sagrada), como formalismo, superfi-cialidade e esclerose, como pura exterioridade que mar-ca uma falta de profundidade, de substância interior e de vida. A vida interior encontrase tanto na cerimônia, quanto na pura crença. Da mesma forma que, a propósi-to dos deuses, apenas sabemos o que lhes é atribuído pe-los mitos, assim também sua verdadeira existência limi-tase, para nós, ao que se diz a seu respeito e ao que se

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manifesta na objetividade da coerimonia,  na pseudohie rofania das liturgias. A exterioridade do rito corresponde à exterioridade do sagrado. Ritos e símbolos têm apenas o sentido que lhes é atribuído pelos homens, fabricantes de mitos e ideologias. Não existe precessão necessária de um significado (Deus tem de existir para que tenhamos tal idéia), mas uma possibilidade de criação simultânea do significado e do significante. A exterioridade do repe-titivo na vida social, duplicando a interioridade de uma vivência, enuncia em linguagem gestual, de postura ou verbal, a mesma coisa que o mito como narração a ser decriptada ou que a ideologia em termos abstratos.

Pelo fato de que ele se inscreve em um sistema de comunicação hierarquizado, o ritual  quer seja religio-so, político ou cotidiano  assume quase sempre o caráter de um comportamento cerimonial e, até mesmo, cerimo

nioso Se não devemos confundir código com cerimônia, nem tampouco o rito com a parte cerimonial de certos códigos, também não devemos afirmar que todos os có-digos culturais  ética, etiqueta, estética...  têm a ver

com a ritualização.

No entanto, é verdade que um excesso constante de respeito pela etiqueta pode ser qualificado de ritualismo. Nos Estados Unidos, na classe média baixa, o respeito pelos preceitos morais pode reprimir o esforço no senti-do de uma promoção social. Os perigos da luta social incessante e seus riscos de fracasso explicariam que o in-divíduo reduza suas aspirações e fique demasiado agar-rado aos costumes e rotinas. No entanto, parecenos que o ritualismo cerimonioso não é o caráter próprio das so-ciedades nas quais a posição social do indivíduo depen-de depen-de seu sucesso; aliás, isso também é legível nas socie-dades tradicionais baseadas no estatuto, como se obser-va nos ritos da saudação demorada e do acolhimento na África. O respeito pelas distâncias e o ritualismo consti-tuem tanto a conduta do neurótico obsessivo ou do jo-vem africano em relação às gerações mais velhas, quanto

a do burocrata ou do empregado conformista zeloso, na medida em que todos evitam a inquietação e as ameaças de uma frustração. Como teremos ocasião de assinalar, o ritualismo animal visa também o evitamento de confli tos.

Diversidade das taxinomias

Talvez menos imprecisas do que as definições de ter-mos vizinhos que acabater-mos de apresentar, as classifica-ções variam, no entanto, de autor para autor, não abran-gem o conjunto do campo ritual e dependem das pers-pectivas adotadas: etológica, evolucionista, psicossocial, religiosa, etc. Para examinar a Índia, C. Malamoud esta-belece a distinção entre rito solene e rito doméstico (in  H iggins). Em outros contextos, a partir do critério de

fre-qüência temporal, alguns etnólogos preferiram a dicoto mia: ritos da vida cotidiana (caça, pesca, cultura, consu-mo) e ritos comemorativos com referência a modelos mi-tológicos ou a tempos fortes da história do grupo. O psi-cólogo colocará em evidência os gradientes da submis-são passiva à participação intensa a partir de critérios de adesão vivenciada.

