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Por detrás da honra e da glória esconde-se um requisito mais originário: o valor que eu tenho na opinião do outro, o requisito da estima, a procura do reconhecimento. Há neste requisito originário um desejo de existir que não é de ordem vital; é um desejo de me afirmar, de vincar o ser que eu sou pela mediação do reconhecimento do outro. Querer que o outro me reconheça é querer que se sinta agradado comigo, que me queira e que me dê valor – é um desejo de ser desejado; este é o ponto em que a intencionalidade afectiva mais evidencia o carácter do sujeito. O desejo do desejo implica um requisito de reciprocidade que opera a passagem da consciência à consciência de si. Tal como o ‘ter’ e o ‘poder’, também a estima confere ao sujeito identidade: eu vejo a minha imagem espelhada no reconhecimento do outro; a estima devolve o sujeito a si próprio, confirma-o no seu ser. É esta a paixão que toca mais profundamente o “si” do sujeito humano.63

61 Ibidem, p.134 a 136.

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Acerca da paixão do poder. Cf. Ricoeur, Ibidem, p. 132 a 135. 63 Idem, p. 137.

54 A subjectividade não podia ser constituída no plano do ter, que implica relações de exclusão mútua, fechando cada um na sua propriedade, o mesmo se passa com o plano do poder, em que as relações interpessoais são assimétricas e hierarquizantes, portanto não recíprocas. Se o ‘eu’ e o ‘outro’ não estão no mesmo plano, a imagem do ‘eu recolhida no ‘outro’ não corresponde à sua verdade porque é sempre condicionada pela diferença de níveis e de interesses em que se encontra, no plano do poder os sujeitos não se olham directamente no rosto; não há rostos, apenas se vislumbram uns aos outros a partir dos cargos, lugares que ocupam e funções que exercem numa estrutura sócio-económica.

Ao contrário, o outro que me estima está ao meu nível, olha-me no rosto, consagra o meu ‘eu’, não procura dominar-me ou anular-me, posso por isso, tornar-me visível naquele que me reconhece e me considera. É o valor de minha existência perante mim mesmo que está dependente da opinião do outro. Mas é precisamente este carácter opinante da estima que constitui a fragilidade do ‘si’ e o mantém numa busca constante de reconhecimento (que é a busca de uma opinião cada vez mais firme, partilhada por uma maior número de pessoas, que está na origem da paixão da fama e da glória ou ainda da sua forma decaída, a vaidade).O correlato deste sentimento de reconhecimento é a existência da pessoa enquanto valor e fim em si mesmo – a humanidade em sentido kantiano, a ideia de ser humano existente em mim ou em qualquer outro. Procurar o reconhecimento é esperar que o outro me mostre o reflexo da minha humanidade.

A ideia de humanidade é a identidade que existe em mim, pela qual posso esperar o reconhecimento, realizar a humanidade em mim é dignificar a minha existência. A esta objectividade formal deve ser acrescentada a objectividade material das obras culturais que dizem a humanidade, projectando as suas possibilidades e manifestando, pela sua universalidade concreta, a universalidade abstracta da ideia de humanidade.64

Procurar o reconhecimento e a estima do outro é, simultaneamente, reconhecer- me e estimar-me; a paixão da estima é uma relação de mim a mim, mediada pelo outro. Aquilo que estimo em mim não é tomado na primeira pessoa como algo de exclusivo, mas é algo que pode ser universalizado: estimo-me como um outro e como

64 Idem, p. 138 a 140.

55 qualquer outro.65 É neste sentido que o amor de si, enquanto estima, se distingue do amor-próprio do plano vital: enquanto este estabelece uma ligação imediata de mim a mim, a estima de mim não é imediata mas é uma relação indirecta que passa pela alteridade, pelo valor que tenho na opinião do outro e que no limite coincide comigo, dada a universalidade da ideia de humanidade. Eu acredito que tenho valor aos olhos do outro e é essa crença que constitui o sentimento do meu valor – o reconhecimento dá-se no registo da doxa , não é um saber ou um conhecimento.

A base dóxica da estima e da auto-estima é também a ocasião da possibilidade de erro e daí a fragilidade desta paixão: eu posso sobre - ou subestimar-me, os outros podem idolatrar-me ou simplesmente não reconhecer o meu valor e é esta possibilidade de erro que origina as formas decaídas desta paixão ( a glória, a presunção, a vingança, o ressentimento, a agressividade, etc.) Apesar disso, Ricoeur continua a sublinhar que é sempre a partir da forma original da paixão que compreendemos as suas formas pervertidas. A paixão da estima e todo o ciclo afectivo de sentimentos que lhe estão ligados, constitui “o ponto mais alto ao qual se pode elevar a consciência de ‘si’ no

Thumos.66

Encontrando a raíz da desproporção humana no plano afectivo, Ricoeur centra a sua antropologia muito mais na vida prática e afectiva do que no plano representativo; a anterioridade do “eu sou” relativamente ao “eu penso” é deste modo assumida como sinal de que há uma enorme riqueza na experiência humana que não pode ser objectivada. É a partir deste “fundo da existência” que surge a ideia de uma relação originária com o mundo (que é conservada no sentimento) e de um estado primitivo e inocente das paixões humanas, que deveria ser restaurado: originariamente há um ter que não se incompatibiliza com o ser e que visa uma apropriação justa; há um poder que não é alienante, violento ou opressor, há uma procura de reconhecimento que não é escrava do egoísmo e da vaidade, mas que considera o outro como uma existência que tem valor em si próprio e como uma mediação do ‘eu’ a si mesmo.

Porém, ainda que seja esta a forma originária do desejo humano que se expressa na sua estrutura intencional enquanto abertura ao mundo, a finitude (o egoísmo da auto- preferência) invade o sentimento e corrompe esta relação primeira e inocente com o mundo dos objectos e das pessoas.

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Ibidem, p. 140.

56 A falibilidade humana reside neste equilíbrio instável entre uma afirmação originária, rica e infinita e a finitude das condições concretas em que esta afirmação se realiza, que nega a riqueza inicial. O ser humano descobre uma falha na sua constituição, causada por uma tensão entre uma afirmação intencional e uma negação, que funda a tensão originária no próprio acto de existir, uma não-coincidência consigo próprio difícil de mediatizar. Todavia, isso não anula a esperança de restauração da afirmação originária; a ideia de mediação leva a pensar que a solução do conflito passa pela via de um entendimento desta afirmação com as suas condições, por uma “ascese” do desejo. O desejo tem uma orientação ontológica, atesta um inesse originário que se vê limitado pela finitude do plano vital. É a génese recíproca do sentimento e da razão que arranca o desejo ao fechamento no finito e lhe apresenta objectos mais elevados que atestam a sua pertença ontológica.

A restauração do originário dá-se pela via da reflexão e constitui-se como uma tarefa a realizar que é alimentada pela esperança.

Desta forma, a reflexão assume um carácter ontológico, mas sem dúvida, também ético, já que restaurar o originário é devolver ao ser humano a verdade de si mesmo, mediatizada pela relação com os outros.

57 Capítulo III

O DESEJO NA ENCRUZILHADA DAS HERMENÊUTICAS