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Capítulo II – A psicanalista e a criança

3.2 A psicanalista entre o não-saber e o saber suposto

permite o equívoco, uma vez que o significado poderá advir de diversas maneiras nos deslizamentos significantes.

Desse modo, são ofertadas possibilidades à criança, permitindo a ela fazer ou refazer o laço social por meio de um Outro mais acolhedor e menos ameaçador. A fala pode ser dirigida, denotando um endereçamento, nem sempre com uma interpretação alienante, mas que delimite espaços, objetos, apaziguando a criança e regredindo progressivamente o gozo do Outro real. Sem perder de vista a subjetivação do sujeito, Faria (2006, p. 151) evidencia dois aspectos: “o da alteridade vigente no imaginário, o Outro que oferece continência e continuidade à via da estruturação; e o da alteridade simbólica, que presentifica um Outro barrado”; este seria um posicionamento daquele que se ofertaria no tratamento destas crianças, colocando-se como um “parceiro”.

Atentando aos mínimos detalhes, o parceiro sustentaria a criação de um sujeito, de modo a lhe permitir defender-se do Outro absoluto, construindo novos laços a partir da presença de um Outro simbólico barrado, que reconhece o sujeito sem engolfá-lo.

momentos, os casos parecerem impossíveis, Rosine acreditava ser possível uma operação analítica, na medida em que, ao levar em conta a presença de um sujeito, uma

“leitura” do real – mesmo apresentando-se como o impossível de se escrever – como dimensão da verdade seria possível, a partir da verdade que se apresentava. Afinal, no simbólico, as palavras não se limitam a rotular as coisas, como o discurso capitalista pretende na violência do uso limitado da linguagem ao útil, pois ele ultrapassa a relação biunívoca e inclui o equívoco que permite que os significantes sejam vergados em todos os sentidos. Teixeira28 esclarece que

embora tudo pareça indicar que o uso da linguagem esteja direcionado e limitado por alguma espécie de ordenação representativa, sabemos, por outro lado, que a linguagem, por si só, não está limitada por esse modo de ordenação. A linguagem se revela antes, conforme assinala Pierre Bourdieu, como um “primeiro mecanismo formal cujas capacidades gerativas são ilimitadas”, no sentido em que não há nada que não se possa dizer e que se pode dizer o nada.

Temos, então, dois pontos importantes: 1) o tratamento do Outro absoluto por um Outro mais acolhedor, que dispõe e oferece o simbólico pela linguagem; e 2) a presença de um saber suposto pelo Outro, psicanalista. Parece, à primeira vista, que tais pontos caminham em direções opostas, mas não é o que ocorre na “Clínica de Rosine”.

Há que se considerar tais direcionamentos, uma vez que não se pode esquecer que o trabalho com crianças precisa evidenciar o sujeito em constituição. Apesar de não ter um material recalcado a ser subvertido, isso não impede que uma operação norteada pela psicanálise se efetue.

A posição da criança Nádia foi trazida para o campo simbólico, pois suas ações ganharam, em Rosine, estatuto de apelo, ou seja, foram tomadas como tendo uma significação para além da pura necessidade. Assim, ao se ver compelida a ajudar a pequena criança, Rosine entendeu que seria necessário doar seu próprio corpo como

28 TEIXEIRA, A. Psicanálise e ideologia: a violência da representação, 2009, (texto inédito).

objeto e, ao mesmo tempo, como lugar do Outro. Como uma maneira de deixar a criança ecoar no seu corpo e assim tentar ouvir o apelo de Nádia, Rosine (1951-1984) relatou que

Nádia me coloca num lugar onde ela me demonstra o caráter real de meu corpo.(...) É deste lugar que eu vou me deixar interpelar por ela, escutar o que ela tem a dizer, dizer a morte para poder viver; (...) a me colocar no diapasão de seu drama, a lhe permitir bascular em minha direção a um lugar onde seu drama pode se dizer e ser ouvido. (...) É preciso que eu esteja presente e que eu encareça o seu gesto pelo que eu lhe digo, para que um sentido comece a emergir (p. 11).

