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CAPÍTULO III. A DOUTRINA DA CRIAÇÃO NA TRADIÇÃO REFORMADA

3.1.2 A Palavra como meio de revelação do Criador

O destaque que as Sagradas Escrituras recebem na teologia dogmática da criação de Calvino é sem dúvida alguma, o elemento mais comum de ligação entre Calvino e Barth. Aliás, podemos com segurança afirmar que a doutrina da criação em Calvino e Barth segue

por caminho semelhante ao compartilharem a tese de que só é possível falar da criação por meio da palavra de Deus e de Jesus Cristo; e para ambos os teólogos, a forma adequada para se buscar o conhecimento desta palavra é pela ação do Espírito Santo. Calvino refutou radicalmente a idéia de que a palavra de Deus depende da igreja para ser compreendida. E Barth refutou a idéia de que a palavra de Deus depende exclusivamente da razão e da filosofia. Calvino disse que qualquer conhecimento acerca de Deus seria confuso e obscuro se não fosse conduzido pela luz das escrituras. Como já temos mostrado nessa pesquisa, para Calvino, o passo seguinte depois das obras da criação, chamadas de maestro mudo, é o do “abrir da boca de Deus”. Para Calvino, o abrir da boca de Deus e conseqüentemente a revelação de sua palavra, é o sinal mais certo e mais correto para se conhecer a Deus359. Calvino afirma exaustivamente nas Institutas que os textos do Antigo e Novo Testamentos sempre pretenderam comprovar que Deus é o criador e redentor do mundo. Para ele, tudo quanto necessitamos conhecer de Deus encontra-se única e exclusivamente na sua palavra, as Escrituras Sagradas. É notório em Calvino o destaque dado às escrituras; em parte, por causa de seu próprio convencimento de que as obras da criação são insuficientes ao ofício da revelação de Deus, e em outra parte, porque Calvino sempre reconheceu que as muitas religiões e o próprio panteísmo acabavam deturpando a verdadeira imagem de Deus. Desse modo, é peculiar em Calvino e em Barth a tese de que o único caminho para se conhecer verdadeiramente a Deus é o da sua palavra. E o “conhecer” esta palavra não depende do puro entendimento humano; sendo débil tal conhecimento, de modo algum o ser humano poderá aproximar-se de Deus senão ajudado e conduzido pela própria palavra e iluminado pelo testemunho interno do Espírito Santo. A figura muitas vezes aplicada por Calvino para se compreender a função das Sagradas Escrituras era a das “lentes”; essas “lentes divinas” propiciavam ao ser humano, que por causa do pecado tornara-se “míope espiritualmente”, o enxergar a Deus. Como já dissemos no primeiro capítulo, o método hermenêutico utilizado por Calvino era o da “acomodação”; e por isso, Calvino, diferentemente de Barth, não gastou muito tempo para explicar como as escrituras foram inspiradas. Porém, talvez a figura do “balbuciar” de Deus por meio do Espírito Santo, explique como Calvino entendia essa revelação de Deus pela palavra. Calvino também destacou que as escrituras eram a “escola do Espírito Santo360”; desse modo, podemos perceber que Calvino sempre enfatizou a

359 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana. Buenos Aires, Nueva Creación, 1967, libro I, Cap.V,

p.27

dependência do Espírito Santo para se conhecer a Deus e sua palavra. Essa dependência do Espírito, porém, não se dá em detrimento do razão humana. Vale lembrar aqui que Calvino também utilizou o método teológico Fides Quarerens Intellectum de Anselmo de Cantuária. É também válido afirmar que esse destaque que Calvino dá às escrituras em sua teologia dogmática se explica pelo completo anonimato por vários séculos das escrituras. Podemos também dizer que a própria tendência humanista e renascentista convenceu Calvino quanto à importância do retorno às escrituras.

Na teologia de Barth encontramos ênfase semelhante dada às escrituras. Para Barth, tudo o que ocorre entre Deus e o ser humano, desde a criação até o cumprimento de todas as coisas, ocorre em decorrência da força e autoridade da palavra do próprio Deus. Uma característica fundamental na teologia da criação de Barth é a de que a palavra de Deus é e se chama Jesus Cristo361. O mesmo destaque dado por Calvino em sua teologia à palavra e a Jesus Cristo, é também dado por Barth em sua teologia. Da mesma forma que Calvino foi influenciado pela tendência renascentista que pregava o retorno aos clássicos e aos pais da igreja, Barth também foi influenciado por essa idéia de retorno ao texto sagrado. Barth faz isso inspirado no Proslogion de Anselmo. Essa prática do “retorno” comum em Calvino e Barth pode também fundamentar minha tese sobre a releitura teológica Barthiana. Vimos claramente na biografia de Barth a sua defesa enfática da necessidade de se recuperar a soberania da palavra de Deus. A transição de Barth da teologia liberal à dialética e por último à evangélica comprova o que dizemos. Semelhante a Calvino, Barth refuta a idéia de que se pode buscar a Deus fora de sua palavra. Barth criticou as escolas ortodoxas posteriores à reforma que definiram a Deus, seguindo a tradição pagã, como o “ser simples e infinito”, revestido depois com todos os atributos da soberania362. Barth se dizia honrado por saber, entender e ainda poder repetir boa parte daquilo que os reformadores ensinaram acerca da soberania de Deus363. Semelhante a Calvino, Barth defende a tese de que a igreja adquiri sua legitimidade à medida que reconhece os testemunhos dos profetas e dos apóstolos como fundamento próprio de sua existência. As escrituras devem ser a fonte para a igreja a fonte de sua sabedoria, a norma de sua doutrina e ainda a razão da pregação. A frase sola Scriptura notória e peculiar a todos os reformadores também foi apreciada por Barth. Para ele, a

