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III- (Re) Invenções cotidianas: Práticas e técnicas travestidas

4.3. Prostituição parodística: Fazendo o vício!

A discussão acerca das motivações da já histórica atividade de prostituição é delicada e fruto de inúmeras divergências. Discussão esta, que tornará a pequena problematização, aqui proposta, deveras importante para entendermos as operações

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empreendidas nesta profissão, nos levando a pensar para além de seu conteúdo mercadológico, ao menos quando falamos da experiência da travestilidade.

Para o movimento feminista, a pornografia e a prostituição são elementos de dominação do poder fálico e patriarcal, se configurando, para esta ideologia, como atividades das mais degradantes para a identidade feminina, bem como elemento primordial de submissão, cuja extinção seria a única medida cabível e sequer sua descriminalização se tornaria prerrogativa aceitável (FRIEDMAN, 2002).

Contudo, assistimos atualmente a um movimento bastante sólido em direção à descriminalização dessa atividade, requerendo seu status de profissão legalmente reconhecida. O que nos faz pensar, pertinentemente, se as pessoas que a executam realmente a percebem nos contornos nefastos que são propostos por algumas opiniões. Sobre isso nos fala Simmel, que mesmo engendrado nas linhas morais da sua época, já elabora chaves para se pensar a prostituição sobre outros moldes:

A indignação moral que a ‘boa sociedade’ manifesta em relação à prostituição é, sob muitos aspectos matéria de ceticismo. Como se a prostituição não fosse a conseqüência inevitável de um estado de coisas que essa ‘boa sociedade’ impõe ao conjunto da população! [...] Claro que a primeira vez em que o infortúnio, a solidão sem recursos, a ausência de educação moral, ou ainda o mau exemplo do ambiente incitam uma moça a se oferecer por dinheiro e por outro lado, a indescritível miséria em que, de ordinário, sua carreira se encerra, claro, entre esses dois extremos, existe na maior parte do tempo um período de prazer e despreocupação (SIMMEL. Georg, 2001: 1).

Ao utilizar esta citação, procuro trazer sua interpretação para o nosso tempo. Quando se fala, que a ‘boa sociedade’ empurra determinadas pessoas para a prostituição, não seria apenas, como quer Simmel, pelo aspecto de abjeção e de miséria que possa possuir determinada parcela da população que se prostitui, por mais que não

esteja aqui afirmando que isso também não ocorra135. Mas, diante desta explicação unilateral, como explicaríamos, por exemplo, sobre estes termos, a prostituição de meninas de classe média alta, universitárias, advindas dos status mais altos da hierarquia social, que praticam a atividade em nome do consumo ou por outras motivações como o gosto e prazer. Contudo me faltam dados para melhor dissertar sobre estas motivações específicas.

O que estou aqui procurando problematizar é que nossa sociedade atualmente não incentiva a prostituição apenas sobre os termos econômicos que nos fala ainda o autor, ou mesmo sociais, baseado no modelo normativo de casamento onde podem ser vislumbradas as categorias de ‘mulher pra casar’ e reproduzir, e ‘mulher pra trepar’ e liberar fantasias eróticas136. Mas a atual incitação do sexo, da pornografia, dos corpos sexualmente atrativos, como características pessoais valorizadas, leva a observar nas habilidades sexuais uma competência de teor profissional137 e que pode também se aliar ao prazer.

E aqui não vejo diferenças entre, por exemplo, o prazer que possuo em praticar a profissão de antropóloga, acreditando ter uma habilidade distinta para tal profissão, e alguém que toma como sua habilidade maior a prática sexual, tendo prazer e recompensa na sua atividade. Sem medo da comparação, até a marginalidade que possivelmente estas duas profissões podem possuir na realidade da hierarquia das

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“Não tenho cabeça pra pista mais não. Eu gostava em São Paulo. Por que em São Paulo ganha

dinheiro. Aqui não ganha dinheiro. Namorado na pista? Aparecer, aparecia... Aparece. Só que na pista não pode se apaixonar. Tem que olhar e pensar no bolso do homem. Não pensar em amor, nem beijinho, entendeu? Só por dinheiro. Se num tiver dinheiro tira calça, tira o sapato, me dá a carteira, me dá o anel. Mesmo eu carente” (Sheila Magda, 37 anos, travesti).

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Historicamente a prostituição se configura não como um fenômeno aceito, mas um “[...] incômodo

tolerado, pois funcionaria como uma espécie de válvula de escape para o incontrolável desejo sexual do macho de realizar suas mais recônditas fantasias e necessidades fora do casamento. Dessa maneira, torna-se possível preservar a figura da esposa, como mulher imaculada – com a qual sexo vincula-se a reprodução -, e a da ‘moça de família’. Culturalmente, tanto no campo simbólico quanto no imaginário social, a prostituta desempenha papéis inconcebíveis para a ‘mulher de família” (ARAÚJO, 2006: 66).

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Como coloca Juliano (2005) questionando-se sobre as polêmicas e estereótipos que envolvem o trabalho sexual feminino, atualmente, percebe que “Sin embargo muchas de las mujeres que trabajan en

profissões no Brasil podem ser equiparadas, já que ainda lutamos cotidianamente por demonstrar um caráter de profissionalidade e de cientificidade à antropologia, como tanto promulgado por Lévi-Strauss.

