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III- (Re) Invenções cotidianas: Práticas e técnicas travestidas

4.2. A Paródia Corporal: feminina, super feminina, quase mulher!

Feminina, super feminina, quase mulher!

“KARINA: travesti feminina quase mulher b.grego c/ local” 124

A paródia corporal executada pelas travestis surge fundamentalmente como uma reiteração dos marcadores corporais e dos cuidados historicamente destinados à identidade feminina, como observados no capítulo anterior. No qual para ser simbolizada pelo próprio grupo, bem como autodefinir-se enquanto travesti se faz necessários investimentos corporais que reiterem os modelos de beleza e cuidados que a ideologia hegemônica delega como próprios da identidade feminina.

Um caminho encontrado para deixar ainda mais clara esta performance de busca intensiva pelos modelos de feminilidade, além dos elementos já tratados sobre as práticas e técnicas corporais específicas, foi analisar a maneira como elas ‘vendem’ e publitizam este corpo125, de modo a torná-lo desejante, através dos símbolos de que se valem para se mostrarem belíssimas126 diante da impossibilidade de mostrar visualmente, nesses curtos espaços dedicados às letras, as características que consideram desejantes.

O intuito desta modalidade de análise se mostrou bastante frutífero diante da motivação em perceber como, num breve espaço promocional, as travestis salientam as características pessoais e corporais que consideram mais importantes para trazer, através

124

Anúncio retirado da seção de acompanhantes (Classlíder) do jornal, Diário de Pernambuco. 2 de novembro de 2007. Ver em anexo.

125

Via discurso promulgado nos classificados de ‘acompanhantes’ dos dois principais jornais da Região Metropolitana do Recife.

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de suas atitudes parodísticas de corporeidade, os signos mais dignificados, quando da necessidade de uma descrição mais fulgida dentro do amplo leque de suas experiências. E neste sentido, também buscando intensivamente seguir os rastros da metodologia

queer, na centralização dos esquemas de autodefinição dos sujeitos em discurso.

O fato a acentuar-se, é a pergunta que me fiz sobre o que as travestis focalizam quando possuem um curto espaço para falarem sobre si mesmas. O que percebi durante mais de um ano acompanhando, diariamente estes anúncios, é que a resposta mais uma vez caiu na valorização de seus corpos, e de sua ‘hiper-feminilidade’, como elementos a causar desejo. E a paródia das atenuantes sociais que representam à feminilidade é sentida de maneira evidente.

Sabemos que o aspecto erótico nos classificados destinados a acompanhantes está implícito, mas também são promulgadas características da personalidade e da própria vida de quem se anuncia, com igual intuito de fetichização. Portanto, ser:

carinhosa, discreta, solteira, casada ou viúva, universitária, simpática, sensual, elegante, dondoca classe média, cheirosa, alto nível, meiga, doce e delicada ou ainda

uma garota de família127, fazem parte do arsenal sacado pelas mulheres, mas não pelas travestis, que se apresentam nos anúncios. Essas mulheres buscam parodiar outros elementos além da possível erotização dos seus signos corpóreos, pois de fato as naturalizações dos significantes sociais de gênero se fazem aqui mais uma vez presentes.

As travestis, ao contrário, buscam valorizar de maneira incisiva a feminilidade de seus corpos, através do dimensionamento das marcas corporais simbolizadas como elemento de desejo de corpos femininos, afirmando, neste sentido, a premissa da não

existência de corpos pré-discursivos (BUTLER; 2001), pois é um corpo, além das práticas, formulado através do discurso parodístico desse simbolismo de gênero.

Portanto, se para as mulheres sua ‘natural’ condição já não precisa ser salientada, a paródia discursiva desses elementos na experiência da travestilidade se torna fator primordial; como não se basta ser apenas travesti, ou possuir práticas sexuais específicas, se faz necessária a paródia das representações mais dimensionais de feminilidade.

Admito que haja algum tempo sou assídua leitora desta parte dos classificados, e me visualizo em certo sentido, encantada pela forma como as pessoas se sintetizam e se autodefinem de maneira criativa, pontual e focalizada nestes anúncios. Talvez pela minha perseguida e fracassada impossibilidade de ser assim, já que o leitor pode notar minha acentuada característica de prolixidez ao longo deste trabalho. E o que interessa aqui é justamente isso, que neste tipo de seções de jornais, “o que a maioria das pessoas quer transmitir é a mais clara e exata descrição do tipo de pessoa que se imagina ser [...] Assim sendo, o que as pessoas realmente dizem quando têm apenas um espaço restrito para falar de si mesmas?”(CAMPELL,2001 : 51)

No rastro desta pergunta, através das autodefinições sugeridas nos anúncios, percebemos uma miscelânea de motivações, na qual se fundem dois elementos: (1) o

que as travestis acreditam e imaginam ser, aqui abalizadas pelos aspectos de sua

identificação pessoal e de seu próprio gosto128. Assim, são traduzidas discursivamente nas categorias femininas: 100% feminina; delícia de mulher; super-feminina; quase

mulher; escultural e ainda de incomparável beleza129.

