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A peregrinação no contexto religioso contemporâneo

No documento haudreygerminianicalvelli (páginas 37-40)

CAPÍTULO I: PEREGRINAÇÃO E TURISMO RELIGIOSO

1.4. A peregrinação no contexto religioso contemporâneo

No contexto religioso contemporâneo, a peregrinação parece agregar mais um significado que a associa à realização de um caminho interior percorrido por cada indivíduo em busca de “transformação pessoal” (STEIL, 2003).

A “ineficácia” das grandes utopias do século XX tem gerado condições favoráveis à construção coletiva de novos ideais. Assim, o ideário de “transformação social e pessoal” ganha centralidade nesse contexto, operando mudanças mais gerais e refletindo o “espírito de um novo tempo”. Esta reflexão retoma elementos do passado que se acreditavam superados, mas que continuam influenciando certos grupos sociais.

Nesse cenário, faz-se necessário refletir sobre a questão da crise dos sistemas, instituições e agências tradicionais produtoras de sentido, percebendo-se as articulações que ocorrem, atualmente, no campo das reciprocidades sociais e simbólicas (VELHO, 1998).

Paralelamente à “crise” das instituições religiosas tradicionais, vem crescendo a autonomia da “experiência do sagrado” em relação à mediação das instituições tradicionais, ocasionando uma nova modalidade de religiosidade, com novas e variadas possibilidades de vinculação intersubjetiva. Através do “experimentalismo religioso” e da “errância religiosa”

14 A categoria reflexidade adotada nesta tese se aproximada do sentido elaborado por Anthony Giddens (2002),

constróem-se novas condições da existência espiritual na pós-modernidade religiosa (SOARES, 1989).

Nesse contexto, a religião pode ser uma experiência mística interior que independe dos laços institucionais e tradicionais de sentido, estando os recursos simbólicos disponíveis para cada um traçar o seu próprio caminho em direção ao seu verdadeiro “eu”. Segundo Amaral, “É o sujeito que se identifica com o lugar de síntese, às voltas com suas próprias combinatórias, tentando incorporar nas suas experimentações os elementos mais disparatos”; e acrescenta que “a experimentação é a idéia-matriz da cultura Nova Era15

em face dos modelos morais e religiosos contemporâneos, apontando para um elemento crítico que penetra em seus rituais” (2000, p. 205).

Sugiro, então, que o incremento das peregrinações vem apontando para a “reinvenção” de uma tradição milenar, quando os indivíduos reapropriam símbolos e rituais acumulados pela cultura, articulando-os com suas idéias e comportamentos e resultando em novos discursos. As peregrinações, nesse contexto, podem também estar em sintonia com essa idéia-matriz da chamada espiritualidade “nova era”.

Nesse sentido, na pós-modernidade religiosa, a prática da peregrinação parece ser marcada pela reflexividade. Para os indivíduos que compartilham o universo simbólico da Nova Era, a peregrinação é reinterpretada a partir de conceitos como transformação, auto- conhecimento e terapia. A idéia da metáfora da peregrinação como um caminho interior em busca da identidade pessoal é constante nos estudos sobre as peregrinações na atualidade.

Como mostrou Carneiro (2003), o conjunto de crenças e de valores vivenciados por aqueles que percorrem o Caminho de Santiago situa a peregrinação como ideário de transformação pessoal e social, tornando-se um importante recurso cultural capaz de produzir novas formas de ação e de expressão para determinados indivíduos.

Em afinidade com essa idéia da peregrinação como uma forma de transformação pessoal, em sintonia com a cultura Nova Era, existe a procura por itinerários tradicionais de peregrinação religiosa, orientais16 e ocidentais, como também por itinerários modernos e seculares. A peregrinação como uma forma de “experiência religiosa” contemporânea não necessita das mediações institucionais da Igreja ou de seus milagres e aparições. Ao contrário

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O termo Nova Era surge nos anos de 1960 e 70, quando se tornou visível essa cultura religiosa, cuja forma de expressão tem sido dominada pela metáfora da “transformação” e pelo experimentalismo religioso. Segundo a New Age Encyclopedia, o movimento Nova Era pode ser definido por sua experiência de transformação (Amaral, 2000, p.16).

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Vários lugares do oriente exercem um grande fascínio nos peregrinos da contemporaneidade, como o Tibet, a Índia e a China. São lugares marcados por religiões milenares como o budismo, hinduísmo e o islamismo e estão repletos de templos, percursos e vivências capazes de transformar uma viagem em uma “experiência religiosa”.

das peregrinações católicas tradicionais, a ênfase dessas peregrinações está na viagem que pode ser realizada a pé, de bicicleta ou a cavalo. O caminho é físico e espiritual, como ressaltou Carneiro (2003, p. XI) ao se referir a peregrinação à Santiago de Compostela:

Ao longo do Caminho, os peregrinos realizam uma performance temporal e espacial de algumas concepções fundamentais presentes na cultura católica brasileira. O sentido do caminho está sedimentado em dois aspectos fortemente relacionados. De um lado, a ênfase está na própria viagem, na realização do percurso, na exterioridade. De outro, na “jornada interior”, no “encontro consigo mesmo”, na “busca de sentido para a vida”.

Cossineau (1999), em seu livro “A arte da peregrinação: para o viajante em busca do que lhe é sagrado”, enfatizou que não há “um caminho apenas o seu caminho”. Para ele, a peregrinação é considerada como um autêntico ritual de renovação espiritual e também funciona como uma poderosa metáfora, isto é, os peregrinos realizam uma “performance” temporal e espacial vivenciada como uma via de “transformação”, sobretudo pessoal. Dessa forma, toda jornada realizada com a intenção da reflexão pode vir a ser sagrada, ou seja, tornar-se uma peregrinação.

Na contemporaneidade, a reabilitação da peregrinação como uma das formas de se vivenciar o sagrado tem colaborado para a emergência dos roteiros de fé, que são divulgados pela mídia. Revivem-se, assim, os santuários e caminhos considerados sagrados pelo cristianismo, itinerários de religiões orientais, rotas percorridas por escritores e artistas ou, ainda, os caminhos percorridos, no passado, por tropeiros, bandeirantes e religiosos. Atualmente, são recuperados ou “inventados”, no sentido atribuído por Hobsbawn17

, tornando-se um dos locais privilegiados para a vivência espiritual na pós-modernidade religiosa.

17 Para Hobsbawn (1984, p. 9), a “tradição inventada” pode ser entendida como um conjunto de práticas, rituais

ou simbólicas, capazes de indicar certos valores e normas de comportamento através da repetição, ocasionando uma relação de continuidade com o passado. Como apontou Bauman (1998, p.170), trata-se “reinvenção da tradição”, porque, para a realidade da “estrutura” ou da “cultura”, a “tradição” “não existe de modo a não ser no processo de contínua e inesgotável transformação”.

No documento haudreygerminianicalvelli (páginas 37-40)

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