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2 UM CORPO IGNORADO E O OUTRO

2.1 A perda da fala na histeria

CAPÍTULO II

2 UM CORPO IGNORADO E O OUTRO

2.1 A perda da fala na histeria

Para Freud, os fenômenos histéricos no corpo, da mesma forma que as afasias não orgânicas, não levam em conta a estrutura anatômica do sistema nervoso. Um sintoma histérico se apresenta numa parte do corpo independentemente de sua organização anatômica. Ocorre aí uma mudança fundamental na elucidação de funcionamento do corpo, que passa a ser explicado, paralelamente ao modelo de uma estrutura anatômica, por processos excitatórios do aparelho psíquico. Freud nunca deixa de ser fiel a sua abordagem energética. Há, para ele, uma série de fenômenos patológicos cujas manifestações podem ser físicas ou psíquicas, mas que podem ter um único modo de explicação:

Alterações na distribuição normal, no sistema nervoso, das quantidades estáveis de excitação. [tais alterações] [...] ocorrem inteiramente na esfera da atividade cerebral inconsciente, automática [...] com um excesso de excitação do sistema nervoso (FREUD, 1988f, p. 95-96).

Em 1888, num artigo que escreveu para a enciclopédia Villaret, Freud afirma que uma histeria é uma neurose e que sendo assim baseia-se apenas em modificações fisiológicas o quer dizer, para Freud, energéticas:

A histeria baseia-se total e inteiramente em modificações fisiológicas do sistema nervoso; sua essência deve ser expressa numa fórmula que leve em consideração as condições de excitabilidade nas diferentes partes do sistema nervoso (FREUD, 1988f, p.85)

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As afasias histéricas teriam, então, essas mesmas características. Mas, dada a impossibilidade de explicar esse jogo de energias por uma suposta “fórmula fisiopatológica” elas são definidas nosograficamente, ou seja, pela totalidade dos sintomas que apresentam. Assim, são apresentadas como um tipo de paralisia motora que se limita a uma determinada parte do corpo, como uma paralisia de membros, por exemplo. A afasia histérica seria um sintoma histérico de conversão motora, como as demais paralisias histéricas:

[...] Às paralisias dos membros deve-se acrescentar a afasia histérica, ou mais corretamente, a mudez, que consiste numa incapacidade de produzir qualquer som articulado ou [mesmo] de executar movimentos da fala sem voz. É sempre acompanhada de afonia, que também pode ocorrer isoladamente; nesses casos, a capacidade de escrever é conservada e aumentada. As demais paralisias motoras encontradas na histeria não podem ser relacionadas a partes do corpo, mas apenas a funções, como, por exemplo, astasia, abasia [incapacidade de andar e manter-se de pé]; [...] todas as paralisias histéricas distinguem-se pelo fato de que podem ser de maior gravidade, mas ao mesmo tempo, limitam-se nitidamente a uma determinada parte do corpo (FREUD, 1988f, p. 92-93)

No artigo “Algumas Considerações para Um Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas” de 1893, Freud afirma que a neurologia clínica reconhece dois tipos de paralisia motora – paralisia periférico medular ou (bulbar) – que ocorre no segmento de fibras nervosas que se estende da periferia até as células do corno anterior da medula espinhal - e a paralisia cerebral - que ocorre no segmento de fibras nervosas que vai do corno anterior da medula espinhal até o córtex cerebral.

A se considerar a afasia histérica tratada por Freud no artigo “Histeria” de 1888, como semelhante aos dois tipos de afasias (verbal e simbólica) descritas no estudo crítico de 1891, todas teriam a mesma explicação, ocorreriam por uma perda associativa, funcional, que ocorre no aparelho da linguagem.

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A afasia histérica sendo motora, sendo uma paralisia que afeta uma parte extensa da periferia do corpo, um membro, um aparelho motor complexo, etc - difere da paralisia - periférico-medular, ou paralisia em projeção que pode atingir um músculo ou até uma fibra nervosa isoladamente. Esse tipo de paralisia em massa que Freud denomina de paralisia em representação se manifestaria como uma paralisia cerebral, atingindo todo um grupo de músculos, ou aparelho, portanto, gera muitas vezes uma perda funcional. Que diferença pode haver entre uma função e uma estrutura muscular e nervosa do corpo?

Para Freud (1988f, p. 232), “a histeria nunca simula paralisias periférico medulares ou paralisias em projeção; as paralisias histéricas somente compartilham as características das paralisias orgânicas em representação”.

No texto “Algumas Considerações Para Um Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas” (1993) Freud faz ainda uma comparação entre o sintoma histérico e a lesão cerebral, em especial com a lesão cortical, conforme observado nas afasias verbais e simbólicas. Apresenta, todavia, nesse mesmo texto um argumento que nos permite compreender a distinção entre as afasias que tem correlação com a lesão cortical e afasias histéricas que não apresentam tais lesões. Chega, assim, à conclusão que a principal distinção entre das paralisas histéricas em relação às orgânicas deve-se às seguintes características:

Em primeiro lugar, não obedece à regra, que se aplica regularmente às paralisias cerebrais orgânicas, segundo a qual um seguimento distal sempre está mais afetado do que o segmento proximal. Na Histeria [...] não existe a menor dificuldade em produzir artificialmente uma paralisia isolada da coxa, da perna etc. [...] Quanto a esse aspecto importante, a paralisia histérica é por assim dizer, intermediária entre a paralisia em projeção e a paralisia orgânica em representação. Se não possui todas as características de dissociação e delimitação próprias da primeira, está longe de ver-se submetida às leis estritas que regem a segunda - a paralisia cerebral (FREUD, 1988f, p-232).

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Assim, as especificidades das afasias histéricas são delimitadas em relação às demais formas de afasia. Podemos dizer que na histeria os sintomas histéricos são inteiramente arbitrários, se seguem leis, estas não pressupõem nenhuma relação natural entre os sintomas corporais e sua estrutura anatômica. Podemos compreendê- los como convencionais. Isso remete os sintomas histéricos para uma relação, não mais com suas causas internas, mas com uma a ordem simbólica própria que os estrutura. É digno de nota que essa compreensão das coisas já esteja presente em escritos que têm como tema ainda o debate com a neurologia.

Da síndrome da afasia orgânica ela [a histeria] copia a afasia motora, isoladamente; e – algo não existente na afasia orgânica - ela pode criar a afasia total [motora e sensitiva] para um idioma, sem causar a menor interferência na capacidade de compreender e de articular um outro idioma (FREUD, 1988f, p. 233).

Começa a aparecer a partir desse momento em Freud um tema importante, o da divisão da consciência. A conservação, no caso citado acima, de um segundo idioma apesar da deterioração do primeiro é um fenômeno ligado ao que Freud nomeava divisão da consciência. A divisão da consciência se insere como um diferencial importante para se pensar a presença do inconsciente como uma estrutura de linguagem, mesmo que de maneira ainda, por assim dizer, rudimentar. A conservação, no caso citado acima, de um segundo idioma apesar da deterioração do primeiro é um fenômeno ligado esse à divisão da consciência. Veremos, a seguir, as implicações que isso tem no modo de pensar a fala e sua relação com o corpo na histeria.

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