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O fracasso do Personalismo

4. A dialéctica do desejo: arqueologia e teleologia

1.3 O fracasso do Personalismo

A pessoa não pode ser encarada como um objeto e muito menos ser coisificada a uma realidade puramente reflexiva. É neste âmbito que a filosofia personalista surge como reivindicação ontológica, mas também, moral e social da pessoa contra todas as filosofias imanentistas e materialistas. E. Mounier tendo sido o principal impulsionador deste movimento filosófico centra a pessoa na triangularidade liberdade – valores – história. Mounier começa por situar o personalismo no interior da tradição existencialista, mas entendido como “reação da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das ideias e da filosofia das coisas.”143 O seu primeiro intuito consistiu em reabilitar o conceito de pessoa tendo por base uma pedagogia comunitária, trata-se de projetar um novo género de civilização, em que filosofia e política interagem através de uma ética que assume um papel mediador. O pensamento de E. Mounier estava orientado par um projecto de civilização personalista e até para um peculiar confronto com as teorias marxista e existencialista, erigindo assim uma interpretação personalista das filosofias da existência.

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TEIXEIRA, JOAQUIM DE SOUSA, “Personalismo” in Logos- Enciclopédia Luso- Brasileira de Filosofia, Editorial Verbo pg. 84

101 O que Ricoeur critica veemente na sua célebre expressão: «morra o personalismo, regresse a pessoa», pois para o filósofo o personalismo, marxismo, existencialismo não são soluções tão díspares perante a mesma conjuntura de crise que se fazia sentir na Europa da época e exemplo disso foi o manifesto personalista de 1936.144” Ricoeur critica o facto de Mounier “ter escolhido o termo –ismo para intervir competitivamente com outros –ismos e que não são mais do que fantasmas conceptuais.”145

Pelo que há que reabilitar o conceito de pessoa segundo uma nova dinâmica, não encarando a pessoa como um conceito unívoco, mas sim enquanto centro de uma atitude.146 Apesar da caducidade do personalismo, Ricoeur reconhece o valor do seu contributo, e neste sentido o personalismo foi importante no esclarecimento do que é ser pessoa. Mounier considerara que “ a pessoa não é um objeto: ela é pelo contrário aquilo que em cada homem não pode ser tratado como objeto. A pessoa é a única realidade que se constrói a partir de dentro, ela é uma atividade vivida como auto- criação, comunicação e movimento de personalização.” No entanto, este movimento de personalização é visto como unidade vital e a sua abertura passa necessariamente pela noção de comunidade. Na verdade, o personalismo de Mounier não encara a pessoa simplesmente como indivíduo, este é encarado como um capricho, fechamento de si próprio na sua auto-suficiência e centralização. A pessoa só se realiza verdadeiramente em comunidade. O homem surge deste modo como estrutura relacional derivada e não originária, a pessoa só é encarada como abertura precisamente porque a noção do social desemboca no seio de uma comunidade que está orientada para a reciprocidade e para a realização de cada uma das pessoas que a constituem.

O personalismo repousa numa alienação do ser pessoal, a pessoa é uma figura- limite da verdadeira comunidade, «enquanto centro invisível que tudo polariza», «presença de mim a mim»147 entre tantas outras fórmulas personalistas, estas apesar de salientarem a dignidade e interioridade inviolável da pessoa só se conseguem compreender na criação de um novo mundo.

144 RICOEUR, L2, p.203 : «Meurt le personnalisme, revient la personne». Je voulais suggérer que la formulation du personnalisme par Mounier était, comme il le reconnaît lui-même volontiers, liée à une certaine constellation culturelle et philosophique qui n’est plus la nôtre aujourd’hui : ainsi ni l’existentialisme ni le marxisme ne sont plus les seuls rivaux par rapport auxquels le personnalisme aurait à se définir, au risque de s’inscrire lui-même parmi les système en –ismes.»