128

Características que, segundo a reflexão de Campbell (2001) sobre o mesmo tipo atuação midiática, acreditamos nos definir mais claramente.

129

Dentro do que as travestis imaginam ser, são, sobretudo, ressaltados os aspectos de sua identificação pessoal e de seu próprio gosto, que são as características que acreditamos nos definir mais claramente, como propõe a autora acima. As mesmas são reveladas discursivamente nas categorias feminina; 100% feminina; delícia de mulher; super-

feminina; quase mulher; escultural e ainda de incomparável beleza130.

Frequentemente apenas usar o termo travesti feminina131, ou outra adjacência que remeta ao extremo de feminilização, encerra o texto, demonstrando como a sua conquistada e desejante feminilidade parece ser a característica mais dignificada e imediatamente sacada quando pouco se pode revelar sobre si. E é onde, via paródia da acentuação do feminino em seus corpos, revelam a característica de contingência dos significantes de teor estático dos gêneros, a partir do ponto em que ditos sujeitos-corpos masculinos podem parodiar os sujeitos-corpos femininos.

No que tange ao outro pólo observado, (2) o que elas acreditam atrair os outros

em sua experiência, as características físicas também fazem vez, mas não só o seu

aspecto de encontro com o feminino, mas também a preocupação em deixar clara suas medidas e seu intenso cuidado, bem como sua distinção através de titulações próprias do universo da travestilidade, buscando talvez afirmar e atestar sua beleza e sucesso de modificação, capital simbólico bastante valorizado devido às conseqüências de deformação corporal que podem sofrer diante da certa ‘precariedade’ de suas práticas (como o uso do silicone industrial) de modificações corporais.

Ter, então, sucesso através do uso dessas práticas, promove a construção de um ‘estilo de carne feminina’ que deve ser salientado e acentuado como conquista dignificante e elemento de distinção, sendo, portanto, importantes signos para elaborar esta rápida apresentação. Dando uma atmosfera extraordinária à sua corporeidade,

130

enfatizam características como: serem indelevelmente perfeitas; seios 66 bumbum 110;

gata luxo; alto nível; sem decepção; corpo de modelo; miss; ex-miss; top de linha; travesti nº 1; de A à Z; artigo de luxo; pantera; incomparável beleza, rosto e corpo exuberante; belíssima132.Características que ajudam a formular uma estilização específica de carne que atestará o sucesso de seus investimentos e desejos.

Vemos, assim, nessa operação entre o que elas crêem ser e o que acreditam ocasionar desejo neste outro, o sacar de categorias que revelam a preocupação em se mostrarem, para além do corriqueiro, mais que bonitas, estando muito além das ‘mulheres comuns’, que disputam com elas este espaço de divulgação.

Percebe-se, pois, que os significantes que alicerçam esta feminilidade extraordinária revelam que os corpos marcados por gênero são assim, “[...]‘estilos de carne’. Esses estilos nunca são completamente originais, pois os estilos têm uma história, e suas histórias condicionam e limitam suas possibilidades” (BUTLER, 2003: 198).

Ainda assim, mesmo diante desses investimentos discursivos, parece que é dada, ao cliente da travesti, uma possibilidade distinta de ‘conferir’ suas características afirmadas nesses anúncios. A grande maioria das travestis disponibiliza seus home

pages aos clientes, ao contrário das mulheres. Isso se explica pelo fato de que talvez

uma mulher não necessite tanto comprovar suas características femininas, pois já carrega nas suas trajetórias a bagagem do discurso ontológico. Diferente disso, as travestis estão demonstrando, via performance paródica, a sua capacidade de revelar o aspecto não-ontológico da experiência de gênero.

As práticas sexuais também entram como vetores distintivos dos anúncios das travestis, que serão liberalíssimas; praticarão beijo grego133; usarão acessórios de

132

Ver ANEXO. 133

fetiche; e terão enfim a característica específica de girar entre as práticas sexuais ativ. ou pass134.

Através da experiência de anunciar-se nestes fulgidos e mercadológicos espaços públicos, elas buscam, às finas linhas, especificarem o que são, através da mescla do que consideram como capital simbólico essencial, ou seja, o fato de serem ‘hiperbolicamente’ femininas, como também atestarem o sucesso e a garantia da não

decepção deste procedimento metamórfico, além de suas distintas práticas sexuais.

Os distintivos elementos entre mulheres e travestis, podem ser apreciados tanto no que tange as práticas sexuais quanto ao que talvez as faça permeadas por uma atmosfera ‘fantástica’. Visto que, diante de todos os procedimentos que envolvem a travestilidade, abarcando tantos cuidados e investimentos, é nos dada à possibilidade de deparar com um ideal que dificilmente será atingindo por uma ‘mulher comum’, por uma mulher que também não se reformule via outros artifícios, que não seja a sua aparência de ‘naturalidade’.

Esses anúncios deixam bem claro que os atos paródicos não são realizados através de uma ontologia, mas sim de ideais socialmente compartilhados, que revelam os estilos de carne e de subjetividade a serem performatizados como capital simbólico desta experiência.

4.3. Prostituição parodística: