• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III. A DOUTRINA DA CRIAÇÃO NA TRADIÇÃO REFORMADA

3.1.3 Jesus Cristo como revelador do Criador

Na cristologia apresentada por Calvino podemos destacar vários elementos que são peculiares também na cristologia apresentada por Barth. Destacamos, por exemplo, que em Calvino e em Barth notamos a postura de refutar tanto a filosofia quanto qualquer meio religioso que venha dar ao homem condições de dignidade, inteligência ou capacidade para aproximar-se de Deus por caminho ou força próprios. Calvino, apesar de ser humanista, combateu a idéia de auto-elevação do homem. Calvino disse que a doutrina que ensinava ao homem a estar satisfeito de si mesmo, não era outra coisa senão mero passatempo; e todos que dessem ouvidos a tal doutrina estariam arruinados369. Barth combateu a idéia de Schleiermacher e outros que defendiam semelhante auto-elevação humana. Calvino e Barth defendiam que tudo

368 Ibidem, p.113.

que há de bom e sadio em nós é fruto da imagem que temos de Deus. Para Calvino, essa corrupção da qual foi acometida a raça humana é fruto de sua ambição, soberba e ingratidão. Adão menosprezou a sua liberdade e por isso se apartou de seu criador. Barth faz releitura diferente dessa corrupção. Como vimos, ele não utiliza o pressuposto da queda de “um homem”, nem tampouco se utiliza da figura da serpente. Barth diz que tal corrupção se deu pelo fato do ser humano ter olhado para trás, para o caos, ou seja, o ser humano amou aquilo que Deus odiou, repudiou e atravessou, isto é, o vazio do caos. É também peculiar a Calvino e a Barth a tese de que toda a raça humana ficou alienada por causa dessa corrupção. Desse modo, todo o gênero humano está destituído de qualquer elemento capaz de fazê-lo contemplar seu criador. Eis então, diante da realidade da corrupção humana, a necessidade da intervenção do Deus criador e redentor. Esse é o ponto onde notamos grande semelhança na teologia cristológica entre Calvino e Barth. A doutrina da revelação de Deus em Jesus Cristo é apresentada por Calvino e Barth sob o pressuposto do “pacto”. Calvino apresentou exaustivamente em suas Institutas a idéia da unidade entre Antigo e Novo Testamentos. Tanto para Calvino quanto para Barth, a revelação de Deus a Abraão é sinal específico do pacto de Deus e já contém em si mesmo o pressuposto da mediação em Jesus Cristo. Para Calvino, Deus jamais se mostraria propicio aos patriarcas nem jamais lhes daria esperança alguma de graça e de favor, senão pelo intermédio do mediador370. Outro elemento peculiar em Calvino e Barth é o de que na revelação do pacto de Deus com Abraão já se compreende o pacto com a raça humana. Calvino cita o texto Paulino ao afirmar que Deus compreendeu em seu pacto todos os descendentes de Abraão, pois, é Jesus Cristo a semente em que havia de ser benditas todas as famílias da terra, Gl 3.16. Calvino afirma que – e nisso é seguido por Barth – não há dúvida de que o Pai celestial quis mostrar em Davi e em seus descendentes uma viva imagem de Cristo. Essa noção de pacto começando em Abraão é o referencial de unidade entre Antigo e Novo Testamentos. Para Calvino e Barth as muitas palavras proféticas anunciando o Messias dão sinais exclusivos da revelação de Deus em Jesus Cristo. Calvino diz que Deus quis que os judeus tivessem tais profecias para que se acostumassem a por os olhos em Jesus Cristo371. Outro ponto peculiar entre Calvino e Barth é o de que a pregação do evangelho anuncia aos pecadores que são justificados pela exclusiva ação interventora de Deus, que não considerou nada que fosse comum ao homem pecador; ao contrário, toda a obra do pacto se realiza à medida de Cristo. Entretanto, apesar dessa peculiaridade cristológica entre Calvino e Barth,

370 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana. Op.cit. Libro II, Cap.VI, p.241. 371 Idem, p.244.

precisamos notar o ponto em que Barth faz releitura, ou seja, reinterpreta a doutrina do pacto a partir da revelação a Abraão. Calvino diz que o pacto firmado em Abraão é irrevogável, mesmo depois da renovação deste pacto por meio de Cristo, e mesmo a negação dos judeus diante de Cristo, esse pacto permanece intacto. Barth também defende essa tese372. Calvino perguntava “quem, pois, se atreverá a separar os israelitas de Cristo, quando se nos diz que o pacto do Evangelho, cujo único fundamento é Cristo, tem sido estabelecido com eles? Quem ousará privá-los do benefício da gratuita salvação?” Barth compartilha dessa mesma idéia. Porém, o ponto de releitura de Barth é aquele que aponta para o desfecho desse pacto. Calvino disse que o pacto foi estabelecido pelo exclusivo decreto eterno de Deus, de quem depende toda a salvação373. A releitura que venho defendendo até aqui é aquilo que considero como “reinterpretação”, ou seja, são os pontos em que Barth não repete simplesmente a teologia de Calvino, mas, a reinterpreta, adequando-a à sua visão e ao seu contexto da tradição reformada. Barth criticou essa posição de Calvino ao falar do pacto sob o pressuposto do “decreto eterno ”. Para Barth, Calvino teve uma visão equivocada ao interpretar o conceito de eternidade. Barth disse que apesar de Calvino referir-se ao conceito de eternidade, acabou reduzindo o pacto aos critérios do tempo e da história. Ao contrário de Calvino, para Barth o elemento de releitura se fixa na diferença de interpretação quanto ao conceito de eternidade. Calvino fala desse pacto usando o termo “decreto”; talvez a sua formação jurídica explique o motivo pelo qual utilizou essa palavra. Barth dá outro sentido ao pacto ao utilizar o conceito do “amor”. No próximo tópico vou analisar com mais intensidade essa idéia do pacto em Calvino e Barth. Por ora, podemos dizer que a semelhança na teologia cristológica de Calvino e Barth encontra-se fundamentalmente no ponto sobre a revelação de Deus em Cristo. Essa semelhança aumenta à medida que Calvino e Barth tratam da doutrina da criação em unidade com a doutrina da redenção. Ambos defendem que não há como separar uma da outra. E essa tese acaba sendo naturalmente aceita porque, para ambos, Deus é tanto criador quanto redentor exclusivamente por meio de Cristo. A mesma palavra criadora de Deus é também a palavra encarnada. Vale lembrar que o prólogo do Evangelho de João é referência notória nas teologias de Calvino e Barth. Portanto, acredito que os elementos analisados nesse tópico nos ajudaram a ver a proximidade teológica entre Calvino e Barth. Dessa forma, parece-me plausível continuar

372 Recomendo a leitura do comentário de Barth à Carta aos Romanos, especialmente dos capítulos 9-11, que

tratam desse assunto.

defendendo a tese de que a teologia da criação de Barth é releitura da teologia da criação de Calvino.