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5 A FAMÍLIA CAMPONESA E SEU COTIDIANO NO SÍTIO CARRETÃO

5.1 O SISTEMA DE PRODUÇÃO FAMILIAR

5.1.2 A pecuária

Tendo em vista o alto grau de incerteza inerente à produção agrícola, a secular tradição no criatório de animais e os estímulos governamentais realizados a partir de 1970, a pecuária firmou-se como a atividade produtiva com maior destaque entre os agricultores familiares no Semiárido. No Carretão isto não é diferente. Nos dias de hoje, mesmo com três anos de seca, é

raro ver uma casa que não tenha um chiqueiro com algumas cabeças de caprinos, ovinos ou gado bovino. Segundo Arthur, o morador mais idoso do Sítio Carretão, a grande diferença de hoje para os tempos de sua mocidade, no que se refere à produção agropecuária local, é que antes não existia uma grande quantidade animais pastando pelas catingas de propriedade dos pequenos criadores.

FOTO: Klenio Costa (2013)

Figura 21 (5) – Pecuária extensiva de caprinos

No Carretão, a criação pecuária é uma atividade semiextensiva. Nesse sistema, os animais são soltos no início do dia e confinados ao entardecer, permanecendo presos em currais ou chiqueiros no período da noite e parte da manhã, sobretudo, em razão dos roubos de animais. Além disto, os criadores mantêm áreas de confinamento para aqueles animais destinados à engorda.

No geral, a criação pecuária no Sítio destina-se à produção de carne. O sistema de comercialização é baseado na venda dos animais para atravessadores que residem na região e revendem os animais nas feiras, principalmente em Dormentes. Todos os entrevistados reiteraram que não vão à feira comercializar a produção, tanto os grãos como os animais são sempre negociados com os comerciantes locais. Estes atravessadores podem ser um vizinho ou parente com mais recursos financeiros e meio de transporte para fazer o carreto dos animais até a feira. A explicação de Mariana acerca da comercialização de suas criações é esclarecedora e pode ser generalizada para os demais moradores do Carretão:

Um dia desses mesmo eu vendi cinco cabeças e amanhã é dia de receber o dinheiro dessa criação que eu vendi. (...) Eu vendo a um rapaz aqui. Ele é tio dos meus meninos. Era primo de meu marido. Ele compra e leva para Dormente. Eu mesma não, nunca fui lá. Essas coisas assim, eu não bulo essas coisas não. Eu vendo para ele, ele leva para Dormente. Depois, por exemplo, se ele leva hoje, e as pessoas compram, tem vezes que ele paga logo hoje, se não pagar hoje, paga de hoje a oito (Mariana).

A infraestrutura para a produção pecuária é simples, consiste apenas em currais e chiqueiros, que são cercados de madeira. No caso dos caprinos, existe também uma estrutura coberta de telhas para proteger os animais mais novos do sol. As áreas de pastagem na Caatinga não são cercadas. Para que a criação não se misture ao rebanho dos vizinhos, animais são marcados a ferro. Os materiais e equipamentos para o manejo pecuário são manuais, porém há presença de triturador elétrico para o preparo da ração.

A Caatinga nativa é a principal fonte de alimentação para a maioria dos rebanhos. No entanto, durante a época seca, o uso desta vegetação como única fonte alimentar limita o potencial produtivo dos rebanhos. Assim, para a época de estiagem, os criadores buscam cultivar pastagens e forragens para superar a falta de alimento nativo. Além disto, na seca os animais recebem alimentação complementar à base de milho e outros farelos. Essa suplementação é fundamental para que os animais não percam muito peso ou morram de fome entre as estações chuvosas.

O capim-búffel é a principal forragem exótica plantada pelos agricultores do Carretão para alimentar o rebanho. Esse tipo de capim, destacam Eduardo e Nicolas, é altamente adaptado às condições climáticas do Semiárido. “A vantagem do capim-búffel é que quando

você pensa que a roça de capim está morta é só acontecer uma chuva que com quinze dias o bicho já está de barriga cheia” (Nicolas). O agricultor destaca também que as lavouras de búffel

são realizadas em terrenos mais pedregosos, que são inapropriados para os cultivos alimentares, o que otimiza a área produtiva dos sítios. Tal como o roçado, o búffel é plantado no inverno e no verão a pastagem é liberada para o pastejo direto ou o agricultor faz ensilagens.

