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3 SOB O SIGNO DA PAIXÃO

3.4 POÉTICA DO CAOS: A PALAVRA E OUTRAS LINGUAGENS

No Inéditos e Dispersos: poesia/prosa (1985), reunião póstuma de poemas de Ana C., encontramos os seguintes dizeres: “ Agora, imediatamente, é aqui que começa o primeiro sinal do peso do corpo que sobe. Aqui troco de mão e começo a ordenar o caos. “ (ID in Poética, 2013, p. 303). Nessa anotação poética, ou mesmo nesse poema em tom prosaico, há tanto a presença de uma escrita do instante que se realiza a partir dessa extensão corporal direta, quanto se afirma essa ânsia de ordenação do caos, da qual nos fala a voz poética, e que aponta para essa contradição tão presente na poesia de Ana C.: de um lado o caos, a palavra errante e um ritmo aparentemente espontâneo, de outro a prática da escrita constante e incansável, a escolha tão cuidadosa dos poemas a serem publicados e a exigência estética. Esse poema e essas colocações nos remetem, ainda, à obra O Escorpião

Encalacrado: A Poética da Destruição em Júlio Cortázar (2003), do crítico literário

Davi Arrigucci Jr.. Para além das singularidades da obra de Cortázar, Arrigucci (2003) traz importantes contribuições para pensarmos o objeto estético, a literatura,

e a própria função da crítica literária. Além disso, o direcionamento do autor para a realização de uma crítica de viés intersemiótico, ao pensar seu objeto a partir da relação com diversas linguagens artísticas, encontra-se em confluência com nossa proposta na presente pesquisa.

Arrigucci (2003), em sua análise, nos apresenta duas figuras importantes que são desenvolvidas como espécies de conceitos-chave para sua investigação: a figura do labirinto; e a da destruição. O labirinto evoca a ideia de uma poética que reflete sobre si mesma ao apresentar um movimento descentrado a partir de uma progressão não linear que não avança - esse conceito tem relação com a ideia de vertigem, aqui desenvolvida, presente na obra de Ana Cristina César -. Já o outro conceito do autor, apresenta-se enquanto desdobramento do primeiro, ou seja, a obra vertiginosa que culmina em sua autodestruição. Essa obra fragmentária, portanto, se autodestrói através de procedimentos literários os quais o autor do ensaio procura evidenciar – e que não nos interessa aprofundarmos na presente pesquisa -, em detalhes, em relação ao seu objeto (a obra de Júlio Cortázar). No caso da poesia de Ana C., essa destruição se dá de semelhante maneira, enquanto procedimento estético, e constitui-se a partir de alguns aspectos específicos, a exemplo da destruição de um eu-lírico claro e bem definido, destruição de um foco temático e de um ritmo regular e harmônico, como podemos observar, no poema seguinte:

Por que escreve e rasga a fogo o que te dei e arrisca

meu nome na roleta?

Por que esta exposição à luz? Espero que me liguem

A algum pedaço de terra. Aqui no fundo do horto florestal ouço coisas que nunca ouvi, pássaros que gemem. Aguço o ouvido.

Peço para mim mesma que ligue, ligue, ligue os aparelhos surdos que só fazem som e tomam o lugar clandestino da felicidade.

Preciso me atar ao velame com as próprias mãos. Sopra fúria.

(ID in Poética, 2013, p.291).