Em geral, as dicotomias são bem aceitas: religio-so/mágico, positivo/negativo, manual/verbal, ocasio-nal/periódico. Para a escola sociológica francesa, o rito religioso pressupõe a intervenção de um poder sagrado solicitado como tal, enquanto o rito mágico age de ma-neira automática pelo controle exercido por um ator so-bre uma certa força imanente a um objeto ou palavra. Ao se basear na relação ao sagrado, Mauss estabelece a dis-tinção entre os ritos positivos de ação participante, tais como oração, oferenda, sacrifício, e os ritos negativos, tais como tabus sexuais e alimentares ou a ascese que proíbem o contato com um poder perigoso. Durkheim acrescenta os ritos piaculares de expiação e purificação

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que visam a libertação de uma impureza contagiosa  por exemplo, no momento de um luto  pela água ou fogo, ou pela expulsão de um bode expiatório encarrega-do de transportar as culpas encarrega-do grupo.

Ao tomar como critério a dialética indivíduo/grupo e tendo focalizado as passagens culturais no espaço e tempo que imitam os ritmos de crescimento e decrésci-mo presentes na natureza, A. Van Gennep discerne três fases sucessivas nesses ritos de passagem que marcam os tempos fortes da vida individual e coletiva: separação, marginalização e reintegração.

Manual ou verbal, o rito mantém uma certa relação Com a ordem; assim, podemos estabelecer a distinção en-tre os ritos de inversão (incesto régio, transgressão das normas permitidas temporariamente) e os ritos de con versão para transcender a desordem ou dedicar um fiel aos poderes sagrados. Turner opõe os ritos de aflição no momento em que acontece uma desgraça aos ritos life crisis  que marcam, com regularidade, as etapas da vida; no entanto, entre estes últimos, ainda é possível especifi-car, segundo sua freqüência temporal, os ritos da vida cotidiana e os ritos comemorativos.

Determinados ritos de forma relativamente seme-lhantes podem visar diferentes finalidades: demanda de chuva, de fecundidade; interrogação do transcendente na adivinhação; ação de  graças após um nascimento,

uma boa safra, uma vitória; dessacralização para tomar profano um objeto de culto; comemoração (sigi  entre os

dogon); vingança (bugush  entre os diola); propiciação

(oferenda de primícias); regeneração (condenação à morte dos reis bantos); etc.

Da mesma forma que nem sempre é possível dis-cernir as fronteiras entre sagrado e profano, assim tam-bém não é fácil especificar se tal rito é religioso ou secu-lar. A investidura régia dos capetos (rito primordialmen-te político) comporta um desfileparada (rito secular),

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uma sagração pela autoridade eclesiástica (ação religio-sa) com aclamação dos grandes senhores do reino (ação civil) que, além disso, fornece o poder (mágico) de curar as escrófulas.

Uma solução artificial e pouco satisfatória para con-seguir uma classificação sistemática consistiria em colo-car o dado em um sistema de várias entradas e, por exemplo, compor a recorrência ou ocorrência singular, por um lado, com a sociedade e, por outro, com o indiví-duo. Aos ritos periódicos que fazem referência ao calen-dário astronômico ou baseados em um cômputo biológi-co, oporseiam os ritos ocasionais associados aos avata res do destino cuja ordem não é fixada antecipadamente e que se realizam em determinadas circunstâncias coleti-vas (seca, epidemia, guerra...) ou individuais (doença, nascimento de gêmeos, esterilidade...). O rito periódico enfrenta uma crise previsível ou celebra algumas expec-tativas satisfeitas; quanto ao rito ocasional, atende, pon-tualmente, a eventualidades funestas ou a surpresas agradáveis. O rito coletivo faz apelo a atores individuais; por sua vez, o rito individual é realizado por uma pessoa que utiliza uma cenografia coletiva.

Como estamos vendo, os critérios de base das classi-ficações têm a ver com realidades bastante diferentes, al-gumas das quais poderão ser prescritas em um mesmo rito. Assim, um rito pode ser classificado em uma ou ou-tra das categorias conforme nossa atenção fixa este ou aquele aspecto: participantes, objetivos pretendidos, modo de ação, etc.

