• Nenhum resultado encontrado

13. Hierarquia de pessoa em Araweté

13.2 Hierarquia referencial em línguas Tupí

Monserrat e Soares (1983) inauguram, no âmbito dos estudos Tupí, uma discussão sobre Hierarquia Referencial, doravante HR, tomando por base as idéias desenvolvidas por Hawkinson e Hyman (1974), Foley (1976) e Silvertein (1976), para os quais há uma hierarquia natural de tópico, em que o falante tem precedência sobre o ouvinte, o qual, por sua vez, tem precedência sobre nomes próprios; estes têm precedência sobre nomes comuns humanos, os quais têm precedência sobre nomes comuns animados e, ainda, estes, sobre inanimados. A escala hierárquica de pessoa, considerando as diferentes contribuições, é representada por Monserrat e Soares (1983:165) como se segue:

350

Monserrat e Soares (1983), fundamentadas no estudo da expressão de pessoa em 17 línguas Tupí chegam a conclusões importantes sobre a configuração da distribuição de marcas pessoais nessas línguas, até então não vistas em uma perspectiva tipológica através de um conjunto de línguas geneticamente relacionadas.

Das conclusões a que chegaram as autoras, destacamos as seguintes:

...A forma particular de que se reveste a HR característica das línguas Tupí, manifestada por “morfemas de caso” (ao marcar o verbo transitivo, a função correspondente ao referente mais alto da oração na HR), insere esse grupo de línguas entre as menos comuns e seu estudo, por conseguinte, no âmbito dos menos triviais (p. 165-166).

...No que diz respeito ao funcionamento da hierarquia referencial na família tupí- guaraní, constatamos que a maior parte das línguas apresenta um hierarquia referencial nas formas verbais transitivas, que recebem, quase sempre, o prefixo referente ao papel desempenhado pelo referente hierarquicamente superior; constatamos ainda que o funcionamento de tal hierarquia é integral ou parcial conforme seja resolvida nessas línguas a relação sujeito „eu‟/objeto „você‟. Em outra palavras, na maior parte das línguas a hierarquia se mantêm em todas as relações exceto naquelas em que se tem sujeito „eu‟/objeto „você(s)‟ e sujeito „nós‟/objeto „vocês‟, constituindo-se em possível situação de quebra da mencionada HR o fato de o verbo apresentar um prefixo cuja forma não corresponde à esperada, ou seja, não aparece o prefixo correspondente ao sujeito de 1ª. pessoa do singular ou do plural (p. 166-167).

Monserrat e Soares (p. 167), em função dos seus achados relativos à distribuição de marcas pessoais nos verbos de línguas Tupí-Guaraní agrupam essas línguas como a seguir:

I) prefixo tomado pelo verbo, em todas as relações transitivas é o correspondente à função desempenhada pelo referente e hierarquicamente superior, o que é dizer, a HR funciona integralmente. Estão neste caso as línguas Kajabí e Awetí;

II) nas relações sujeito „eu‟/ objeto „você‟ e sujeito „eu‟/ objeto „vocês‟, o prefixo tomado pelo verbo é uma aglutinação do prefixo subjetivo da primeira pessoa e do objetivo de segunda pessoa. O Sateré representa tal situação;

III) nas relações sujeito „eu‟/objeto você‟ e sujeito „eu‟/objeto „vocês‟, o prefixo tomado pelo verbo coincide formalmente com o de sujeito da primeira pessoa do plural, rompendo-se aparentemente a HR que, no entanto, mantêm-se nas demais relações. Estão nesta situação o Asuriní e o Oyampi;

351

IV) na relação sujeito „eu‟/objeto você‟, o prefixo que ocorre junto ao verbo possui a forma do subjetivo de primeira pessoa do plural e, na relação sujeito „eu‟/objeto „vocês‟, o prefixo apresentado pela forma verbal é opo-, sem relação formal transparente com os demais prefixos da série relativos à primeira e segunda pessoas. Está nesse caso o Kamaiurá;