145 Idem, p.85 146

Idem, pg.203 : «Je voulais dire que la personne était, encore aujourd’hui, le terme le plus approprié pour cristalliser des recherches auxquelles ne conviennent, pour des raisons variées que j’exposais alors, ni le terme de conscience, ni celui de sujet, ni celui d’individu (…) je me limitais à definir la personne par une attitude.», pg.203

102 Pessoa e comunidade são entidades inseparáveis sem as quais não seria possível existir «pessoa de pessoas».148 O que implica um total despojamento de si próprio em prol de um ideal que faz cair a pessoa na solidão de um coletivismo, que não contempla a pessoa enquanto identidade, alteridade na realização do ser pessoa com o outro. Não se trata da pessoa singular, mas da pessoa plural, comunitária. Mas como é possível pensar-se uma pessoa plural?

Com o personalismo temos mais um género fantasmagórico do ser pessoa, apesar do seu contributo significativo no que diz respeito ao valor absoluto da sua interioridade. Temos presente uma interioridade que não se perde e é altamente valorizada, mas uma realização fragmentária e uma identidade perdida.

2 . A incomunicabilidade comunicante da unidade ontológica do homem

Até aqui transparece uma sobreposição das filosofias da consciência sobre as do ser, e na verdade teremos primeiramente de analisar o homem naquilo que ontologicamente o constitui para que possamos compreender aquilo que fenomenologicamente o manifesta.

As filosofias contemporâneas sublinham a unidade do homem enquanto corporeidade animada, sujeito encarnado. A necessidade de ultrapassar o carácter somente reflexivo do sujeito mostrou-se um imperativo da época. O homem também é presença, presença a si e presença a um outro e esta não é apenas determinada pela sua consciência reflexiva, mas primeiramente por um ser que está no palco do mundo e em constante interacção com tudo o que envolve. O homem ao modo do Dasein heideggeriano, está lançado no mundo pela sua corporeidade. Este é o seu modo de presença mais imediato, e por isso não pode nem deve ser menosprezado, uma vez que o homem está em contacto com o mundo pela sua forma de ser corpórea. Por esta razão, a questão humana deve ser retomada e a necessidade de compreender o homem como racionalidade sensível mostra-se um imperativo na compreensão de ser pessoa como uma exigência ética. Mas então, quais serão as novas possibilidades de compreensão do Homem?

103 É certo que cada tentativa de definição remete naturalmente para uma perspetiva filosófica particular, e não é de meu intuito esboçar um plano histórico da temática, pois cada uma delas tem os seus defeitos e suas virtudes. O importante é considerar que é neste esforço conjunto que nos direcionamos para uma clarificação do conhecimento de nós próprios. Assim, tomando consciência da incompletude da presente abordagem acerca do que é ser pessoa irei fazer uma análise do ser humano na sua estrutura ontológica naquilo que me parece ser essencial para compreender em que medida considero que ser pessoa, enquanto realização pessoal de si deverá ser uma exigência ética de cada um.149 A qual só poderá ser possível e entendida no interior de uma experiência tão fundamental como a de ser-se com os outros. Será talvez aqui que a filosofia começa, será aqui que ética começa: Pensar o sentido da vida humana? Pelo que faço uma referência: «A Pessoa é essencialmente capaz de comunhão com outras pessoas pela sua mesma estrutura ontológica: é uma hipótese incomunicada de natureza racional.»150

O sentido da ‘incomunicabilidade’ ontológica da pessoa não constitui obstáculo à sua estrutura de ser relacional, é antes de mais sua condição essencial, na medida em que a sua capacidade de comunhão decorre daquilo que intrinsecamente o constitui: a liberdade e racionalidade. O homem só se compreende em abertura ao outro numa relação de reciprocidade, e não em conflito. Por isso, a existência humana só se compreende enquanto relacional, de um ser cuja subjectividade é incomunicável enquanto dinamismo pessoal, e absolutamente singular mas só se finaliza numa dialética com o outro.151

O homem é simultaneamente racionalidade consciente e corpo manifestativo, pelo qual se dá a conhecer e se relaciona com os outros. A sua corporeidade é comunicação em acto, neste sentido podemos considerar uma duplicidade na estrutura humana: é que se por um lado o homem se apresenta como incomunicabilidade, por outro há algo que é passível de tal estrutura dialógica: “a incomunicabilidade