Sem fugir, contudo, de nossa reflexão, e continuando com Simmel, mesmo ao salientar a característica de miséria e não ‘escolha’ da profissão, que ocorre, sobretudo devido à atmosfera criminalizante e impura que esta possui no imaginário social maior, o autor nos fala que entre estes termos estigmatizantes, outras operações podem ser encontradas, reconhecendo a existência do prazer e da despreocupação que igualmente pode a atividade abarcar.

Nos estudos sobre prostituição é freqüente o assinalar que a maior motivação para a prática seria sua recompensa financeira, como revelada em pesquisa realizada por Rogério Araújo (2006), com um grupo de profissionais do sexo na cidade de Goiânia, sendo uma das justificativas mais fortes ‘[...] dessas mulheres para permanecer na prostituição está, sobretudo, na possibilidade de um rendimento maior, se comparado ao obtido em atividades que muitas exerceram antes de se prostituírem [...]. (ARAÚJO, 2006: 69)

Esta motivação econômica também aparece nas narrativas das travestis, e muitas não observam prazer na atividade e consideram-se empurradas para este campo devido à abjeção social da qual são vítimas138. Mas foi possível perceber nas falas, que também podemos pensar conjuntamente a isso, que devido ao caráter estigmatizado da experiência da travestilidade, seja estratégico transformar o ambiente e a atividade da prostituição num momento agradável. E o fator distintivo de suas experiências na prostituição em relação às mulheres seria o conforto afetivo-emocional que o espaço pode possibilitar a estes corpos abjetos.

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“Travesti não tem que se prostituir, mas às vezes somos levadas a isso pela falta de opção no mercado de trabalho” (Carol).

Isso foi possível perceber, durante a pesquisa de campo, pois algumas travestis, que possuem uma renda mensal garantida pelo Estado - como beneficio proporcionado em caso de contaminação do vírus HIV, e infelizmente muitas delas o são - ou são reformadas tanto do exército, quanto da marinha, continuam a executar a prática da prostituição.

A garantia da aceitação de suas transformações corporais traduzidas pelo desejo do cliente em pagar para manter relações sexuais com elas ou, por vezes, nada pagar, o que é vivenciado pelas travestis sobre a categoria de “fazer o vício”, fez-me perceber as operações da prostituição na travestilidade, observando este ato também como um espaço de vivenciar mesmo que momentaneamente sentimentos de aceitabilidade e positividade.

É claro que podemos argumentar que isto pode ser mais um elemento tático realizado na experiência da travestilidade, que reside justamente no ato de se aproveitar da ocasião em que não sofrerá sanções ou estigmatizações em relação a sua trans condição, já que está implícito na procura o desejo, (re) elaborando astuciosamente este espaço como próprio para vivências de afetividades positivas e prazeres afetivo- sexuais139.

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“Porque prostituição quando você entra, pra você sair, mesmo você já tendo um dinheirinho por fora, você não deixa não. Porque tem o lado de gostar, do prazer também, né?” (Carol)

“Fazer o vício” 140 ou namorar141 na pista aponta para o deslocamento do aspecto utilitário para o afetivo. Isso alerta para o aspecto distintivo na experiência da travestilidade, já que, mesmo através da reivindicação das profissionais do sexo de que sua atividade se torne juridicamente reconhecida, ainda há um discurso maior de que as motivações para tal exercício sejam suas recompensas econômicas e não o possível prazer de se executar essa atividade laboral, na qual as prostitutas mulheres “[...] subrayan su carácter de opción económica (y no moral)” (JULIANO, 2005: 81).

Nas histórias de vida das travestis comumente se simboliza a experiência da prostituição de maneira híbrida, pois parecem taticamente combinar o que há de ‘bom’ e ‘ruim’ para elas nesta atividade, formando um semblante menos criminalizante, vitimizador e violento para a prática, buscando os momentos de prazer que ela pode ocasionar.

Como “a posição da prostituição depende dos sentimentos sociais que ela

desperta” (SIMMEL, 2001: 15), estes momentos prazerosos surgem especificamente na

ocasião em que os homens se tornam ‘bons clientes’, e eles serão assim simbolizados a partir do momento, não em que, necessariamente, pagam bem pelo programa, mas preponderantemente se este possui a distinção de durante o programa fazerem-nas vivenciar experiências para além das utilitárias, que sugerem gestos de carinho, beijos,

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O sacar deste recurso lingüístico, entre as travestis também foi sentido na etnografia de Rogério Araújo (2006), sendo esta, como também observada nesta pesquisa, uma prática bastante executada na experiência da travestilidade. Segundo o autor, o perfil dos clientes das travestis, é ou de homens mais velhos e casados, ou de jovens com a aparência física mais atraente para elas e “com esse tipo de cliente,

a travesti, ‘faz o vício, isto é, ela cobra um valor bem inferior ao cobrado habitualmente, ou até mesmo faz o programa sem cobrar nada” (Op.cit: 41).