No sítio, a água para os animais é garantida a partir dos barreiros. Mas, no período em que os barreiros secam, o rebanho passa a consumir a água disponível nos açudes comunitários ou nos poços de profundidade. Alguns criadores, aqueles cuja propriedade compreende um baixio ou leito de rio, usam escavar cacimbas para ajudar o gado a “escapar”. No momento em que a seca se torna mais grave, os agricultores começam a se desfazer dos animais deixando seus rebanhos com um número de cabeças que consideram capaz de manter ao longo do período de estiagem. Como último recurso, alguns criadores dividem a água de suas cisternas com os

animais, compram carradas de água para encher os barreiros ou transferem o rebanho para outras localidades que disponham de água.

No que toca à questão da sanidade do rebanho, os criadores vacinam seus animais contra a raiva e a febre aftosa e fazem vermifugação. Na ocorrência de alguma doença grave, com sintomas desconhecidos, o mais comum é que os agricultores consultem um médico veterinário em lojas especializadas na venda de produtos para o produtor nas cidades de Dormentes ou em Petrolina. O IPA em Petrolina só conta com um veterinário para atender todo município, essa deficiência em pessoal desestimula os agricultores a buscarem soluções para suas questões neste órgão público.

O princípio da multiprodução também é aplicado à produção pecuária. O rebanho do agricultor camponês não consiste no criatório de apenas um tipo de raça ou espécie de animal. Os ovinos, caprinos e o gado bovino, por possuírem tempos e capacidade de recria, engorda e valorização distintos, são criados pelos agricultores de modo articulado, visando garantir a constituição de um fundo de consumo e comercialização o mais diversificado possível. O caso da criação de ovinos e caprinos é um exemplo representativo.

A caprinovinocultura é uma atividade de destaque em todo Semiárido pela excepcional capacidade de adaptação destes animais às condições adversas da região. Essa excepcionalidade, como explica Pedro, diz respeito à capacidade deste rebanho de ser tolerante às altas temperaturas, à pouca disponibilidade de água, ao baixo consumo de alimentos e de possuir uma boa capacidade de engorda. Em relação ao gado bovino, os ovinos e caprinos se destacam ainda mais, pois a alimentação e a quantidade de água necessárias para a manutenção de uma cabeça de gado é suficiente para que o produtor mantenha dez cabeças de ovinos e caprinos.

Por outro lado, comparados entre si, caprinos e ovinos apresentam diferenças que servem de motivos para que os agricultores diversifiquem sua criação. Pedro destaca como a principal virtude dos ovinos o fato de que estes animais possuem uma capacidade de produção de até dois borregos por fêmea ao longo de um ano. Essa capacidade de procriação, com aproximadamente duas estações reprodutivas em um ano, é um fator muito significativo quando se pensa no abastecimento do crescente mercado de carne de ovinos na região do Sertão do São Francisco. Entretanto, os ovinos são animais mais suscetíveis às condições climáticas, à escassez d’água e a doenças.

Em contraponto, as cabras e bodes são animais mais rústicos e, portanto, melhor adaptados às situações climáticas extremas. Já do ponto de vista da capacidade de procriação, os caprinos não se destacam, a média é de um nascimento por fêmea ao ano. Estes pontos fortes e fracos, dependendo das intenções do criador, fazem com que os rebanhos possuam proporções distintas de cada animal/espécie.

Também há uma preocupação dos agricultores na realização de melhoramentos genéticos de seus rebanhos. Em visita à III Feira de Caprinos da comunidade do Caroá - Expocaroá (comunidade vizinha ao Carretão), Pedro explicou que nestes eventos os expositores, grandes e pequenos criadores de ovinos e caprinos, apresentam a excelência genética de seus animais. Pelo aprimoramento e pela obtenção de novas raças por cruzamento, os criadores sempre buscam alcançar animais precoces, com grande produção leiteira e alto rendimento e qualidade na produção de carne.

Feiras de animais como a realizada no Caroá se tornaram oportunidades de negócios e diversificação do plantel de caprinos e ovinos. Para além das vendas e compras de animais, estes espaços são oportunidades para que aconteçam trocas de experiências entre os criadores sobre a criação pecuária. Por serem eventos sociais com grande apelo entre os criadores, estes espaços servem também para que extensionistas e pesquisadores façam a difusão de novas práticas e manejos agropecuários.