361 BARTH, Karl. Ensayos Teológicos. Barcelona, Herder, 1978, p.100. 362 BARTH, Karl. Ensayos Teológicos. op.cit, p.100.

soberania das escrituras consiste na onipotência de Deus. Essa onipotência é o poder sobre todas as coisas, o poder criador, conservador e ainda o poder de ser Senhor. Para Barth, semelhante a Calvino, a palavra de Deus é soberana e onipotente pelo fato de não se submeter a nenhum outro poder; não há competidor, pois, assim como Deus é único, também o é a sua palavra364. Entretanto, temos ainda que destacar a ênfase que Barth dá quanto à participação humana nessa palavra de Deus. Barth defende a idéia de que é impossível falar da soberania da palavra de Deus, sem falar imediatamente de nós mesmos, da decisão da fé. Essa idéia também encontra correspondência na teologia de Calvino. A chamada doutrina do conhecimento de Deus em Calvino, ensina que o ser humano pecador, não dispõe de meios para aproximar-se ou mesmo contemplar seu criador. Só o próprio Deus pode prover meios para tornar tal aproximação possível. O detalhe desta doutrina de Calvino é que tal conhecimento de Deus está disponibilizado somente àqueles que o próprio Deus decidir atrair a si mesmo familiarmente365. Essa posição de Calvino sobre a soberania de Deus o levou a defender e pregar a doutrina da predestinação. A releitura que Barth faz desta doutrina acaba enfatizando a mesma soberania de Deus no que diz respeito à salvação e ao próprio conhecimento de sua palavra. Para Barth, a decisão da fé é a resposta humana à palavra de Deus. Porém, e aqui Barth se assemelha a Calvino, a decisão pela fé – e isso parece contraditório – não vem de nós mesmos. Barth pergunta “quem decide?” Ele mesmo responde, afirmando que de modo algum podemos reconhecer que nós mesmos primeiro decidimos366. Para Barth, essa decisão pela fé é fruto da realização e cumprimento do ato soberano de Deus e de sua palavra pela obra do Espírito Santo. A aparente contradição aqui aponta, por um lado, para o fato de que a fé é dom e ação de Deus no ser humano, por outro lado, aponta para o fato de que sem a nossa decisão não pode dar-se a ação e dom de Deus por nós e para nós367. Esse é o ponto em que podemos demarcar a linha divisória entre Barth e Calvino. Falando deste mistério da fé, Calvino afirma que somente pela única e soberana ação redentora de Deus é possível ao ser humano crer. O resultado desta posição teológico- doutrinária de Calvino o levou a cair nas garras da horrorosa doutrina da dupla predestinação. Barth, para falar do mesmo mistério da fé, chegou à conflitante idéia da salvação universal. Mas, precisamos ainda dizer que Barth, apesar de defender a tese universalista como veremos

364 Ibidem, p.104.

365 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana. Libro I, Cap.V, p.26 366 BARTH, Karl. Ensayos Teológicos. op.cit, p.109.

mais adiante, reconhece que a decisão humana pela fé parece sugerir que o ser humano está numa linha limítrofe, a beira do abismo. Podemos dar exemplo desse abismo à medida que Barth, semelhante a Kierkegaard, diz que a fé é um risco. Contudo, na decisão da fé devemos – e não podemos deixar de correr esse risco – aproveitar a oportunidade que se nos dá de sermos filhos de Deus.368 Diante dessa aparente contradição entre participação ou não na decisão pela fé, e ainda fomentadas as idéias de risco e mistério, me parece que Barth se vê na mesma situação inquietante que também assolou Calvino diante da doutrina da predestinação. Essa inquietação de não poder afirmar qual é o grau de participação nessa decisão pela fé, ganha ainda mais ênfase à medida que observamos a data em que Barth realizou a conferência sobre a “palavra soberana de Deus e a decisão pela fé”. O fato inusitado nesta aparente inquietação é a data desta conferência, realizada na Holanda, em março de 1939; ou seja, três anos depois que Barth havia realizado a conferência sobre “a eleição de Deus em graça”, abordando o tema da salvação universal. O que nos parece, é que o próprio Barth, três anos depois de defender e ensinar a tese da salvação universal, ainda não havia se convencido seguramente dela. Até nisso Barth se aproxima do reformador Calvino que, estando diante do mistério da salvação e incomodado pela doutrina da predestinação, disse que falar de tal doutrina era tentar entrar na mente de Deus. No tópico sobre predestinação e salvação universal abordarei mais amiúde esse assunto.