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A Pena que Risca: Linhas em Colapso; Linhas em Fuga

3 SOB O SIGNO DA PAIXÃO

3.3 ABISMOS

3.3.1 A Pena que Risca: Linhas em Colapso; Linhas em Fuga

O Luvas de Pelica (1980) inicia-se com referências e alusões recorrentes ao olhar, ao ato de ver, a partir das artes visuais. Essas alusões constituem-se também como expansão da metalinguagem, à medida que a reflexão não se restringe somente à escrita verbal, mas refere-se à arte de um modo mais amplo ao abarcar o desenho, a pintura e a fotografia.

Não escrevo mais. Estou desenhando numa vila que não me pertence. Não penso na partida. Meus garranchos são hoje e se acabaram. “Como todo mundo, comecei a fotografar as pessoas à minha volta, nas cadeiras da varanda.” (LP in Poética, 2013, p.55). É como se o abismo existente entre as palavras e o que se vê precisasse ser pensado e, para irmos mais longe: experienciado. É a partir da constatação dessa necessidade que surgem os experimentos de Ana C. com o desenho e o Caderno

de Portsmouth (1980) como um projeto acabado, apesar de publicado

postumamente.

Apesar de as questões espaço-temporais, no livro, apresentarem-se de forma fugidia e fragmentária, identificamos em mais de um momento a voz poética referindo-se às artes plásticas ou mesmo localizada em uma galeria de arte: “faço um pato opaco, inglês, num parque sem reflexo da vitrina que apaga, devagar (circulo sozinha pela galeria), tela a tela, o contorno da cidade;” (LP in Poética, 2013, p.57). Existe, portanto, uma reflexão sobre as artes visuais além de uma constante contraposição do elemento gráfico com plástico que nos remete a Foucault, em seu ensaio Isto Não é um Cachimbo (2014), no qual reflete sobre a obra de Magritte intitulada: “A traição das imagens” (1928-1929). A reflexão de Foucault direciona-se para uma espécie de filosofia da linguagem, como consequência das próprias composições pictóricas de Magritte.

Na seção “Visita à oficina”, do Poética (2013), que surgiu a partir da pesquisa do poeta e compositor Mariano Marovatto, no arquivo do Instituto Moreira Salles, podemos encontrar um escrito intitulado “un signal d’arrêt” que se inicia com os seguintes versos:

Aí eu te digo diante do teu traço de puro reflexo: “Em vez de escrever, simplesmente”

Eu te digo que não vejo no reflexo onde está o desejo de traçar para quem você quer ter.

Como se eu estivesse desenhando. (CESAR in Poética, 2013,

p.417).

O ecrito supracitado, que data de 1980, mesmo ano de publicação do Luvas

de Pelica, pode ser lido como uma reflexão poética a partir de um diálogo

estabelecido com o poeta e pintor belga Henri Michaux (1899- 1984). De expressão francesa, esse artista apresenta, além de suas composições poéticas, cadernos de viagens produzidos a partir de algumas experiências biográficas, e composições plásticas baseadas em suas experiências com drogas, mais especificamente com a mescalina. Além disso, a obra visual de Michaux apresenta-se em sua maioria a partir de pinturas abstratas que trazem também essa relação com o delírio, com a experiência do corpo ou ainda com uma pintura relacionada ao ideograma e, portanto, à própria escrita.

Em “um signal d’arrêt”, Ana C. estabelece uma espécie de conversa com Henri Michaux e com a sua poética. Há uma comparação de sua própria técnica de escrita com a técnica proposta pelo artista belga:

Mas como eu ia dizendo, aqueles problemas de técnica, a primeira, a segunda pessoa, não se resolve assim não, com fissura de manifesto ou de contar as obscuridades de Paris com flashbacks no Brasil, e furor escatológico, e massagens de cumplicidade, não, não é assim. Flash: um puxão na manga e o epistolário do século dezenove. Peço para Beth um papel de carta New York/ New York com estrelas prateadas: e olhos críticos. “Plus tard, le signes, certain signes. Les signes me disent quelque chose. J’en ferais bien, mais um signe, c’est aussi un signal d’arrêt. Or em ce temps je garde un outre désir, un pardessus tour les autres. E é por isso que não escrevo. (CESAR

in Poética, 2013, p.417).

O último trecho, em francês, corresponde a um excerto literal extraído do livro

Emergences-Résurgences: Les Sentiers de la Création (1972), espécie de manifesto

com reflexões autobiográficas e poéticas de Henri Michaux. Esse trecho, inclusive, aparece, parte em português, parte em francês e com alguns cortes sintáticos, no

Luvas de Pelica (1980). A questão central desse diálogo intertextual observado é a

de que se por um lado Ana C., em seu livro, estabelece relação com Michaux, a partir da composição de um diário de bordo que nos apresenta relatos desordenados de viagens, idas e vindas; por outro, no escrito poético acima, percebemos uma negação da proposta de Michaux que aponta para uma pintura e uma escrita da experiência, com a quebra da técnica em favor de uma arte espontânea.

Ao contrário da proposta de Michaux, Ana C. prezou por uma poética bastante pensada, como bem podemos observar a partir de sua obra póstuma composta de vários exercícios de tradução e reescrituras. Entretanto, o Caderno de

Portsmouth (1980) surge exatamente como um exercício de fuga da linguagem

verbal e da concepção de um trabalho incansável, infinito e rigoroso relacionado à escrita e, por isso, corresponde, em parte, a uma adesão à experiência poética idealizada e proposta por Michaux.

Figura 2 – Desenho de Ana Cristina Cesar

Fonte: CESAR, 2013, p. 214

No caderno, a poeta mantém esse diálogo a partir da experimentação de uma linguagem pictográfica, ou seja, que se encontra entre o desenho e a escrita, como analisaremos mais adiante. A pena que escreve é também a pena que desenha, como podemos observar, ainda, em um de seus desenhos publicado postumamente e reunido no Poética (2010), mas que data de 1980, e tem como referência:

“Portsmouth, Inglaterra”. Rabisco que se assemelha aos desenhos de patos descritos no Luvas de Pelica, de 1980 (ver Figura 2).