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A prosa rosiana: o sertão feito poema

3. A linguagem poética em “Campo geral”

3.2 A prosa rosiana: o sertão feito poema

Na sua forma mais tradicional e celebrada, a poesia apresenta-se nos poemas em verso, sobretudo naqueles com estrofes e rimas. No entanto, o poder de inspiração e criação poética transcende as fronteiras dos poemas tradicionais e permeia outras produções, literárias ou não – em uma escultura ou em um quadro, por exemplo, não é preciso que haja poema para que exista poesia. Otávio Paz (1982, p. 16) define o poético como a “poesia em estado amorfo” que se manifesta “[...] como uma condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta”.

O quadro abaixo busca relacionar as diferenças entre prosa e poesia propostas por Paz (1982, p. 25-28):

Prosa Poesia

Discurso unívoco Discurso ambíguo

Reflexão e análise Espontaneidade

Operação de caráter analítico, pragmático Operação de caráter mais natural, intuitivo

A palavra tende a se identificar com apenas

um dos seus significados O poeta jamais atenta contra a ambiguidade A fala cotidiana impõe uma

redução/aprisionamento

A poesia põe a palavra em liberdade

Na prosa a palavra busca ser apenas instrumento

Sem deixar de ser instrumento de comunicação e significação, as palavras convertem-se em outra coisa

Fixando-se o olhar apenas na literatura, facilmente percebe-se que o poético está presente numa multiplicidade de formas: poesia em verso, poesia em prosa, prosa poética e narrativa poética. Essa natureza variada e numerosa transforma em virtualmente impossível o trabalho de buscar reduzir a poesia a uma quantidade finita e fechada de gêneros – cada manifestação literária poética é única, singular e irredutível. Nas palavras de Berardinelli (2007, p. 175):

As fronteiras da poesia como gênero literário se dilatam e se restringem de acordo com a atitude de cada autor (nas diversas situações ou contingências históricas), que inclui ou exclui da linguagem poética aquilo que também pode ser dito (e é dito) em outros gêneros literários.

Mesmo quando se reúnem textos sob a sombra de uma mesma categoria ou gênero, como a poesia em prosa, por exemplo, eles podem variar imensamente, ainda que sejam contemporâneos, como no caso da literatura de Rimbaud e Baudelaire.

Fruto da produção intelectual humana, cada poema é singular, resultado de um processo de criação. Difere da técnica empregada em outros trabalhos humanos, pois não é transmissível, não há degradação nem aperfeiçoamento na poesia, um poema não substitui o outro, pois a técnica de sua produção “[...] morre no instante mesmo da criação.” (PAZ, 1982, p. 20). No trabalho de construção artística, o poeta faz uso de elementos verbais, imagens, recursos rítmicos, figuras, entre outros, para exteriorizar um estado de alma interior. Aquilo que era apenas da ordem do subjetivo é traduzido para o objetivo (LISBOA, 1994, p. 134).

Outros critérios são empregados na busca da essência da poesia, mas, de acordo com Otávio Paz (1982, p. 18),

A retórica, a estilística, a sociologia, a psicologia e o resto das disciplinas literárias são imprescindíveis se queremos estudar uma obra, porém nada podem dizer acerca de sua natureza íntima.

Essa natureza íntima que nasce do trabalho da linguagem patenteia-se apenas àqueles que encararam a difícil tarefa de traçar com os próprios pés o caminho proposto pelo poeta. Somente por meio de inúmeras leituras e análises da natureza daquele texto escrito, na incansável busca de múltiplas potencialidades (sonoras, semânticas, sintáticas), pode-se descobrir, como um tesouro secreto e de mil faces, o ser poético.

Ao lado desses aspectos, na construção da poeticidade de “Campo geral”, objeto de estudo deste trabalho, é importante notar a interferência do discurso na narrativa, como diz Emile Benveniste citado por Genette (GENETTE, 2008, p. 278). Segundo Benveniste, a narrativa em estado puro preserva a objetividade, de modo que o leitor não tem de se perguntar, em nenhum momento, quem é a pessoa que fala para a compreensão do texto. Porém, no discurso, há sempre alguém que fala e “[...] sua situação no ato mesmo de falar é o foco das significações mais importantes [...]” (GENETTE, 2008, p. 280). Sendo assim, é fundamental analisar essa categoria narrativa, ou seja, o narrador, aquele que conta.

Apoiando-se, novamente, nos estudos de Genette ([197-]) é possível afirmar que, no nível narrativo, “Campo geral” apresenta um narrador extradiegético2, modulado pelo olhar

do protagonista diegético que, por sua vez, assume, em certos momentos, o papel de contador de histórias aos irmãozinhos em nível hipodiegético. Há, não apenas, total harmonia entre as duas situações – o fato de Miguilim ser, ao mesmo tempo, focalizador em sua história e narrador para os outros – mas uma implica e fortalece a outra. O fato de o protagonista entreter os irmãos com suas fantasias/mentiras ajuda a construir a imagem de uma personagem infantil que não é apenas ator da diegese, mas que também participa da criação:

- Estava tudo num embrulho, muitas coisas... Caíu dentro do corgo, a água fundou... Dentro do corgo tinha um jacaré, grande...

- Mentira, Você mente, você vai para o inferno! – dizia Drelina, a mais velha, que nada pedira e tinha ficado de parte.

[...]

Mas Tomèzinho, que tinha só quatro anos, menino neno, pedia que êle contasse mais do jacaré grande de dentro do córrego. (ROSA, 1960 p. 10). Miguilim de repente começou a contar estórias tiradas da cabeça dêle mesmo: uma do Boi que queria ensinar um segredo ao Vaqueiro, outra do

2 A definição de níveis narrativos se faz necessária, de acordo com Genette ([197-], p. 22), pois “[...] todo

acontecimento contado por uma narrativa está num nível diegético imediatamente superior àquele em que se situa o acto narrativo produtor dessa narrativa.” Desse modo, o crítico literário francês distingue três níveis narrativos. O extradiegético é nível primordial, aquele a partir do qual pode constituir-se outro nível narrativo. As entidades, ações, espaço que integram uma história contada a partir desse nível primeiro encontram-se no plano imediatamente seguinte, denominado intradiegético. Reservando-se o nome de hipodiegético àquela narrativa que se estabelece quando uma personagem da história é solicitada ou incumbida de contar outra história, que assim parece embutida na primeira.

Cachorrinho que em casa nenhuma não deixavam que êle morasse, andava de vereda em vereda, pedindo perdão. (ROSA, 1960, p. 53).

Essa capacidade criadora do protagonista reflete as possibilidades de invenção/imaginação da criança próximas da poesia, a morada do belo, que, para Bosi (1977, p. 112), é “[...] o que nos arranca do tédio e do cinza contemporâneo e nos reapresenta modos heroicos, sagrados ou ingênuos de viver e pensar”. Encontra-se com facilidade a presença da ingenuidade da criança na maneira pela qual Miguilim percebe e interpreta o mundo em “Campo geral” e relaciona-se com ele. Essa característica, por sinal, promove o encontro dos contrários, de forças opostas no texto (nesse caso, o mundo exterior e a sensibilidade infantil), traço marcante da poesia, como aponta Otávio Paz (1982, p. 29).