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A peregrinação a Santiago de Compostela como património cultural

Eiras 45 e Chaves ou Santo Estevão (ermida de Santiago 46 ) e Vilarelho

S. Cristóvão (ver foto 11) Já Erasmo (1466?-1536) prevenira: “se algum

6. A peregrinação a Santiago de Compostela como património cultural

Disse, a começar, que falaria pouco do caminho romano que começava no Algarve, mas que na parte final, Viseu-Chaves, se transformaria num caminho de peregrinação a um pretenso túmulo de Santiago.

Porque foram os peregrinos que por aqui passaram ao longo de séculos, que inspiraram e urgiram, que exigiram directa e indirectamente, que subsi- diaram até com as suas esmolas e ajudaram a levantar — não tenham dúvi- da — igrejas paroquiais, ermidas, albergarias, hospitais, pousadas, estalagens,

hospedarias e mesões72, caminhos e calçadas, pontes e barcas, Confrarias e

Irmandades — tudo “de Santiago”, de S. Gonçalo de Amarante e de algumas mais devoções afins. Mas muito mais do que isso: os peregrinos e quantos se encontravam pelo caminho trocaram ideias e práticas, costumes e técnicas, valores e crenças, tudo quanto haveria de produzir o fundo comum do espírito europeu que presentemente vive tempos maus.

Qualquer Dicionário diz que Património é um conjunto de bens materiais e

70 Paróquias de Santiago: Abravezes (Viseu), Magueija (Lamego), Sande (Régua), Fontes (StaMPenaguião), Folhadela (Vila Real), Andrães (Vila Real), Mondrões (Vila Real), Sou- telo de Aguiar (VPAguiar), Oura (Chaves) Vilarelho da Raia (Chaves), Seara Velha (Cha- ves), Vilar de Perdizes (Montalegre). Ermidas: Vila Meã (Moledo, Castro Daire), Baltar (Castro Daire), Mouramorta (Castro Daire), Vila Real, Vila Meã (Bornes de Aguiar), Redial (Vilar do Tâmega, Chaves).

71 De facto, no caminho francês — Roncesvalles - Compostela — contam-se apenas 7 igrejas e ermidas “de Santigo”, in JAÉN, José María Anguita - Guía del Peregrino Camino de

Santiago, León: Editorial Everest, 2004: 1. a de Santo Domingo de la Calzada; 2. ermita de

Santiago o del Otero (p. 127); 3. iglesia de Santiago, em Carrión de los Condes (p. 135); 4. ermita de Santiago em Cruz de Hierro, em Foncebadón (p. 187); 5. iglesia de Santiago em Villafranca del Bierzo (p. 196): 6. Iglesia de Santiago em Barbadelo, depois de Sarriá (p. 227); 7. depois de Melide, em Boente, iglesia de Sanctus Jacobus de Boento (p. 248). 72 Este topónimo, que tem a ver com o latim “mansionem”, em francês deu maison. Assim,

em Mesão Frio, por exemplo, existiu uma albergaria mandada construir pela rainha D. Te- resa.

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imateriais transmitidos pelos antepassados, bens que constituem uma herança colectiva que deve ser entregue à geração seguinte: e eu não falei aqui hoje nem

da Iconografia, nem do Adagiário, nem da Botânica73, nem da Heráldica, nem

da Oratória, nem das festas e feiras “de Santiago”, a própria Toponímia nem lhe toquei.

73 Erva de Santiago, nome que em Trancoso (terra de intensa devoção jacobeia) se dava à Tasninha (Senecio jacobœa. L), um planta medicinal antidisentérica (VASCONCELOS, Prof Augusto de — Dicionario das Plantas de Portugal que teem nome popular, Porto, 1915, pp. 32 e 83), certamente que muito utilizada pelos peregrinos compostelanos para atalhar a complicações frequentes causadas por alimentos estragados. Em Fontão (Ponte de Lima), freguesia dedicada a Santiago, serviram-me num dia da festa do Apóstolo “peras de Santiago”, pequenas e bem rosadas, apetecíveis e saborosas. O mesmo se diga de algumas maçãs ditas também “de Santiago”, temporãs e vermelhinhas, na zona de Santo Tirso.

Foto 13: Santiago peregrino, na capela do Arestal (Vale Cambra)

Viseu > Vila real > Chaves. Da devoção ao turismo: ... 32

Compete ao Estado, à Autarquia (Câmara ou Freguesia), ainda à Igreja e à Universidade e a cada cidadão estudar, salvaguardar e valorizar o património jacobeu. O Turismo tem de auxiliar este esforço, pois que — em minha opinião — não pode pretender apenas muito dinheiro, servindo-se de um capital ou propriedade que é de todos.

Que grande Património, Turismo!, tu tens à tua frente, particularmente neste trajecto Viseu-Chaves! Mas tu não podes ser um Turismo que apenas fabrica e vende, “usado, bota-se fora”! O homem antigo andava fundamen- talmente a pé e às vezes de barco. Cavalos, carros e liteiras eram para poucos. Andar a pé fazia parte do quotidiano e da humana condição. Por montes e vales, um homem levantado entre o céu e a terra era uma prática comum que não custava a ninguém. As pernas estavam habituadas e os pés eram robustos. Hoje assim não é. O homem urbano não anda a pé, nem sequer nas es- tradas do Colesterol. E o caminhar é, para o corpo, antes de mais nada, uma disciplina que liberta o espírito. E o peregrino, mesmo sem ter disso consciên- cia, era isso que procurava: Liberdade! Libertar-se das prisões do quotidiano; procurar o que só longe encontraria, que do “por ali” andava ele cheio; ter a certeza de uma palavra que, de certeza, ouvira já muitas vezes: “Procura que encontrarás!” (Lc 11,10).

