• Nenhum resultado encontrado

A percepção infantil e o tratamento do tempo

2. Voz de adulto e olhar de criança: narração e focalização em “Campo geral”

2.4 A percepção infantil e o tratamento do tempo

Devido à ampla acepção do termo narrativa, Genette ([197-]) desmembrou-o em três possibilidades. Em primeiro lugar, o termo pode ser entendido como “[...] enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos [...]” (p. 23). Narrativa designa também a história que é relatada, ou seja, “[...] a sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios [...] e as suas diversas relações de encadeamento, de oposição, de repetição etc.” (p. 24). Por fim, narrativa também significa “[...] o ato de narrar tomado em si mesmo.” (p. 24), isto é, a própria narração, o ato de enunciação.

A análise do discurso narrativo busca revelar as relações “[...] entre esse discurso e os acontecimentos que relata [...]” e, também, “[...] entre esse mesmo discurso e o ato que o produz.” (GENETTE, [197-], p. 25). Para organizar essas relações, Genette ([197-]) estabelece três categorias: tempo, modo e voz.

Para estabelecer as relações entre tais instâncias no que tange ao tempo, Genette divide essa categoria da narrativa em três aspectos: ordem, duração e frequência. Interessa- nos à pesquisa as proposições acerca da duração e da frequência.

A duração diz respeito ao estabelecimento de efeitos de ritmo na narrativa, marcados pelas diferenças – denominadas anisocronias – entre a duração do tempo da história e o tempo do discurso (ou enunciado), medido pela extensão do texto. A narrativa sem essas diferenças (isocrônica), em que as duas velocidades permanecem constantes, só existe hipoteticamente.

De acordo com Genette ([197-], p. 87), “[...] uma narrativa pode passar sem anacronias, mas não pode proceder sem anisocronias, ou, se se preferir (como é provável), sem efeitos de ritmo.”

Dessa maneira, a velocidade pode ser infinita (elipse) “[...] em que um segmento nulo de narrativa corresponde a uma qualquer duração de história [...]” (GENETTE, [197-], p. 93); pode ser rápida (sumário), como quando a narração em alguns parágrafos ou páginas, corresponde a vários meses ou anos da diegese; pode-se convencionar que o tempo da narrativa e da história sejam iguais (cena); ou pode chegar a zero (pausa), “[...] em que um qualquer segmento do discurso narrativo corresponde a uma duração diegética nula.” (GENETTE, [197-], p. 93).

Ainda em relação ao tempo, o teórico francês define como frequência as relações de repetição entre discurso narrativo e diegese. Desse modo, denomina-se narrativa singulativa aquela que conta uma vez aquilo que aconteceu uma vez, ou que conta n vezes aquilo que se passou n vezes; repetitiva é aquela que conta um mesmo acontecimento várias vezes, frequentemente com variações estilísticas e/ou de ponto de vista; e iterativa é a narrativa mais tradicional, na qual “[...] uma única emissão narrativa assume conjuntamente várias ocorrências do mesmo acontecimento [...]”. (GENETTE, [197-], p. 116).

Guimarães Rosa explora com virtuosismo a relação entre a duração da história e a do discurso. É possível notar que em “Campo geral” há situações de aceleração e desaceleração da velocidade do discurso, particularmente em ocasiões em que ocorre relato de algum acontecimento na vida de Miguilim que afeta sua percepção do tempo. Assim, na ocasião em que tio Terêz lhe pede para levar o bilhete secreto para a mãe e trazer a resposta no dia seguinte, a dúvida moral sobre ser fiel ao tio ou ao pai, a dúvida a respeito de “[...] como é que a gente sabe certo como não deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo” (ROSA, 1960, p. 43), impregna o texto de lentidão – são necessárias treze páginas para a passagem de um dia.

A demora também está relacionada com o tempo de elaboração em Miguilim acerca de novas situações a serem vividas e da interpretação que se vai construindo: a iniciação no reino das palavras e a tradução desse reino em busca de compreensão. Saber significa definir, segundo a ética, o que é certo ou errado – um dos conflitos em sua travessia. O papel do narrador adulto, nesse sentido, aponta seus recursos como a competência para emprestar ao menino o que ele não tem, mas dando-lhe tempo de construir seu aprendizado.

Todavia, a cena do encontro com o doutor José Lourenço, a revelação da miopia e a decisão de partir para a cidade (marcando o encerramento da história), cuja duração também é

de apenas um dia, desenrola-se de modo mais acelerado em quatro páginas. Esses exemplos de anisocronias, de acordo com a terminologia proposta por Genette ([197-], p. 85), entre o tempo da história e o tempo do discurso na narrativa, cujo protagonista é o menino Miguilim, apontam para as peculiaridades do mundo da criança, construindo seu universo de valores em contato com adultos, particularmente no que se refere a tomar decisões. A resolução sobre a partida para a cidade pertence, de fato, à mãe, que chega a lhe perguntar se ele quer ir, mas demonstra claramente que já decidiu a respeito do destino do filho. A voz materna, determinante, dá-lhe segurança. Já deliberar sobre a entrega do bilhete de tio Terêz é uma atividade solitária, que não pode ser compartilhada nem com Dito, sob pena de romper a promessa feita ao tio. Decidir sozinho, quando se tem apenas oito anos ou pouco mais, requer tempo e muita coragem.

Em “Campo geral”, vale ressaltar também que alguns fatos que se passaram uma vez, aqueles mais marcantes, são contados várias vezes. Entre eles está o episódio da cachorrinha Cuca Pingo-de-Ouro, a mais querida entre todos os animais que viveram com a família e que o pai “[...] tinha dado para estranhos” (ROSA, 1960, p. 11) e, com maior destaque, passagens reveladoras da astúcia, dos ensinamentos de Dito e da saudade dele, que, ao morrer, deixa vazio o mundo de Miguilim: “Os lugares, o Mutúm – se esvaziavam, numa ligeireza, vagarosos.” (ROSA, 1960, p. 65).

A despeito das repetições, os trechos em que os episódios são recontados não são monótonos. A cada recontar, lança-se uma nova luz, um novo olhar, um novo entendimento que buscam sugerir ao leitor o caminho do crescimento do protagonista.