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15. Focalização/topicalização em Araweté

15.3 A partícula ku

O Araweté possui uma partícula ku que, como observado por Vieira e Leite (1998:15- 16), não foi encontrada em outras línguas da família Tupí-Guaraní. Essa partícula na visão das autoras “... à primeira vista parece ser indicadora de tempo passado, uma vez que pode ser traduzida pelo passado em português:...”. Exemplos dados por essas autoras são os seguintes, em que são preservadas as numerações originais:

(10) a-y ky he pran “eu comi peixe” 1asg-comer ky eu peixe

(11) Eryary ky he-nypin “o Eduardo me bateu” Eduardo ky 1asg-bater

Vieira e Leite acrescentam à sua discussão o seguinte: “Cumpre notar, porém que ky também pode ser empregado em sentenças que não possuem uma interpretação de tempo passado:...”, o que exemplificam com os seguintes exemplos (a numeração original é preservada):

380

(12) nan ky maj nype we “não há cobras no caminho” neg. ky cobra caminho-pelo

(13) a-kary ky he te-ja “eu já vou comer” 1asg comer ky eu 1asg.-ir

(14) he-ryiman ky he “Eu estou com fome” 1a sg-fome ky eu

(15) a-pitykan ky he typãy “Eu lavo a roupa” 1a sg-lavar ky eu roupa

Segundo as autoras, ky adquire um sentido existencial em (12), de aspecto inceptivo em (13), de tempo presente com verbos não-ativos em (14), e de aspecto habitual em (15).

Finalmente, as autoras consideram que,

a ocorrência de ky em estruturas com interpretações temporal e aspectual tão distintas possibilita a interpretação dessa partícula como um evidencial, cuja subespecificação não se pode ainda determinar, por serem os dados disponíveis compostos apenas de frases descontextualizadas. Assim, não se sabe se ky indica se a informação resulta de experiência direta ou indireta, ou se traduz uma suposição, inferência, etc. É provável, então, que ky tenha um valor modal, uma vez que parece expressar a atitude ou crença do falante em relação à proposição (p.16).

Atualmente, de mão de um número relativamente significante de dados, podemos contribuir para a o aprofundamento da discussão sobre a função da partícula ku do Araweté iniciada por Vieira e Leite. Um exame dos dados evidencia que ku é uma marca de foco17, a qual delimita o escopo da proposição que deve ser tomado pelo ouvinte como o relevante do ponto de vista do falante. Vejamos os seguintes exemplos:

17

Vieira e Leite (1998:21) já haviam sugerido que a partícula ku, além de partícula evidencial, fosse também um marcador de foco.

381 1133) he -nupi ku 1 R1-bater FOC „ele me bateu‟ 1134) ure -nupi ku 13 R1-bater FOC

„ele nos bateu‟

1135) u-pe ku he -jiete

3-quebrar FOC 1 R1-machado „ele quebrou meu machado‟

Nos dois primeiros exemplos a partícula ku segue o predicado, em posição que corresponde ao mesmo tempo ao final da sentença. No último exemplo, a partícula ku destaca o processo verbal como o centro do discurso. Nos exemplos seguintes, o sujeito é o constituinte focalizado, ou seja, ele deve ser tomado como informação central da proposição enunciada pelo falante:

1136) kumee ku he -pi-ika

homem FOC 1 R1-pé-cortar

„o homem (enfermeiro) cortou o meu pé‟

1137) he ku ne -uu

1 FOC 2 R1-morder

382

1138) ne ku he -iwu e-u -iwe

2 FOC 1 R1-furar 2CORR-flecha R1-CINS

„você me furou com tua (própria) flecha‟

Em todos esses exemplos, o elemento focalizado é o sujeito. Nos exemplos seguintes, o elemento focalizado é o objeto direto, ou seja, é este que deve ser tomado como elemento relevante no contexto informacional do que é predicado. Note-se que o falante está aqui apresentando uma informação desconhecida do ouvinte:

1139) abura ku ure uru-eti kaarume

bola FOC 13 13-jogar ontem

„bola‟ nós jogamos ontem‟

1140) pehi ku he a-muji te-e kaarume a

cesto FOC 1 1-fazer 1CORR-estar.sentado ontem REIT

„cesto‟ eu estava fazendo ontem‟

1141) t-upa ku u-pija u-e

R4-roupa FOC 3-costurar 3CORR-estar.sentado „saia‟ ela ficou costurando‟

1142) t-upa ku uru-pija uru-ju

R4-roupa FOC 13-costurar 3CORR-estar.deitado „roupa‟ nós ficamos costurando‟

1143) arapuha ku he a-u

veado FOC 1 1-comer „veado‟eu comi‟

383

1144) a-u ku he tuha jara-mee r-ahi nehe

1-comer FOC 1 remédio dono-NP R1-doença INT

„eu tomei remédio com a intenção de curar a doença‟

Os exemplos acima sugerem que o constituinte marcado por ku ocupa a primeira posição à esquerda da sentença, como ocorre com os elementos topicalizados em perguntas e no modo indicativo II. Embora essa possibilidade não seja descartada, ressaltamos que a partícula ku também marca constituintes topicalizados como mostram os seguintes exemplos:

