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Seguindo ao encontro da personagem-signo rei Lear/Hidetora encontramos a definição de personagem dentro da estrutura dramática aristotélica/hegeliana. Grosso modo, a noção de ação dramática parecer ser inevitável mesmo no pensamento brechtiniano.

Contudo, o corte da dialética teatral de Brecht, que provoca uma ruptura operacional do conflito para a contradição, tem uma implicação estrutural quanto ao tratamento da personagem, entendida como herói trágico. Como se verá, toda a fortuna crítica teatral e literária tem alocado uma explicação para King Lear dentro de um escopo trágico.

Todavia, a expansão do campo discursivo desta obra e de sua personagem principal - aliada à incrustação e reconfiguração de seus significados a partir da inter- relação das personagens formativas da personagem-signo rei Lear/Hidetora, compostas e direcionadas de um lado, na estética dialética do distanciamento brechtiano, e, de outro lado, pela noção de desconstrução, da tradução intersemiótica - demarca uma nova leitura - não-trágica - para o conjunto formativo de sentido das personagens no corpo da personagem-signo rei.

Para a operação deste avanço, faz-se necessária uma nítida descrição de como a personagem tem sido entendida e, conseqüentemente, conceituada no jogo da ação dramática. Neste sentido, recorremos a noção de personagem-sujeito e personagem- objeto estudada por Boal (1980).

Discorrendo sobre a diferenciação entre a poética de Hegel e a de Brecht, Boal nos informa de início que

[...] toda a Poética de Brecht é, basicamente, uma resposta e uma contrapartida à Poética idealista hegeliana [...] a confrontação central entre as duas Poéticas (hegeliana e brechtiana) se dá no conceito de liberdade do personagem, como já

veremos: para Hegel o personagem é inteiramente livre que se trate da poesia lírica, épica ou dramática; para Brecht (e para Marx) o personagem é objeto de forças sociais (1980, p.95).

E mais, para Hegel a personagem teatral carrega em si o símbolo da moral, torna-se o centro dos conflitos internos encadeando num contínuo toda a significação da obra, mais das vezes de uma tragédia. Em suma, a personagem é a objetivação de forças subjetivas, estando livre para impor suas intenções que entram em choque no interior de outra vontade, também livre. É o conflito. (BOAL, 1980, p.97)

Assim, com tais distintivos de plena liberdade, a personagem passa a ser entendida como livre e absolutamente senhora de seu destino (apesar do choque – conflito – que provoca); é, portanto, por sua vontade de decisão que a personagem escolhe e age; numa palavra, a personagem é sujeito de suas ações. No entendimento de Hegel há uma personagem-sujeito.

O que constitui essa predicação ativa à personagem, isto é, como sujeito de sua história, é em última instância a sua liberdade, condição bem aproximada da formulação sartreana / brechtiana18 para a personagem, que se funda pela irrevogável vontade de cumprir sua ética particular. A órbita de sua liberdade é, no mais das vezes, distinta do mundo e das outras personagens, o que acaba por gerar conflitos trágicos. De tal modo que:

[...] a personagem-sujeito só tem a sua liberdade limitada pela vontade de outro personagem-sujeito, igualmente livre não o cerceiam as pressões materiais, o simples medo da morte ou da pobreza, ou ainda as ameaças de uma ordem legal constituída (PALLOTIINI, 1989, p.41).

Nesta esteira de personagem-sujeito, tem-se a personagem-signo rei Lear/Hidetora que a exemplo de Prometeu, símbolo maior da rebeldia contra a tirania divina, mesmo condenado aos grilhões, é livre em seu propósito, e a despeito da dor e humilhação imposta pelo Olimpo não se entrega, confirmando com este ato sua liberdade. De modo semelhante ocorre em os dois Orestes, de Ésquilo e bem mais no de

18 A comparação entre Sartre e Brecht restringe-se ao elemento liberdade e consciência, requeridos pelos dois

dramaturgos como condição primal em seus trabalhos. Em Sartre, temos a liberdade como tematização de fundo filosófico, enquanto em Brecht a questão da liberdade e da consciência se desenvolve num pragmatismo da atividade teatral, em nível da dramaturgia, da encenação e do público.

Sartre, que desenvolvem a liberdade no rigor coerente à uma existência somente concebível como livre; Lear/Hidetora também o será, pois exercem sua vontade acima de si próprio. Assim, como rei que é, é também seu próprio destino e deus. Toda a sua sorte é uma costura em si mesmo, toda ela é construída inexoravelmente como conseqüência direta de seus atos, melhor dizendo, de sua liberdade.

