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5 A FAMÍLIA CAMPONESA E SEU COTIDIANO NO SÍTIO CARRETÃO

5.1 O SISTEMA DE PRODUÇÃO FAMILIAR

5.1.3 O quintal

O quintal é o espaço onde homens e mulheres vivenciam e trabalham a produção e a reprodução da unidade familiar. Este é lugar no qual as crianças mais novas brincam, assistem e até reproduzem no “faz de conta” o trabalho nas atividades da casa e na agropecuária, realizados por seus irmãos mais velhos, pais, tios e avós. Portanto, no âmbito do simbólico, o quintal é um espaço que emerge na memória dos agricultores camponeses como lugar do acolhimento familiar, da alegria e das tristezas, das conversas entre vizinhos e parentes; é também o lugar das lembranças do trabalho, das brincadeiras e dos festejos.

Neste espaço, os membros da família executam tarefas de modo distinto ou em cooperação para cumprir as atividades da jornada de trabalho diário. Este setor do estabelecimento agrícola é a ligação entre a casa e a atividade agropecuária. Nele são realizadas atividades complementares e essenciais ao sistema produtivo familiar. No “ao redor” da casa, são cultivadas plantas para vários fins: alimentares, condimentares, ornamentais, etc., e criados animais domésticos de pequeno porte: galinhas, patos, porcos, passarinhos e cachorros. O quintal é também o espaço onde estão armazenados a lenha e os insumos para as atividades agropecuárias, e é onde se prepara a ração e a ensilagem dos animais.

Apesar de ser uma área pequena do estabelecimento agrícola, este espaço é fundamental para a construção da segurança hídrica e alimentar das famílias camponesas. No Carretão, todas as cisternas para o abastecimento da família estão instaladas no quintal. O fato de estarem tão próximas às casas significa um alívio para o trabalho da família, pois a cisterna representou, especialmente para as crianças e mulheres, o fim do extenuante trabalho de transportar água, por centenas de metros, dos barreiros ou açudes até em casa. Guilherme resgata de suas memórias como era essa atividade:

quando eu era meninote grande, eu ia pegar água nos barreiros ali ainda. Para você ver a situação, o cabra chegava nas cacimbas e estava dentro d’água o cururu e as bostas. [Todos eles] amanheciam boiando nas águas. O cabra atingia os cururus e só

fazia abanar a merdas de um lado para o outro para [depois] encher as vasilhas (Guilherme).

Certamente, considerando a fala de Guilherme e as observações realizadas, a instalação das cisternas, caixas d’água, banheiros, fossas e bombas de água elétricas constituíram para a família de agricultores uma maior qualidade de vida.

Sobre a segurança alimentar é fundamental reconhecer que o quintal possui um papel importante no fornecimento de alimentos para casa. O manejo dos grandes, médios e pequenos animais fornece leite, carne e ovos para o consumo da família. A produção realizada no quintal permite enfrentar diretamente qualquer necessidade do grupo doméstico, seja relacionado ao consumo ordinário ou receber uma visita inesperada. Por outro lado, se estes produtos forem vendidos aos vizinhos, nas feiras ou a atravessadores, eles geram rendimentos em dinheiro que vai ser empregado na compra de mantimentos de fora do sítio ou administrado em uma emergência médica.

Nos últimos anos, o sistema produtivo do quintal no Carretão vem se transformando. A mudança em curso está modificando o quintal para que este se torne uma fonte geradora de rendimentos monetários. Acontece que, desde 2010, alguns moradores vêm adaptando o espaço do quintal para que nele seja desenvolvido a avicultura com fins comerciais, voltada para a produção de ovos e galinhas caipiras para o abate.