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RENAUD, MICHEL, O Devir Pessoal e a Exigência Ética, in Cadernos de Bioética, nº 1, pg.32-33 150 TEIXEIRA, JOAQUIM DE SOUSA, ‘Pessoa’ in Logos- Enciclopédia Luso- Brasileira de Filosofia, Editorial Verbo, pg.100-101

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MARQUES, SILVESTRE, Tu não matarás!- Dimensões éticas na reabilitação da pessoa toxicodependente, Lisboa, 2003

104 ontológica, é ao mesmo tempo o ser mais aberto e mais comunicante com todos os seres e valores.”152

Ser Pessoa é ser expressão da sua inteligência, vontade, e dignidade, que decorre não da gratuidade com que o sujeito se dá, mas do esforço com que se empenha por uma reciprocidade presente no acto de ser Amor. A incomunicabilidade presente no homem é a sua singularidade pessoal e intransmissível. O homem subsiste em si mesmo e por si próprio, sendo “na consistência ontológica desta singularidade que se fundamenta o valor único e irrepetível de cada ser pessoal.”153

O ser em si pessoal é entendido a partir de uma pertença do sujeito a si mesmo, trata-se de um autopossuir-se no qual o sujeito se reconhece nas suas escolhas e próprios atos. Salienta-se aqui alguns aspetos do pensamento de St. Agostinho, em que a unidade irredutível do indivíduo surge como sujeito de responsabilidade e destino.154 Ser Pessoa é o cumprimento de um projeto existencial para o qual o homem se propõe. É enquanto ser incomunicado e finito que se abre à infinitude de um projecto, à infinitude de ser que o homem se realiza como pessoa. E só no momento da sua morte pode ser finalizado numa unidade narrativa determinante do sujeito. O homem é o que faz de si. O homem é a sua história e por isso o tempo que lhe escapa pela existência.

Retomo a importância da categoria temporal na tentativa do que julgo ser a experiência fundamental do homem: a pessoa é um ser em devir, permanece no tempo e é afetada por ele. Na sua condição temporal, o homem percorre a temporalidade da sua existência na tarefa de construção de si. É esta a experiência fundamental do homem que está desde logo revelada na sua estrutura ontológica: “ o homem é uma exigência de realização de si.” O homem exige-se eticamente como pessoa, mas num esforço contínuo de realização autónoma. Ninguém é pessoa de igual modo, cada um na peculiaridade do seu esforço deve tornar-se cada vez mais pessoa. Na sua estrutura ontológica estão lançados os dados para o jogo da existência humana, a de ser pessoa e por isso ser-se com os outros. É por esta razão que a “pessoa é conjuntamente uma realidade de ordem ontológica e ética”155

152 TEIXEIRA, JOAQUIM DE SOUSA, “Pessoa” in Logos- Enciclopédia Luso- Brasileira de Filosofia,p.102

153

MARQUES, SILVESTRE, Tu não matarás!: Dimensões éticas na reabilitação da pessoa toxicodependente, Lisboa, 2003

154 TEIXEIRA, JOAQUIM DE SOUSA, “Pessoa” in Logos- Enciclopédia Luso- Brasileira de Filosofia,p.101-102

105 Com estas afirmações acabamos de realçar que o sentido de uma exigência ética repousa no ser-se pessoa, já que ninguém é pessoa sozinho. A pessoa é uma totalidade em movimento na busca de si próprio que repousa no reconhecimento do outro.156 Ser pessoa é uma tarefa que se empreende com os outros, sem os quais o homem seria um processo dinâmico interrompido, razão pela qual não faz sentido, tendo essa possibilidade de ser que o dignifica interromper voluntariamente aquilo que lhe está destinado ontologicamente. O fracasso é uma realidade quando o homem renega a sua própria natureza, quando se renega enquanto ser –abertura, ser-amor, ou seja quando decide abortar aquilo que o torna humano. Porém, cabe a cada um de nós reabilitar o sentido da coexistência humana e por isso o sentido da vida.

3. A dimensão relacional da pessoa em de M. Buber: Alteridade e Relação