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Flávia me conta, em conversa, que às vezes vai pro ponto só pra namorar, termo de carga simbólica, que remete para além de encontros episódicos, certo envolvimento afetivo-emocional, não puramente utilitário, justificada pela semântica específica que cerca o termo fazer o vício dentro do universo dos códigos comunicacionais próprios da travestilidade: “Às vezes nem rola dinheiro, mulher. Mas como não

sou apegada a isso e quando vejo um homem assim que me agrada, nem ligo, faço mesmo, realizo!”

afagos, conquistas e romance, servindo para amenizar a atmosfera de perigo e erotismo envolvida em tal exercício:

Olhe, por que na prostituição tem os dois lados. Pra curtir, namorar e tem o lado de ganhar dinheiro. Todo dia é dia branco... O que não mata, engorda. Tem dia que você pega um cliente bom, sai, ganha dinheiro, ganha carícias, ganha beijos, pra arrebentar. Mas tem uns, minha filha, que vai direto ao assunto, olha pra você como você fosse um objeto. Me sinto horrível, né? Sua auto-estima fica logo baixa. A prostituição é triste, você tem que ter muito peito... pra você tá exposto numa avenida, numa rua, no mundo em que se vive hoje de violência. Qualquer coisa pode acontecer com você na pista. É assim mesmo, tem o lado bom e o lado ruim. Vou falar pra você, eu não vou mentir não. Eu gosto da prostituição. Eu gosto de me prostituir, para os clientes bons. Você não é obrigada a sair com as pessoas que você não tá a fim de sair. Quando a pessoa é assim... eu olho muito pro olhar do cliente, né? Quando eu vejo logo aquela cara ou aquela intuição minha, eu digo ‘sai’, jogo um preço bem alto, já pra ele não ficar encarnando, entendeu? Porque tem isso também, tem que ser uma jogada, também, né? Não é você chegar e se jogar no carro e pronto, não. Não é assim não. Eu procuro primeiro, observar as pessoas, cara a cara, olho no olho, olhar para as pessoas que estão perto de você, tudo isso (Carol).

Para as travestis, a prostituição tem assim dois lados, como comenta Carol. Um que percebe o grau de perigo, justificado por sua gratificação financeira e outro afetivo- emocional, como espaço legitimado por este grupo enquanto ambiente próprio para flertar, namorar, e nutrir sentimentos de prazer e desejo, emoções que vão muito além do aspecto utilitário sempre dimensionado nos estudos sobre a temática. Estes ‘dois lados’ também são frutos de momento de reflexividade para Joelma:

Na prostituição você vive sim. Tem os momentos legais, tem umas pessoas que a gente sai que são românticas, como se diz, e assim, por mais que seja aquele momento... assim, eu adoro aproveitar no momento, assim, se for uma pessoa boa, ali eu desejo. Têm até aqueles que quer fazer romance, que é pra duas pessoas. Eu digo ‘ômi eu num posso não. Eu tenho que trabalhar.’ Mas, assim, tem os momentos bons, sabe? Mas assim, você encostar a cabeça no travesseiro, sair com pessoas que você nunca viu na vida, você não saber como é que está o coração dele, e a gente vai e não sabe se volta. Fica pedindo a Deus, num sabe? Assim, no fundo, no fundo tem alguns momentos legais. (Joelma)

Este possível abandono do caráter utilitário pode ainda revelar uma valorização de si, em oposição às transações impessoais mediadas pelo dinheiro, através da possibilidade de ser desejada e cortejada, mesmo que no fugaz momento de um programa, (re) significando a prostituição com um sentido mais profundo, pois,

O dinheiro é a coisa mais impessoal que existe na vida prática; como tal, é de todo inadequado a servir de meio de troca contra um valor tão pessoal quanto a entrega de uma mulher. Se, todavia, desempenha esse papel, rebaixa a seu nível essa realidade individual de valor específico[...] ( SIMMEL, 2001:5)

Ao parodiar não apenas uma profissão que historicamente foi destinada às mulheres, como também (re) significando-a através de operações muito próprias, mesclando abjeção e prazer, significando o ato de trabalhar via habilidades sexuais não puramente em seu conteúdo utilitário e trazendo o vivenciar de prazeres e sentimentos, não de degradação, mas de exaltação, para preencher a prostituição de outros sentidos, as travestis promovem os esquemas de (re) elaboração na citação característica do ato parodístico, como refletido por Butler (2003).

Torna-se, neste sentido, necessário observar o fenômeno da prostituição, através da multiplicidade de motivações e opiniões dentro da mesma experiência, como um elemento que se conecta com outros pontos da vida dos sujeitos e não sendo em si um fenômeno isolável da trajetória de vida de quem o executa, revelando o aspecto multifacetário que o ato de se prostituir pode representar.

Em que devemos, assim:

Considerar que a existência e a permanência da prostituição podem ser decorrentes de uma conjunção de fatores sociais econômicos, culturais e biográficos, diferentemente combinados, o que inviabiliza a construção de um modelo explicativo monocausal, rígido e estático para seu entendimento (ARAÚJO: 64).