Rosine demonstrou, neste momento inicial do tratamento, um posicionamento marcante em relação à criança. Ela considerou que a menina precisava de uma escuta diferenciada da que havia tido até o momento, frisando a importância de responder às interpelações da criança de uma maneira a lhe conferir sentido e acolhimento. Rosine entendia que a criança precisava, primeiro, de um gesto dirigido que, permeado de significação, trouxesse a palavra para ela, permitindo a linguagem circular fora do que antes ficava restrito ao mecanicismo das ações já rotineiras das cuidadoras da Fundação, que se transformaram, para a criança, numa ausência de sentido simbólico, o qual envolve uma relação de afetamento, para além de suprir as necessidades fisiológicas.

Na tentativa de situar a criança num campo simbólico, a psicanalista procurava interpretar os movimentos de Nádia, deixando “ressoar” o que a criança poderia querer dizer, retornando esse gesto de escuta em ato de fala29. Considerando as manifestações da criança como pertencentes ao registro da “interpelação”, transpunha-as, assim, para outro registro: da imaginarização do real na direção da simbolização30.

O corpo, para Rosine, era convocado nas sessões com as crianças. Sua massa

29 Mais à frente discutiremos sobre esse “ressoar”, quando abordarmos a pulsão invocante.

30 Articulando manifestações dela e da criança, colocava-as em série, da qual se podia deduzir uma lógica, um saber concatenado em laço: quando a menina reclamou a mamadeira, Rosine dá a mamadeira, quando percebia um mal-estar, Rosine se afastava, ou se aproximava, caso percebesse não estar ultrapassando os limites da criança; enfim, conferia ao funcionamento da menina um sentido inserido e

corpórea, ainda que fosse também um obstáculo real, era também um material de uso, palco oferecido para a figurabilidade lúdica, um objeto nas mãos das crianças que ficava marcado por essas intrusões. Através da passagem pelo imaginário, Rosine trabalha com o campo simbólico: ao incluir na trama a humanidade da linguagem, retira do limbo do real um sujeito invadido por um gozo de um Outro, percebido só como invasivo, sem faltas, todo, através da inundação alienante pela qual congelava a pequena criança numa posição fixa. Ao que parece, a criança precisava da apresentação de um Outro distinto do que ela vivenciara até então.

O tratamento, talvez, passasse por essa via em que, supondo a existência ou a não existência de uma inscrição primitiva, seria necessário a marcação de um traço numa resposta distinta da que estava se efetuando, de modo a promover uma “leitura”

para os movimentos da criança, apostando no sujeito pulsional, marcando seus atos e permitindo novos laços. Essa leitura é que parecia precisar de mudança do lado do Outro, o que justifica, assim, o que Colette Soler (2007) denomina Tratamento do Outro. A autora, ao sublinhar o posicionamento de Rosine como configurado neste lugar de uma apresentação retificada do Outro, afirma:

Mais precisamente, pelo ímpeto de uma vontade, que mais denota a veleidade. Cabe chamar essa vontade de injustificável, no sentido em que as justificações nunca provêm senão do saber do Outro. É uma vontade que parte da barra sobre o Outro (p. 144).

Quanto ao corpo, Rosine se ofereceu como um terreno e este lugar funcionou como uma espécie de receptáculo em que a criança, ao passar, deixou uma deformação, uma marca. A psicanalista não foi somente uma espécie de porta-voz da criança, exercendo uma mera tradução: ela acolhia e se aderia às manifestações da criança, de modo a devolver para ela demarcações precisas por meio de interpretações. A psicanalista se colocou como Outro simbólico, que suporta, oferece possibilidades, mas

não sabe tudo. Soler (2007) faz outras perspicazes observações e frisa que

Trata-se de suportar muitas coisas: que lhe enfie os dedos na boca, que lhe jogue água em cima... Em suma, ela empresta seu corpo, mas sempre com o postulado da transferência, isto é, que a gesticulação fale com ela e que, portanto seja articulada e decifrável. (...) ela é um Outro que fala, e que considera, inclusive, que a iniciativa da fala está do seu lado (p. 135).

Dessa maneira, Lefort possibilitou um descongelamento da criança nessa nova construção de um laço social que refizesse uma ligação dos dois registros, real e imaginário, ao simbólico. É o que vemos ao longo do caso, bem como de outros conduzidos por Rosine. Como as enfermeiras se limitavam a fazer seu trabalho somente pela via de suprir as necessidades, Lefort buscava inscrever outra maneira de lidar com o bebê, estabelecendo um laço, retirando-o de um estado de congelamento, configurado numa posição de sofrimento.