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Capítulo II – A psicanalista e a criança

3.1 O reenlace da criança pelo Outro simbólico

Rosine Lefort descreveu a importância de diferenciar e tentar marcar um lugar para a criança, permitindo o seu surgimento singular. Para isso, ela propôs o uso do brincar e do ato de fala, na voz de um dizer, cujo dito poderia promover uma mudança de posicionamento da criança, permitindo surgir um sujeito desejante, através da interpretação dirigida à criança-analisante. Rosine (1991, p. 12) apontou a necessidade de efetuar tais atos com o cuidado de não promover mais um “fechamento”

determinante sobre o destino da criança, tal como seus pais um dia assim o fizeram (e isto, entretanto, foi necessário), ao contrário, propôs que o ato deveria proporcionar uma abertura, de modo que a criança surgisse separada das determinações massivas e congeladoras em que esteve submetida até o momento, sob sua primeira relação com o Outro na alienação. A relação transferencial foi evidenciada sob duas vias: da analista e da analisante. Ao que parece, o tratamento passaria pela retificação do Outro por um Outro simbólico, mais acolhedor, através da posição Outra da analista, distinta da função materna.

O Outro na teoria lacaniana (LACAN, 1985 [1955-56]) pode ser localizado em três dimensões, a partir dos três registros: simbólico, imaginário e real. O Outro imaginário aparece na função primordial da constituição de um sujeito e podemos localizá-lo na função materna; o Outro simbólico, barrado, é localizado na efetivação do Nome-do-Pai que promove a ordenação significante e permite a entrada do sujeito no campo da linguagem; e o Outro real, absoluto, é localizado como a dimensão impossível de se escrever na linguagem, aquilo que se configura como inassimilável, inaudito, como uma alteridade “estrangeira” surgida logo nas primeiras relações com o

cuidador primordial, mas que não é simbolizada25. Tendo estas dimensões em vista, podemos pensar que elas se enlaçam na medida em que o Outro se apresenta ao sujeito e este se relaciona com esta alteridade.

A inscrição simbólica é o elemento de um terceiro tempo que fará a mediação entre os registros imaginário e real, promovendo uma ordenação, de forma a conferir uma realidade psíquica, tópica, ao sujeito. Quando o Outro não aparece nesta dimensão, o sujeito fica à mercê de um enlaçamento do Outro imaginário com o Outro real, absoluto. Assim, resta o impossível, que “não cessa de não se escrever” (LACAN, 1982 [1972-73]), e uma profusão imaginária em delírios e alucinações, já que sem o engajamento simbólico que permite relativizar e promover deslizamentos metonímicos, de modo a permitir novas significações, o que insiste em retornar é o inassimilável, gerador da angústia que pode ultrapassar os limites entre o exterior e o sujeito.

Relembremos26 que o neonato quando nasce não tem condições de distinguir aquilo que percebe, que sente, e precisará de um outro que exerça uma ação específica, de modo a localizar, para ele, o seu corpo, o que lhe acomete e, assim, ir apresentando o campo simbólico. Em princípio, tudo se encontra indiferenciado e o neonato vive numa continuidade tensão-apaziguamento. Será quando houver algo que rompa com esta circularidade, através da demarcação de um traço que imprima uma estranheza no neonato, que ele poderá sair dessa imersão no indiferenciado para começar a fazer novos trilhamentos. Mas, quando essa demarcação não ocorre, ou quando a criança encontra-se numa posição psicopatológica, será necessária a intervenção de alguém.

Mas, como? Vorcaro (2009)27 identifica uma maneira de fazer uma marcação distinta da que a criança teve até o momento, a partir de uma repetição diferencial, ou seja, através

25 Rever no capítluo 1 a discussão sobre a devastação e aquilo que permanece inassimilável no inconsciente do sujeito.

26 Como já foi discutido no capítulo 1.

de uma marcação da diferença em um movimento da criança, de modo a provocar uma estranheza que a instigue a sair do lugar em que esteve até então, mas, sobretudo, reconhecendo no gesto da criança uma resposta e franqueando suas manifestações, ainda que parcas. O sujeito é o efeito do apagamento de traços de estranheza vindos do Outro, transformando-os em olhar, gesto, voz... Será a saída da criança da condição de indiferenciação dela com o meio, através da marcação de traços de que houve a passagem de uma alteridade, que permitirá sua entrada no campo simbólico, a partir de um Outro que corrobore e reconheça nas manifestações do neonato uma resposta ao que ele causou. Esse é o deslocamento que o neonato deve fazer com a incidência desse Outro, fazendo “leituras” do que passou, concatenando com outros traços e, assim, circulando na linguagem.

Nos casos de crianças esboçando um funcionamento sob o espectro autista, psicótico, ou ainda, em casos de depressões anaclíticas (ou seja, quando a criança se encontra numa situação de abandono subjetivo por muito tempo), faz-se urgente a apresentação de um Outro simbólico que efetue uma barra ao enlaçamento do gozo do Outro absoluto ao Outro imaginário. Mas, como? Como efetuar a marcação de uma repetição diferencial aos movimentos da criança, localizando uma exterioridade estrangeira, mas, segura, quando as crianças já se sentem tão invadidas?

Para Zenoni (2000), nestes casos, quando se constata que o sujeito encontra-se somente sob o gozo de um Outro absoluto, seria preciso tratar este Outro. É justamente porque este Outro absoluto gera o sofrimento que se justificaria tratá-lo: tratando o gozo ao qual a criança fica restrita, submetida e invadida. Como? Apresentando um Outro mais acolhedor que permita construções, invenções, mas sempre com a abertura e cuidado suficiente de permitir à criança efetuar desdobramentos. Esta abertura é o que o campo da linguagem, no Outro simbólico, permite. A linguagem, além de não ser exata,

permite o equívoco, uma vez que o significado poderá advir de diversas maneiras nos deslizamentos significantes.

Desse modo, são ofertadas possibilidades à criança, permitindo a ela fazer ou refazer o laço social por meio de um Outro mais acolhedor e menos ameaçador. A fala pode ser dirigida, denotando um endereçamento, nem sempre com uma interpretação alienante, mas que delimite espaços, objetos, apaziguando a criança e regredindo progressivamente o gozo do Outro real. Sem perder de vista a subjetivação do sujeito, Faria (2006, p. 151) evidencia dois aspectos: “o da alteridade vigente no imaginário, o Outro que oferece continência e continuidade à via da estruturação; e o da alteridade simbólica, que presentifica um Outro barrado”; este seria um posicionamento daquele que se ofertaria no tratamento destas crianças, colocando-se como um “parceiro”.

Atentando aos mínimos detalhes, o parceiro sustentaria a criação de um sujeito, de modo a lhe permitir defender-se do Outro absoluto, construindo novos laços a partir da presença de um Outro simbólico barrado, que reconhece o sujeito sem engolfá-lo.