V) na relação „eu‟/objeto você‟, o prefixo tomado pelo verbo coincide com o do subjetivo de primeira pessoa do plural e, na relação sujeito „eu‟/objeto „vocês‟, o prefixo apresentado é ãpa- ou apo-, aparecendo também este último prefixo quando se trata da relação sujeito „nós‟/ objeto „vocês‟. Desse casoconstituem exemplos as línguas Tapirapé (ãpa-) e Parintintim e Tupinambá (opo-);

VI) na relação sujeito „eu‟/objeto „você‟, aparece junto ao verbo o prefixo com forma de sujeito de primeira pessoa do plural; na relação sujeito „eu‟/objeto „vocês‟, ocorre o prefixo –apo ou apu-; e quando se trata da relação sujeito nós/ objeto „vocês‟, ocorre oropo- ou urupu-. Nessa situação se encontram o Guajajára, o Tembé e o Kaiwá.

As autoras observam ainda (p. 168) que o Tupinambá apresenta uma quebra adicional às elencadas, especificamente na relação entre sujeito „eu‟ ou „você‟/objeto „ele‟, “...ao expressar no verbo simultaneamente o prefixo subjetivo e objetivo correspondente.” Observam, por outro lado, “...que a hierarquia se mantém, no entanto, quando se trata de terceira pessoa como sujeito, caso em que ocorrem os prefixos objetivos de primeira ou segunda pessoa.”

Monserrat e Soares (1983) consideram a HR vigente em línguas de outras quatro famílias Tupí, mas para a o presente estudo, foram focalizadas as considerações das autoras fundamentalmente sobre HR em línguas Tupí-Guaraní.

352 13.3 A HR vigente no Araweté

A distribuição das marcas pessoais na língua Araweté fundamenta a caracterização de uma HR em que a primeira pessoa tem a mesma posição hierárquica que a segunda pessoa, de forma que nos predicados transitivos, quando o sujeito (agente) é uma terceira pessoa e o objeto uma primeira ou segunda pessoa, o que é associado morfossintaticamente ao verbo é o objeto. Isto independentemente do fato de o sujeito ser nome próprio, um nome comum de referente animado ou um nome de referente inanimado. O objeto é, então, relacionado ao verbo por meio de flexão relacional, formando com este uma unidade sintática, e o sujeito só é expresso sintaticamente quando há necessidade de esclarecer a sua identidade, ou por ênfase. Exemplos: 1021) he -nupi ku 1 R1-bater FOC „ele me bateu‟ 1022) ure -nupi ku 13 R1-bater FOC

„ele nos bateu‟

1023) ne -nupi ku

2 R1-bater FOC

„ele bateu em você‟

1024) pe -nupi ku

23 R1-bater FOC

353 1025) ne r-eta ku

2 R1-bater FOC

„ele viu você‟

1026) ure r-eta ku

13 R1-bater FOC

„ele nos viu‟

1027) pe n-eta ku

23 R1-bater FOC

„ele viu vocês‟

Quando o sujeito (agente) é de primeira pessoa e o objeto de segunda pessoa, a língua faz uso de padrão análogo, o objeto é relacionado ao verbo por meio de flexão relacional, formando com este uma unidade sintática:

1028) he ku ne -nupi

1 FOC 2 R1-bater „eu bati em você‟

1029) pe -nupi ku he

23 R1-bater FOC 1 „eu bati em vocês‟

1030) ne r-eta ku he

2 R1-ver FOC 1 „eu vi você‟

354 1031) ure ku ne -p 13 FOC 2 R1-beliscar „nós beliscamos você‟ 1032) ure ku pe -p 13 FOC 23 R1-beliscar „nós beliscamos vocês‟

Note-se que o mesmo padrão é usado quando uma segunda pessoa é sujeito e uma primeira pessoa é objeto:

1033) pe ku he -nupi

23 FOC 1 R1-bater

„vocês bateram em mim‟

1034) pe ku ure -nupi

23 FOC 13 R1-bater „vocês bateram em nós‟ 1035) he r-eta ku ne 1 R1-ver FOC 2 „você me viu‟ 1036) he r-eta ku pe 1 R1-ver FOC 23 „vocês me viu‟

355 1037) ure r-eta ku pe

13 R1-ver FOC 23

„vocês nos viram‟

1038) ne ku ure -p

2 FOC 13 R1-beliscar „você nos beliscou‟

1039) ne ku he -p 2 FOC 1 R1-beliscar „você me beliscou‟ 1040) pe ku he -p 23 FOC 1 R1-beliscar „vocês me beliscaram‟ 1041) pe ku ure -p 23 FOC 13 R1-beliscar „vocês nos beliscaram‟

A distribuição de marcas pessoais em verbos transitivos, descrita até este ponto, evidencia uma hierarquia em que primeira pessoa e a segunda pessoa têm a mesma posição na hierarquia, de forma que, quando uma delas é agente e a outra é paciente, o agente nunca é marcado no verbo. Da mesma forma que, quando uma terceira pessoa é sujeito de verbo transitivo e uma primeira ou uma segunda pessoa é seu objeto, é este objeto que forma com o

356

verbo um constituinte. Entretanto, quando o objeto é uma terceira pessoa, o verbo é flexionado por prefixos pessoais que codificam o agente:

1042) u-mune ku madetaka he -memi

3-benzer FOC pajé 1 R1-filho

„o pajé benzeu meu filho‟

1043) a-meni ku he tata

1-acender FOC 1 fogo

„eu acendi o fogo‟

1044) a-uu ku he mejurai

1-mastigar FOC 1 bolacha

„eu mastiguei bolacha‟

1045) u-a ku he r-ereku iwahu

3-tirar FOC 1 R1-marido mel

„meu marido tirou mel‟

1046) ere-ru ku ne awat

2-trazer FOC 2 milho

„você trouxe o milho‟

1047) pe-ru ku pe awat

23-trazer FOC 23 milho

357 1048) a-nupi ku he

1-bater FOC 1

„eu bati nele‟

1049) ere-nupi ku ne

2-bater FOC 2 „você bateu nele‟

1050) ere-nupi ku ne kumee

2-bater FOC 2 homem „você bateu no homem‟

1051) ere-nupi ku ne wi

2-bater FOC 2 esses „você bateu neles‟

1052) pe ku pe-nupi

23 FOC 23-bater „vocês bateram neles‟

1053) a-eta ku he 1-ver FOC 1 „eu o vi‟ 1054) ere-eta ku ne 2-ver FOC 2 „você o viu‟

358 1055) a-nupi ku he te-ati

1-bater FOC 1 1CORR-cabeça

„eu bati minha cabeça‟

Os exemplos apresentados evidenciam a vigência de uma HR no modo indicativo I. Reforçamos a nossa interpretação, exposta em outras partes deste estudo, de que não já diferença formal entre a estrutura morfossintática de predicados transitivos nos modos indicativo I, quando o objeto é de primeira e de segunda pessoa, e a forma morfossintática dos verbos nos modos indicativo II, no imperativo e no gerúndio, quando também o objeto é uma primeira ou uma segunda pessoa. É verdade que no indicativo II e no gerúndio, quando o objeto é de terceira pessoa, o verbo também não recebe prefixos de sujeito, mas flexão relacional, como é o caso das situações em que o objeto é de primeira ou de segunda pessoa. Mas a igualdade estrutural é a base para associar esses padrões ao modo indicativo II.

