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METAPSICOLOGIA FREUDIANA

5 A FALA DO OUTRO NA CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO

5.3 O corpo outro da Língua

Até aqui é importante levarmos em conta que procuramos discutir os marcos elementares da constituição da alteridade na linguagem e que isso implica o corpo. Todo ato e manifestação lingüísticos que noto em mim mesmo e que não sei como compreender, em geral são julgados como se pertencessem a outrem; são, na maioria das vezes, considerados como equívocos de um enunciador que, em geral, procuro ignorar. Muitas vezes compreendemos bem como reconhecer um equívoco lingüístico em outras pessoas, isto é, como algo que pode ser encaixado numa outra cadeia de significação, em geral com desfecho cômico. De forma inversa recusamos a aceitar um equívoco nosso e forçadamente tentamos re-encaixar o dito equivocado naquilo que queríamos dizer.

Para Freud, o recalque tem uma dinâmica própria, supõe uma modificação do estado da Vorstelung (repesentação), uma alteração de sua catexia. O jogo energético no Ics se caracteriza por dois processos: a) de deslocamento, no qual uma

Vorstelung pode ceder a outra toda a sua cota de catexia; b) de condensação, no qual

uma Vorstelung pode apropriar-se de toda a catexia de várias outras idéias. Esses dois processos são considerados por Freud as balizas constitutivas do que chamou de

processo psíquico primário.

Segundo Freud, em determinadas condições patológicas os dois sistemas

alternam, ou mesmo permutam, tanto seu conteúdo como suas características. Na

esquizofrenia, por exemplo, a relação entre os sistemas psíquicos Cs. e Ics. apresenta o fato surpreendente de que muito do que é expresso como sendo consciente, nas

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neuroses de transferência só pode revelar sua presença no Ics. através da psicanálise. Mais importante ainda é a constatação freudiana de que isso se apresenta através de modificações na fala e que mostram toda a relação entre pulsões - que são por definição inconscientes – língua(gem) e corpo.

No caso da paciente esquizofrênica do Dr. Victor Tausk (apud FREUD, 1988a), é nítida a inscrição do que é falado pela paciente no seu próprio corpo, pela via da imagem acústica, ou seja, do significante. Isso pode ser observado pelo fato de que a própria paciente se prontificava a explicar suas manifestações orais. O caso é narrado da seguinte maneira:

Uma paciente de Tausk, uma moça levada à clínica após uma discussão com o amante, queixou-se de que seus olhos não estavam direitos, estavam tortos. Ela mesma explicou o fato, apresentando, em linguagem coerente, uma série de acusações contra o amante. ‘De forma alguma ela conseguia compreendê- lo, a cada vez ele parecia diferente; era hipócrita, um entortador19 de olhos, ele tinha entortado os olhos dela, agora via o mundo com olhos diferentes’ (FREUD, 1988a, p. 226).

Segundo Freud (1988a), os comentários da paciente lançam luz ao mesmo tempo sobre o significado e sobre a proveniência da formação das palavras no discurso do esquizofrênico, o que tem relação com o corpo. A queixa da paciente de que seus olhos estavam tortos, de que tinha perdido os seus próprios olhos, de que estes teriam sido trocados pelos de outro é resultante da inscrição substitutiva de um significante inconsciente no seu próprio corpo. A expressão “entortador de olhos” (Augenverdreher) usada no sentido figurado de “enganador” é “falada” pelo corpo no sentido literal. É como se a paciente acusasse seu amante de ser um “cabeça-de-bagre” e, de repente, passasse a queixar-se de que sua cabeça não era de humano, era de peixe. A imagem acústica (Vorstelung) inconsciente “entortador de olhos” (Augenverdreher) manifesta-se,

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sem recalques, no caso da esquizofrenia, no corpo da paciente, não como conversão - como no caso da histeria de conversão -, mas como uma realidade que se manifesta numa sensação corporal. A imagem acústica “entortador de olhos” liga-se a um sentido inscrito na superfície do corpo através da sensação de que tem a paciente de que seus olhos estão tortos. A referida imagem acústica permite a inscrição de um sentido inconsciente no corpo da paciente, na sua superfície, assim se manifestando como se não houvesse recalque algum operando.

A segunda comunicação da paciente, apresentada por Freud no texto “O Inconsciente”, é talvez mais reveladora ainda desse processo, vamos descrevê-la integralmente: “Ela estava de pé na igreja. De súbito sentiu um solavanco: teve de

mudar de posição, como se alguém a estivesse pondo numa posição, como se ela estivesse sendo posta numa posição, como se ela estivesse sendo posta numa certa posição”.

Veio depois disso uma série de acusações contra o amante. Ele era vulgar, ele a tornara vulgar também, embora ela fosse naturalmente requintada. Ele a fizera igual a ele, levando-a a pensar que era superior a ela; agora ela se tornara igual a ele, porque ela pensava que seria melhor para ela se fosse igual a ele. Ele dera uma falsa

impressão da posição dele; agora ela era igual a ele’ (por identificação), ‘ele a pusera numa falsa posição” (FREUD, 1988a, p. 226)

Segundo a interpretação de Freud e Tausk o impulso para o movimento físico de mudar a posição do seu corpo, expressava o sentido literal de ‘pondo-a numa

falsa posição’ usada no discurso da paciente referido a seu amante como expressão

metafórica. Mas é importante registrar que Freud concebe a forma como essas imagens acústicas encontram seu sentido no corpo, de maneira diferente na histeria e na

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esquizofrenia. Para ele há uma diferença entre essa sensação, esse impulso, observado na esquizofrenia e a conversão que, de fato, ocorre na histeria. Além disso, segundo ele, em nenhum dos dois casos ocorrem quaisquer pensamentos conscientes concomitantes, nem se expressam quaisquer pensamentos depois.

Podemos constatar, mais uma vez, os vínculos que Freud estabelece entre linguagem e corpo. Aqui pudemos observar, mais especificamente as relações que ele encontra entre o significante e o corpo. Vinte anos depois de ter abandonado as abordagens puramente anatômicas do corpo, em 1915, no artigo “O Inconsciente”, Freud (1988a, p. 227) expressa isso com as seguintes palavras: “Gostaria de chamar a atenção mais uma vez para o fato de que todo encadeamento de pensamento [que envolve a Vorstelung] é dominado pelo elemento que possui como conteúdo uma inervação no corpo (ou, antes a sensação dela).”

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CAPÍTULO VI