As entrevistas e observações que foram feitas mostram que não é simplesmente a

tradição o elemento que explica a decisão em adotar ou desconsiderar o desenvolvimento de

certas atividades produtivas. Do mesmo modo que essas conversas também esclareciam que não é o rendimento monetário auferido por estas atividades que vão influenciar a decisão dos agricultores em optar por um determinado tipo de criação. Mas o fato das decisões não serem tomadas em consonância com a lucratividade, não significa que camponeses estejam alheios ao comportamento dos preços no mercado.

Ora, todos os entrevistados no Carretão sabiam claramente que as diferentes espécies animais de médio porte (ovinos e caprinos) são valorizados e possuem produtividade diferenciadas. Com destaque para os ovinos, que tem o rendimento anual de duas crias, chegam ao ponto de abate com seis meses na engorda e a carne é preferida pelo consumidor urbano por ser macia. Apesar de sua maior rentabilidade, os moradores do Carretão não substituíram completamente a criação de caprinos por ovinos.

Reiteradas vezes ouviu-se dos agricultores que as ovelhas são “um bicho doido” e, sendo assim, preferiam criar caprinos:

O bode sabe ir e voltar. Você solta ele de manhã, umas 7 horas. E quando é de tarde ele já volta todinho. Umas 4 horas, 6 horas, eles vem chegando. É sabido. Agora a ovelha é doida. A ovelha não vem, não. Só algum lugar que pode ser que venha, mas aqui mesmo nós tínhamos uma e nunca soltemos. Se soltasse... nós já estamos velho, soltar pra dentro dos mato e aí nós não “soltava” de jeito nenhum. E aí não tinha comida na roça, o único jeito foi vender (Manuela).

Por de trás desta tipificação, tem-se que os ovinos demandam uma estrutura produtiva distinta daquela empregada para as “criações”. A doidice das ovelhas e carneiros está relacionada ao fato de que estes animais não podem ser criados soltos, pastando na Caatinga, pois eles não adquirem o hábito de retornar ao fim do dia para o chiqueiro. Assim, considerando que as áreas de pastagem na Caatinga não são cercadas, muitos animais podem ser perdidos. Além disto, a capacidade de engorda destes animais em pastagens naturais, sem qualquer tipo de manejo (raleamento, adubação, etc.), é baixa. Tendo em vista estas questões, o criatório de ovinos exige que o agricultor construa apriscos, faça criação intensiva, cultive pastagens, forrageiras, etc., para conseguir produtividade e rentabilidade que este negócio exige.

Nestes termos e em razão das circunstâncias climáticas, a dedicação exclusiva ao criatório de ovinos é contraproducente para os agricultores do Carretão. O desenvolvimento intensivo da ovinocultura, com todos estes riscos, deixaria a família de agricultores à mercê de empréstimos bancários, da demanda do mercado e dos preços de outros produtos agropecuários, pois o investimento na produção especializada, tal como todas as outras atividades, correm o risco de colapso por conta das secas.

Está descrição comentada do criatório pecuário apresenta, mesmo de maneira pontual e resumida, que, como a generalização de espécies animais (ovelhas) e técnicas de manejo modernas (pastagens exóticas), até entre os camponeses da área de sequeiro, a lógica monetária e do cálculo econômico “racional” existe e é aplicada. Essa presença, torna impossível afirma que tais pessoas seriam “alheias” ao mercado ou agentes conservadores que estão fortemente apegados a “tradição”. A análise desta prática social, a luz da noção de habitus, possibilita ver que o comportamento “econômico” ou o espirito de cálculo do camponês no Carretão consiste em uma imbricação entre as condicionantes socioambientais, a concepção utilitarista da produção agropecuária e a centralidade da grupo doméstico.

A prioridade na reprodução da família conduz ao que Bourdieu define como uma orquestração sem maestro das práticas e das estratégias do projeto familiar. Ou seja, a reprodução da família camponesa por ser o elemento que subordina e impulsiona todas as práticas sociais, acontece em função de um conjunto de disposições internalizadas e naturalizadas, que são históricas, e estão em relação dialética com elementos circunstanciais.

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