A propósito dos ritos seculares, os dados coletados até o presente ainda são bastante escassos e demasiado fragmentários para que tenhamos a pretensão de catalo-gálos, fazer a triagem dos pontos comuns e tipologizá los de maneira exaustiva. Já que se trata, aqui, de ritos ditos profanos, devemos indicar com precisão o que os distingue dos ritos religiosos. No entanto, o qualificativo

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de profano não significa que tais ritos não religiosos não mantenham relações com o que se poderia entender como o sagrado moderno.

O sagrado e a modernidade

Em outro contexto, já mostramos o quanto era lábil a distinção sagradoprofano, frágil o idealtipo do sagrado e inútil a ligação do rito ao mito se admitirmos que qual-quer crença pode servir de referente (cf. Rivière, Pietteet  ai).  Aqui, repetiremos somente que existem formas de sacralidade fora da religião, nas quais se inscrevem vá-rios de nossos ritos cotidianos.

/

O campo do sagrado transborda bastante o campo do religioso, a fortiori  institucionalizado, sem abranger toda a experiência social. A religiosidade tende, assim, a passar por um processo de deslocamento em um mundo secularizado e, ao mesmo tempo, de degradação como fenômeno residual de uma emotividade que procura se agarrar a um absoluto na prática das religiões seculares e políticas, e não a um absoluto puramente ideologizado  como entre os românticos ou em Heidegger. A essa for-ça fascinante e terrificante chamada por R. Otto de sagra-do, os povos atribuem diversos conteúdos: gênios, Deus, Augusto, valores metafísicos, poderes superiores mitifi-cados pertencentes ao domínio do indizível, inatingível e informulável, do imperativo categórico, do inquestio-nável instituído, do arbitrário postulado, mas, na reali-dade, referindo ao invisível as razões de ordem social e cósmica. Não passa de um postulado inverificável o fato de que o alhures ou o além forneça ao homem suas de-terminações. O sagrado religioso, assim como ò sagrado político ou social, está além de nosso controle e poder; é o mito ou a segurança íntima (o que significa a mesma coisa) de uma totalidade que assumiria o encargo daqui-lo que não sou responsável. Uma forma de teorizar a

im-potência! Somos nós que, através de uma exterioridade, atribuímos sentido ao sagrado: parece que, através de sua expressão verbal e ritualização, as hierofanias  que eram teofanias  tornamse cada vez mais cratofanias.

Em uma modernidade na qual as atividades são cada vez menos orientadas pela religião, alguns setores da vida social desenvolvem formas de fascínio em relação a determinados objetos, ideais, personagens ou fenôme-nos, considerados mais ou menos misteriosos porque se situam além dos desempenhos habituais, assim como das reações de temor, eventualmente traduzido ou es conjurado por ritos, em relação aos riscos que poderia' comportar o excesso de proximidade com o domínio da autoridade imperativa e preservada (o poder), do legíti-mo indubitável (a ciência), da força insuspeita (o disco voador), do funcionamento lógico extraordinário (o computador), ou de problemas que nos atormentam (sexo e morte).

Na modernidade, devemos ler um processo de ideo logização que incorpora mitos: o mito da ciência substi-tuto da revelação; o mito da transcendência dos poderes; o mito do indivíduo como exaltação reacional e recicla-gem de uma subjetividade ameaçada pela homogeneiza-ção da vida social; o mito do sexo como libertador de uma libido que, durante muito tempo, ficou esmagada pelas exigências do superego; o mito do trabalho ao qual aderimos como se fosse um código e um estatuto social; o mito da mudança perpétua, paródia da revolução; o mito da imortalidade que dá respaldo às experiências de criogenização dos cadáveres...

Um grande número de tais mitos fazem apelo a um culto, manifestado por atitudes ritualizadas e constituí-do pelo conjunto constituí-dos sinais de deferência em relação às forças, poderes e valores que, supostamente, são supe-riores e transcendentes ao indivíduo. Os objetos, símbo-los, comportamentos e idéias que fazem parte dos ritos

Referências

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