Porém, para Brecht – e cremos aí ele ultrapassa a dialética hegeliana – a personagem apenas opera uma “determinação” (social e principalmente econômica) maior; é um elemento fusionado e mesmo um títere (e ele comprovará isto brincando com a identidade de Galy Gay/Jereiah Jip) das contingências sociais e econômicas que a empurram para ser o que é.

Há evidentemente nesta compreensão da personagem um alto grau de determinação da personagem e das ações desta, como sendo conseqüências geradas por pressões externas que definem e põem a personagem dentro do jogo social, político e econômico. Como diz Augusto Boal, sugestionado pelo pensamento brechtiano: “o personagem nunca é sujeito absoluto e sim um objeto de forças econômicas ou sociais, às quais responde e em virtude das quais atua” (BOAL, 1975, p 101).

Com isto, a idéia de personagem-sujeito19 apaga-se, ou pelo menos perde força quando se compreende que a personagem realiza sua ação não por deliberação própria, mas pela influência que se lhe impõe o contexto, logo o que se tem é uma personagem- objeto. Assim, todo pretenso personagem-sujeito é, na verdade, resultante de forças econômicas que o obriga a agir de tal modo; estas forças impulsionadoras são o real personagem-sujeito e aquele agente, portador e centro dos conflitos não passa de um personagem-objeto.

Toda essa argumentação se sobressai da clássica diferenciação do teatro feita por Brecht (1967) entre a forma dramática e a forma épica. Para Brecht, na forma dramática, dentre outras características, o pensamento, isto é, a motivação geral que tem a personagem determina o ser; enquanto que na forma épica o ser - social - determina o

pensamento (THOSS; BUSSIGNAC 1990, p.74-75).

Verifica-se que na forma épica proposta por Brecht a personagem resulta e age dentro de uma dinâmica – dialeticamente histórica, social e econômica – que em última instância, define e faz a personagem agir. Diante do que a mudança é sobremaneiramente

19 A conceituação de personagem-sujeito e personagem-objeto aqui desenvolvida baseia-se em Boal (1980, p.

a base pela qual Brecht concebe a personagem-objeto que unicamente reage às forças do social e do econômico.

Percebe-se desde já, que a idéia de uma personagem revestida como herói- trágico é descartada na teoria brechtiana para a personagem. Questão que se apresenta como capital ao desenvolvimento deste trabalho, sobre a qual retomaremos mais à frente, quando no desenvolvimento das cenas enunciativas nas análises.

3.2. A personagem-signo rei na ponte interdiscursiva dos enunciados de Shakespeare - Kurosawa

Maingueneau (2005), ao descrever as leis do discurso, o faz a partir de um ponto inicial, que aborda o enunciado como discurso. Como conseqüência imediata desta proposição metodológica, o discurso não será entendido em sua significação, nem por sua organização textual em si mesma, nem pela situação de comunicação, mas pela associação “de sua atividade enunciativa ligada a um gênero de discurso: o lugar social do qual ele emerge, o canal por onde ele passa (oral, escrito, televisivo...), o tipo de difusão que implica etc., não são dissociáveis do modo como o texto se organiza.” (MAINGUENEAU, 2005, p.12).

O enunciado opera-se a partir de uma indicação intencional de comunicar algo que diz respeito àqueles a quem é dirigido. (Op. Cit, p.31). Esta “premissa de fé” vincula e instaura uma consideração de que o enunciado é “sério”, ou seja, tem um propósito direto entre os interlocutores.

[...] se vejo uma placa com a proibição de fumar em uma sala de espera, vou presumir que o aviso é para valer. Não posso retraçar a história dessa placa para ter certeza: o simples fato de entrar num processo de comunicação verbal implica que se respeitem as regras do jogo. Cada um postula que seu parceiro aceita as regas e espera que o outro as respeite. [...] Essas regras não são obrigatórias e inconscientes como as da sintaxe e da morfologia, são convenções tácitas. (IDEM, IBIDEM, p.31).

O estudo dessas relações na linguagem verbal acabou por determinar as leis do discurso, cujo princípio atrela-se a uma lei maior denominada na França de ‘princípio da cooperação’. Assim, em virtude desse princípio, os parceiros devem compartilhar um

certo quadro e colaborar para o sucesso dessa atividade comum, que é a troca verbal, em que cada um reconhece seus próprios direitos e deveres, assim como reconhece os do outro.

Esse princípio adquire todo seu peso nas conversações, quando os interlocutores (dois ou mais) estão em contato direto e interagem continuamente um com o outro. Mas, as leis do discurso valem também para a escrita, em que a situação de recepção é distinta da situação de produção.

Neste sentido, para a referida autora (ibidem, p.32), o discurso é construído sob o princípio de cooperação. As leis do discurso não são normas de uma conversação ideal, mas regras que desempenham um papel crucial no processo de compreensão dos enunciados.