Claro que não foram os cristãos que inventaram as peregrinações. Muito antes deles, peregrinava-se já, desde o passado mais obscuro ao lugar onde o Sol morria, ao Finisterra galego, ao Olimpo grego ou ao Stonehenge britânico, à floresta sagrada de Avalon, às fontes sagradas da Grécia e de Roma, aos “altos montes” de Israel, de Sião, de Garizim ou de Siquem (1 Re 12,1), de Betel (Gn 28,19), Mambré (Gen 13,18) ou Bersabé (Gen 21,22) mas sobretudo a Jerusa- lém, cidade a que se subia (Mc 10,33 e Lc 18,31; Act 15,2; Gl 2,1) mas de que também se descia: o homem que caminhava para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores, “descia de Jerusalém” (Lc 10,30).

Mas o caminhar do peregrino, é muito diferente do do viandante. O ver- dadeiro peregrino sai do seu mundo profano na demanda do sagrado, deixa tudo para trás, a família e os bens. Muitas vezes, na insegurança dos tempos antigos, fazia testamento dos seus bens antes de partir. E libertava-se de toda a cangalhada, bastava-lhe o chapéu, um bordão e umas botas, ainda algum dinheiro se não queria pedir esmola, e depois kms e kms a palmilhar, passo a passo. O caminhar não lhe fazia bolhas nos pés nem lhe cansava as pernas. E o espírito libertava-se-lhe porque o tempo era de pensar e meditar, de resolver dramas, de penitenciar, de buscar e encontrar ou não, de comentar decisões, de procurar a Deus…, de encontrar Outros e de admirar a própria Natureza que não é só beleza, é muito mais do que isso, é o momento em que “o invisível se torna visível à inteligência” (Rm 1,20). E caminhar não lhe custava.

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“Onde está o caminho da morada da luz?” (Jb 38,19), perguntava Job.“Ensina-me os teus caminhos, Senhor” (Sl 27,11), orava o Salmista. E o profeta: “Assim diz o Senhor: “Ponho diante de vós o caminho da vida e o caminho da morte” (Jr 21,8); “Se andardes por caminho direito conhecereis a paz” (Is 59,8), acautelava o Terceiro Isaías.

Quem nunca fez esta experiência, de caminhar da profanidade para o lugar sagrado não percebe o que é ou foi a peregrinação a Compostela. Só percebe

o que é peregrinar quem, do fundo da alma, desejou verdadeiramente fazê-lo

e o levou a sério; só depois de amargar as dificuldades do caminho, de entrar dentro de si e de escutar ou partilhar, só depois de chegar e de se encontrar com o mistério que, no mínimo, vislumbrou, pois que a peregrinação exige o afastamento do prosaico e busca o transcendente (o que sobe [scandere] muito

para lá… [trans em latim]: donde transcandere > transcedere > subir para o

transcendente); … só esse percebe que peregrinar não é um produto apenas

turístico (que se vende e compra e bota fora), uma receita economicamente interessante, ou interesse autárquico, radical, cultural, etc.

O caminho de Santiago foi efectivamente estrada de muita riqueza imate- rial. Foi lugar de troca de saberes e sabores, de artes e culturas, de técnicas e estéticas (as maiores catedrais góticas de Espanha e quase todas as de França estão ao longo dos caminhos de Santiago, por exemplo), de serviços e diálogos. Por isso Goethe (1749-1832) disse que a Europa se fez a peregrinar a Compos- tela.

Peregrinando, o crente, o pecador, o encarcerado ou o cadastrado (o tri- bunal belga pode castigar o criminoso obrigando-o a ir a pé a Compostela) o mesmo agnóstico ou ateu, o zangado com Deus ou com a Religião, caminha na alegria de o fazer, com o peso do pecado ou o vazio de esperança; sobe a mon- tanha e desce aos vales, esturra ao sol e, com a sombra ou a brisa, refresca-se debaixo de uma árvore, cansa-se e descansa, encontra-se e perde-se, esquece- se e recorda-se, sai de si para o longínquo e entra mesmo no transcendente; pelo caminho encontra alguém com quem troca riquezas e dores. Mas segue também caminho sozinho, falando consigo mesmo e mais ninguém, e possi- velmente tem resposta de Deus. Depois de muito andar e libertado já de tudo, do seu terrunho, da casa, do trabalho que lhe cumpre, sequioso porque não tem água, que coma também não …, mas já encontra um lugar que o acolhe, albergaria monástica ou não, possivelmente uma barca de “por Deus”, também um lugar sagrado, igreja paroquial ou ermida…

E o verdadeiro e demandado santuário, fim transitório de tanto caminhar, e nunca mais se lá chega que é o que o peregrino mais deseja!…: e, só no fim, a alegria inexplicável de chegar… Tudo isto é, afinal, a imagem da vida real de cada homem. Que é um homem senão um peregrino? Nascer, crescer, criar,

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definhar e morrer: longo e difícil caminho! Por isso, dizia o Salmista: “Sou um peregrino nesta terra” (Sl 119,19). Por isso Job dizia que podia “caminhar mes- mo nas trevas” (29,3) pois que, garantia Isaías, “não me fatigarei” (40,31). Um dos maiores caminhantes da história, Paulo de seu nome, nascido em Tarso e falecido em Roma, deixou escrito: “eu ando é para a frente. Esqueço o que fica para trás e corro para a meta a que Deus me chama” (Fl 3,12-14).

Sophia de Mello Breyner poetizou isto tudo numa foto “a la minuta”: «A São Tiago não irei

como turista. Irei - se puder - como peregrino.

Tocarei a pedra e rezarei

Os padres-nossos da conta como um campesino» 74.

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