Modo indicativo II

1145) tite -iwe ku wi j-aika ree

faca-ATEN R1-CI FOC esses REFL-cortar AT.OUTRO

„com a faquinha, eles se cortaram‟

1146) kaa -iwe ku he -te

mato R1-CI FOC 1 R1-dormir

„dentro do mato, eu dormi‟

1147) jarutu -iwe ku pe n-u pda -u

canoa R1-CI FOC 23 R1-estar/ficar peixe R1-comer

„na canoa, vocês ficaram comendo-peixe‟

1148) hawe ku akaju u-ti

amanhã FOC caju 3-plantar

384 1149) pe n-eta ku he r-uj

23 R1-ver FOC 1 R1-voltar

„eu voltei para ver vocês‟

Este último exemplo contém um predicado no modo gerúndio precedendo a oração principal e, como uma oração no modo gerúndio corresponde a uma expressão adverbial, aciona o modo indicativo II, quando precede a oração principal (cf. CABRAL E RODRIGUES, 2005:52-57).

A co-ocorrência da partícula ku com elementos topicalizados mostra que, nesses contextos, acentua o escopo do que é topicalizado. Nos demais contextos, a partícula ku marca o escopo da topicalização/focalização.

O exemplo seguinte mostra a ordem SOV, que é a ordem básica das sentenças em Araweté. Nele o sujeito, que é o elemento mais tópico, vem naturalmente na posição inicial da sentença, mas sem a partícula ku. Exemplos como esse, que são comuns, mostram por um lado que o uso da partícula ku é pragmaticamente condicionado, e que o fato de seguir também constituintes sujeito em primeira posição, pode significar que este também está em posição de tópico extra-sentencial.

1150) Neura ata u-ta Neura açai 3-amassar „Neura amassou o açaí‟

1151) Ikaire pda u-mee a Eliete r-e

Ikaire peixe 3-dar REIT Eliete R1-CR

385

Os exemplos seguintes coletados em situações naturais de fala mostram que o sujeito da oração principal Ikaire, vem seguido por ku, que foi usada para fazer sobressair a informação de que as presenças de Ikaire e de Marukairu nos contextos discursivos respectivos deviam-se ao fato de estarem ali com respeito a Eliete.

1152) Ikaire ku u-ja Eliete -mujee a

Ikaire FOC 3-vir Eliete R2-chamar REIT

„Ikaire vem chamar a Eliete‟

1153) Muikatuhi ku Eliete -karahi h-eru u-e a

Muikatuhi FOC Eliete R1-relógio R2-trazer 3-estar.sentada REIT

„Muikatuhi está trazendo o relógio da Eliete‟

Finalmente, nos exemplos seguintes, fica evidente que o marcador ku tem por função marcar foco contrastivo:

1154) Neura ku ata u-ta u-ta ja Eliete

Neura FOC açai 3-amassar 3-amassar NEG Eliete „foi a Neura que amassou o açai, não foi a Eliete‟

1155) u-manu ja gatu r-eka marakaja ku u-manu nee

3-morrer NEG gatu R1-ESTAR.EM.MOV. cachorro FOC 3-morrer AT.OUTRO

386

1156) Kamarati ku iwahu u-u u-u ja Ajajuru

Kamarati FOC mel 3-comer 3-comer NEG Ajajuru

„foi a Kamarati que comeu o mel, não foi o Ajajuru‟

15.4 Conclusão

Neste capítulo mostramos que a língua Araweté faz uso de duas estratégias principais para topicalizar e focalizar constituintes do discurso: o posicionamento do constituinte topicalizado na periferia esquerda da sentença e o uso da partícula ku.

Nos dois casos, o constituinte topicalizado/focalizado é o centro de atenção do discurso. Os exemplos indicam que a partícula ku pode marcar um constituinte em posição de tópico, quando este elemento é uma expressão adverbial, mas ocorre obrigatoriamente com os demais constituintes topicalizados/focalizados.

387 CAPÍTULO XVI

16. Modalidade

16.1 Introdução

Neste capítulo, tratamos das expressões de modalidade em Araweté. O conceito de modalidade aqui adotado corresponde às sinalizações no discurso de posições tomadas pelo falante com respeito à verdade contida na proposição. Neste capítulo consideramos fundamentalmente os estudos sobre modalidade na família Tupí-Guaraní, como a Morfologia

do verbo Tupí por Rodrigues (1953), em especial na descrição que faz sobre modalidade em

Tupinambá; o estudo sobre modalidades alética e epistêmica na família Tupí-Guaraní (CABRAL, 2000, 2007), e o capítulo da tese de doutorado sobre o Anambé (JULIÃO, 2005), que é a língua aparentemente mais próxima do Araweté.

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