Nesse modelo, considera-se que todo indivíduo possui duas faces, o termo “face” deve aqui ser tomado no sentido de trocas funcionais da enunciação; ora a face do enunciador torna-se posivita, ora negativa, conforme as interações das funções discursivas no ato da comunicação.

Para Mainguenau (Op. Cit, p. 38), no processo de comunicação verbal, entra em cena - para cada interlocutor - um dinamismo interno no qual as duas dimensões da face que cada interlocutor possui se distanciam: existe a face negativa, que corresponde ao território da individualidade do sujeito, desde as porções e estados do corpo até constelações da intimidade; e a face positiva, que arrola tudo o quanto o sujeito formula como estratégia de apresentação pessoal; ou seja, é a fachada social e a construção psíquica que cada um constrói e pela qual quer ser apresentado aos outros.

Desse modo, para toda situação interativa da enunciação, pressupõe-se que cada um dos intelocutores interaja por meio de suas faces: a negativa e a positiva, envolvendo, portanto, quatro faces em constante negociação.

Sobre este jogo de alternâncias e predominâncias entre as faces do discurso, Mainguenau (Op, cit) fala da exposição das faces dentro da ação enunciativa. Isto porque todo ato de enunciação pode constituir uma ameaça para uma ou várias dessas faces: dar uma ordem valoriza a face positiva do locutor, desvalorizando a do interlocutor; dirigir a palavra a um desconhecido ameaça a face negativa do destinatário (é uma intrusão no seu território), mas também uma ameaça à face positiva do locutor (que pode ser visto como sendo excessivamente desinibido) (MAINGUENEAU, 2005 p. 38).

Será dentro deste dinamismo operacional das faces que iremos estabelecer uma atuação discursiva da persongem-signo rei Lear/Hidetora dentro de duas cenas de

enunciação20. Sendo a primeira: CENA 01: Kindgdom divided - (Divisão do reino); e a segunda: CENA 02: Ideal tribune - (The divided tribune: theater, play and clown): (o julgamento da divisão).

Em seu estudo das formas discursivas na comunicação, Maingueneau (2005) reserva um capítulo para a observação dos “tipos e gêneros de discurso”. Afirma que os locutores dispõem de uma infinidade de termos para categorizar a imensa variedade dos textos produzidos em uma sociedade. Distingue duas categorias para apreender o discurso: 1) as tipologias comunicacionais e 2) as tipologias de situações de

comunicação.

Sobre as primeiras, diz ser uma categoria que tenta obedecer a uma orientação comunicacional, ou seja, apresentam aquilo que o enunciado faz. Nesta categoria estão as

funções da linguagem e as funções sociais.

Consagradas e reconhecidas, as funções da linguagem sustentaram desde sua postulação na época áurea do estruturalismo lingüístico-semiológico, por R. Jakobson, até os dias atuais, um bem sucedido meio de enquadrar as possibilidades do ato comunicativo verbal. Assim, através das seis funções (“referencial”, “emotiva”, “conativa”, “fática”, “metalingüística”, e “poética”), a linguagem estava prontamente descrita em qualquer enlace comunicativo.

Contudo, o espaçamento da linguagem para o plano do signo - como fez a semiótica pierciana e o aprofundamento dos dispositivos e estratégicas internas da enunciação e do discurso, via Bakhtin e a Análise do Discurso (A.D) de filiação francesa - esclareceram que, a proposta de entendimento da linguagem através de funções era nostálgica e ineficiente quando deparadas com discurso modernos, sobretudo, os midiáticos. Sobre esta fragilidade metodológica das funções da linguagem, Maingueneau (2005, p.60) afirma: “Essa tipologia é de um manuseio muito delicado: não somente um mesmo discurso mobiliza muitas funções ao mesmo tempo, como também há muitos enunciados difíceis de associar com clareza a uma dessas funções”.

Daí a autora apontar para as funções sociais, como forma de garantir uma descrição mais abrangente para os fatos da linguagem e do discurso. Para Maingueneau, as funções sociais notabilizam usos necessários no âmbito social.

A idéia de função social parte, deste modo, da consideração de que em todas as sociedades haveria a necessidade de, no contexto da linguagem, aplicar funções de

20 A idéia de cena de enunciação não se liga à priori à estrutura dramatúrgica de King Lear; obedece mais ao

linguagem comuns a vários gêneros de discurso: a função lúdica, função de contato, religiosa etc. “uma função como a de ‘contato’ encontra-se tanto em conversas de bar como em manifestações de pêsames, em cartões-postais etc.” (OP.CIT p. 61).

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