Essa atividade econômica surge por influência de cursos, palestras e visitas a unidades demonstrativas, realizados por órgãos como o IPA e a EMBRAPA, a partir da experiência acumulada previamente na criação de galinhas de capoeira e do reconhecimento pelos agricultores de que existe um mercado urbano ávido por consumir produtos artesanais do campo. Dessas trocas de experiências e confluência de ideias é que o criatório de galinhas caipiras toma fôlego. A materialização desse projeto ocorre no momento de crise produtiva e ambiental, quando alguns agricultores conseguem acessar linhas especiais de crédito, tais como Pronaf Seca e o Brasil Sem Miséria. Essa disponibilidade financeira viabilizou a concretização desta transformação.

Tradicionalmente, a criação de galinha de capoeira é realizada nas unidades agrícolas familiares do Carretão sob a forma de exploração extensiva. Neste modo, as aves vivem soltas pelo terreiro e as práticas de manejo são mínimas, sobretudo, no controle dos aspectos reprodutivos, nutricionais e sanitários. Desta forma, a criação não alcança volume e

produtividade para abastecer com regularidade mercados, mas estas aves são eficientes no fornecimento de carne e ovos para o consumo familiar.

Diferente das galinhas de capoeira que são para o autoconsumo, a criação de galinhas caipiras está voltada para a comercialização. Isso suscita para os agricultores modificações profundas no manejo das aves. Em primeiro lugar, a criação passa a acontecer de modo semiextensivo, os animais ficam acomodados no quintal em um galinheiro, contam com uma área coberta e dispõem também de um espaço para ciscarem. As especificidades não param por aí. Se a criação pretende alcançar uma escala comercial e manter um fluxo regular de entregas em um ponto de consumo, é necessário que: o agricultor adquira pintinhos em empresas especializadas, em intervalos de quinze dias; que a alimentação seja balanceada para as diferentes etapass de crescimento da ave; e que o agricultor tenha um suporte técnico especializado.

Ao adotar essas práticas de manejo, o agricultor reduz problemas comuns à criação de galinhas de capoeira: a alta taxa de mortalidade das aves, o baixo desempenho de engorda. Consequentemente ele consegue melhorar a performance produtiva desta criação. Caso o agricultor atenda a todos estes padrões de criação, em aproximadamente 100 dias, ele já pode começar a entregar animais com o peso (aproximadamente de 2,5 kg) e textura da carne preferidos pelo mercado. Os principais compradores deste produto em Petrolina são restaurantes que, em alguns casos, firmam contratos de fornecimento com agricultores.

A criação de galinhas caipiras é uma opção de geração de renda interessante. No Carretão um frango abatido e limpo, com um peso de 2,5kg, é comercializado ao preço de R$ 22 reais. Quando o produto é vendido ao PAA, o preço por unidade passa para aproximadamente R$ 30 reais59. A criação de aves é relativamente simples e em termos de

trabalho é pouco dispendiosa. Por serem animais de pequeno porte, as aves bebem pouca água e se alimentam pouco, quando comparadas a outras criações. Os maiores cuidados que o produtor deve ter são com a alimentação diária, que deve ser balanceada, e com as condições sanitárias do galinheiro.

59 Diferente da carne de gado bovino e caprino, o frango pode ser abatido e entregue pelo agricultor ao PAA sem

Entretanto a avicultura comercial de galinhas caipiras, por suas especificidades, leva o agricultor a tornar-se extremamente dependente de insumos externos a sua propriedade. Segundo Guilherme, a manutenção de um sistema de produção com um grau de dependência externa tão alto, como é a avicultura comercial, em que é sempre necessário que se disponha de dinheiro para comprar pintinhos, ração balanceada e remédios, sem a certeza da comercialização com bons preços do produto, é uma situação que não pode ser sustentada por qualquer agricultor. Nestes termos, a criação avícola conforme determina o protocolo de criação prescrito pela empresa fornecedora é inviável.

Diante das restrições impostas pelo modelo de criação comercial e não tendo a obrigação do fornecimento de frangos em quantidade, percebe-se que em seus criatórios os agricultores do Carretão adotam apenas parcialmente o manejo indicado para as galinhas caipiras. Parcial porque muitos criadores vão inserindo para as galinhas caipiras algumas práticas já executadas na criação das galinhas de capoeira, sobretudo, no que se refere à alimentação.

Um exemplo disto é estratégia desenvolvida por Guilherme em sua criação de aves caipiras. Segundo esse criador, a principal dificuldade para ingressar na produção avícola comercial diz respeito ao elevado grau de artificialização que o criatório exige. Essa artificialização da produção se expressa na desconexão entre a realidade produtiva de seu sítio e as demandas por insumo exigidas pelo modelo. Para Guilherme, em sua atual condição, assumir esse padrão de produção altamente profissionalizado é inviável.

A percepção de Guilherme é a de que o criatório de galinhas caipiras pode vir a se tornar uma armadilha para sua autonomia e, assim sendo, ele opta por não dedicar sua produção integralmente ao mercado, por exemplo, não se tornando fornecedor de frangos para restaurantes. O agricultor reconhece que tal medida o faz perder oportunidade de garantir a compra e bons preços para o seu produto. Mas, por outro lado, não o coloca em uma situação de dependência.

A desistência do grande mercado não é algo definitivo. Guilherme reconhece as possibilidades da avicultura e trabalha no desenvolvimento de meios para reconectar a produção avícola com os processos produtivos locais. Nesse sentido, ele tem buscado trazer a realidade da produção avícola para o nível local, experimentando modificar a alimentação que fornece às aves. Baseado na experiência do criatório de galinhas de capoeira, o agricultor passou a incorporar ração que oferece aos frangos caipiras, a saber, maniçoba ou palha de milho triturada.

A adição destes alimentos, disponíveis com relativa abundância em sua propriedade, possibilita que Guilherme deixe de gastar na compra dos farelos de soja e trigo que são misturados na alimentação das aves e da ração industrializada. A partir de ensaios de tentativa e erro, o agricultor conseguiu formular uma ração, à base de maniçoba, que mantém o desenvolvimento de cem dias dos frangos caipiras, sem que o produto final tenha alguma diferença no padrão esperado pelo mercado (Figura 22).

FOTO: Klenio Costa (2013)

Figura 22 (5) – Galinhas caipiras comendo a ração preparada à base de maniçoba

A exemplo da produção pecuária e da multiprodução agrícola, as decisões de Guilherme sobre o criatório de galinhas caipiras expressam que o comportamento produtivo do agricultor familiar no Carretão não é exclusivamente para a produção de autoconsumo e alheio ao mercado. Entre estes agricultores, são percebidos uma leitura do mercado e conhecimento daquelas atividades que são mais lucrativas e rentáveis. Contudo, por dominarem um saber prático a respeito das relações de comercialização e estarem sob a influência de variáveis como a seca, estes agricultores não se permitem uma integração ao mercado tal como aquela observada nos agricultores familiares que lavram a terra nos projetos de irrigação.

De um modo geral, os agricultores do Carretão prezam, na elaboração de suas atividades agropecuárias a constituição de um sistema de cultivo e pecuária com múltiplas possibilidades, tanto naquilo que diz respeito à relação consumo/comercialização como na diversidade agrícola e pecuária. Isso acontece porque as escolhas realizadas por estes camponeses tem como referente o consumo socialmente necessário e o objetivo de atender as expectativas imediatas e no longo prazo da família.

Esta forma de configuração produtiva da unidade doméstica é fundamental para assegurar a sua autonomia. Pois, por um lado, ela garante à o controle sobre uma de suas necessidades vitais, a alimentação. Produzir para comer significa minimizar a exposição da família às relações mercantis. Assim sendo, a produção para o autoconsumo coloca sob o controle do agricultor camponês o seu destino histórico. Por outro lado, produzir para o autoconsumo e, concomitantemente, desenvolver atividades produtivas comercializáveis (não perdendo de vista a venda da força de trabalho fora do sítio) contribuem para uma diversificação das fontes de segurança que a família tem para se apoiar em situações de crise.

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