Modo Indicativo II

1056) pe r-upi ne r-eta

caminho R1-CA 2 R1-ver

„pelo caminho, eu vi você‟

1057) te-a-we he r-eka me ne he r-eta

1corr-casa-LP 1 R1-estar.em.mov quando/se 2 1 R1-ver „quando eu estava na minha casa, você me viu (não em outro lugar‟)‟

359

1058) pe r-upi ne r-eka me tap ne -pihi

caminho R1-CA 2 R1-estar.em.mov quando/se anta 2 R1-pegar

„no caminho se ficares, a anta te pega‟

Modo Gerúndio

1059) uru-ha ku ure uru-ata

13-chegar FOC 13 13-andar

nós vamos para a nossa andada

1060) a-wahe ku he pe n-eta

1-chegar FOC 1 23 R1-ver

„eu cheguei para ver vocês‟

1061) ere-ja ku he ure -pihi

2-vir FOC 1 13 R1-pintar

„você veio para nos pintar‟

1062) awa pa u-ha mde -mujurukarakatu

quem P 3-ir 123 R1-ensinar.Araweté

„quem vai nos ensinar Araweté?‟

Passemos agora ao sistema de alinhamento predominante em Araweté. Vimos que apenas no modo indicativo I e no imperativo, verbos intransitivos se combinam com prefixos

360

pessoais nominativos. Esses prefixos também se combinam com verbos transitivos, mas, apenas nas situações em que o objeto é de terceira pessoa.

No gerúndio, verbos intransitivos recebem prefixos correferenciais de sujeito, mostrando aqui também um padrão nominativo. Nos demais casos, os verbos tanto transitivos quanto intransitivos se combinam com flexão relacional e com argumentos sintáticos pronominais ou referenciais, mas, tratando-se da terceira pessoa sujeito de intransitivo ou objeto de transitivo, não forma um constituinte sintático com o núcleo de predicado, então este núcleo combina-se com o prefixo relacional de não-contigüidade (cf. capítulo IV e V).

Alinhamento nominativo: o núcleo do predicado combina-se com flexão pessoal nominativa, mas no caso dos verbos transitivos, o sujeito tem que ser maior na hierarquia referencial do que o objeto.

Exemplos:

1063) u-wahe ku kuni

3-chegar FOC mulher „a mulher chegou‟

1064) u-nupi pane ku ara

3-bater FRUS FOC arara „ela quase bateu na arara‟

Alinhamento absolutivo: ocorre nas demais situações, ou seja, nos modos indicativo II e no modo subjuntivo e no gerúndio, mas neste último, apenas quando o predicado tem por núcleo um verbo transitivo. Neste modo, como visto no cap. VII, os verbos intransitivos combinam- se com prefixos correferenciais.

361

1065) tap -juka ime mde tatu r-eta

anta R1-matar quando/se 123 tatu R1-ver

„se nós matarmos anta, ele procurará tatu‟

1066) -te ime he -te

R2-dormir quando/se 1 R1-dormir „se ele dormir, eu durmo‟

Nos dois exemplos precedentes, a primeira oração está no subjuntivo, mas a segunda no indicativo II. No exemplo seguinte o verbo no gerúndio é um verbo intransitivo, portanto, recebe prefixo correferencial.

1067) a-ha te-karu

1-ir 1CORR-comer „eu vou (para) comer‟

1068) pe-ja pe-jija

23-ir 23CORR-cantar „vocês vieram (para) cantar‟

1069) ere-ha ku ne e-puhu-puhu

2-ir FOC 2 2CORR-passear

362 13.4 Conclusão

Os dados do Araweté evidenciam, dessa forma, que a primeira e a segunda pessoa ocupam a mesma posição na escala hierárquica de tópico, ambos são superior ao objeto de terceira pessoa, mas quando eles são objeto, são sempre mais tópicos, independentemente do sujeito ser de primeira ou terceira, no caso da segunda pessoa, ou dela ser de segunda ou terceira, no caso da primeira pessoa. Resumindo, em Araweté, a escala hierárquica referencial é 1 = 2 e 1 e 2 > 3.

Quanto ao sistema de alinhamento observado no Araweté, os dados mostram que se trata de uma língua que apresenta um padrão nominativo quando o objeto é de terceira pessoa, mas um padrão absolutivo quando um objeto é de terceira pessoa, assim como nos modos indicativo II e no modo subjuntivo.

363 CAPÍTULO XIV

Documentos relacionados