O poema acima, apesar de não datado, faz parte de uma série de poemas de 1983 (ano de morte da poeta) nos quais a imagem da perda de controle do velame

se repete algumas vezes. Para além de interpretações relacionadas ao momento de vida da poeta na época em que escreveu esses poemas, nos interessa considerarmos essa necessidade de se “atar ao velame com as próprias mãos”, como no verso do poema supracitado, uma certa busca – do ponto de vista semântico – por um centro; é como se a voz poética resistisse de alguma forma a entregar-se ao caos. Essa imagem funciona como uma metáfora da própria poesia de Ana C., que incorpora o caos enquanto procedimento, ou seja, uma simulação do caos intencional e elaborada a partir dos elementos já mencionados. E a esse respeito, nos reportamos novamente às palavras de Arrigucci (2003) acerca da obra de Cortázar, mas que cabem como fundamentação para uma análise de nosso objeto aqui em questão: “ O artista pode introduzir a desordem suficiente para um certo grau de abertura, mas não ultrapassar os limites de uma mínima organização, sem o que já não existiria obra.” (ARRIGUCCI, 2003, p. 27).

Apesar de Arrigucci (2003) apresentar suas análises referentes às especificidades da obra de Julio Cortázar e ao que ele chama de “concepção mitopoética da criação literária” do referido escritor – que, inclusive, diverge das visões mais formais, apresentadas por Ana C. -, interessa-nos traçar um paralelo em relação ao que o crítico literário defende enquanto uma visão porosa em relação às linguagens artísticas de modo geral, presente na obra e nas concepções do escritor argentino. A investigação da relação da obra de Cortázar com o jazz é fio condutor do desenvolvimento do ponto de vista de Arrigucci (2003). Nesse sentido, observamos essa porosidade entre as linguagens também na poesia de Ana C., não só pela coincidente relação com o jazz, mas também com as já mencionadas artes visuais. Vejamos, portanto, um outro poema da autora:

Escapa pela extremidade. Bênção.

Bênção para jamais. Vem de imediato, possível. Daí do campo se percebe com mais precisão, Agá?

Mesmo se não te escrevo uma resposta da cidade. Cais do porto. Arranhacéu

ondulando no óleo da água. Travessia do aterro em terceira para

a volta do circo: lenta

madrugada. Tua mão da minha perna exatamente como um repouso,

Moonlight serenade. Pequena tremura da mão. Travo de tresnoite.

Em que papel de seda posso pernoitar? Mamãe cercada dos

alunos. (ID in Poética, 2013, p.295).

O poema acima apresenta um campo semântico (formado por substantivos, verbos e advérbios) que aponta para uma ideia de movimento (“escapa”; “imediato”; “travessia”; “lenta madrugada”), ainda que esse movimento oscile entre um ritmo mais acelerado e um mais lento, que vai se afirmando com maior precisão ao final do poema a partir de versos como: “Tua mão em minha perna/ exatamente como um repouso,”. A mudança constante de um locus referente a um ambiente urbano é também procedimento frequente na poesia de Ana C. O que pretendemos destacar é, mais especificamente, essa relação do movimento de uma mudança temporal, do ritmo, com o próprio jazz, gênero musical que frequentemente aparece na obra poética de Ana C. e pelo qual a poeta mantinha grande apreço. No décimo quinto verso, a menção a “Moonlight serenade”, canção famosa, inicialmente instrumental, composta pelo americano Glenn Miller em 1939, funciona como uma espécie de trilha sonora do próprio poema e encontra-se em consonância com o sentimento melancólico e angustiado ao qual o mesmo parece aludir. Sobre a relação da literatura com o jazz, portanto, retomamos mais uma vez as palavras de Arrigucci (2003): “O jazz combate, transforma, irisa o tema em variações, em espirais sem conta, numa perseguição sem fim. ” (ARRIGUCCI, 2003, p.43). A relação da obra de Ana C. com esse gênero musical, portanto, fundamenta uma concepção da poeta voltada para uma visão da porosidade entre as linguagens, ou seja, não só a partir da relação da poesia com a música, mas também com outras linguagens, como já vimos, com a pintura, o cinema ou com o gênero dramático. Mais adiante, adentraremos na análise dos desenhos de Ana C. e buscaremos observar a relevância dos mesmos para a construção de uma poética fundamentada a partir da reconfiguração dos limites.

4 O CADERNO DE PORTSMOUTH (1980): SIMULACRO DE UMA ESCRITA