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CAPÍTULO 2 A TRADIÇÃO DISPOSICIONALISTA: DE PIERRE BOURDIEU

2.2 Do conceito de habitus a uma sociologia em escala individual: a perspectiva

2.2.1 A perspectiva de Lahire aplicada à escolha do curso superior

As críticas de Lahire relativas ao uso que Bourdieu faz do conceito de habitus, apresentadas na seção anterior, apontam para uma tese central: o comportamento de um ator individual não pode ser diretamente deduzido do seu pertencimento a uma dada categoria social. Ele não pode ser explicado simplesmente pela localização do indivíduo na estrutura social, por seu pertencimento a uma dada classe social ou pelo fato de ele ter sido socializado num determinado ambiente cultural.

Lahire (1998, 1999b, 2002) enfatiza que cada indivíduo se define a partir de um conjunto particular de influências sociais, em parte contraditórias, e mesmo antagônicas,

recebidas ao longo do tempo ou mesmo simultaneamente. É possível defini-lo a partir do seu pertencimento de classe, por exemplo, mas essa definição será sempre insuficiente. Se afirmamos, por exemplo, que ele pertence à classe dominante, a questão seguinte é saber a qual fração dessa classe ele pertence: à fração dominante em termos econômicos, culturais ou sociais? Se concluirmos que ele pertence à fração dominante em termos culturais, é possível, em seguida, perguntarmos: em que dimensão específica da cultura está alicerçada sua dominação, qual a história dessa dominação, ou seja, há quantas gerações sua família ocupa essa posição, qual o grau de coerência entre os patrimônios culturais recebidos da linhagem materna e paterna e até que ponto esses patrimônios foram efetivamente transmitidos ao indivíduo, em que medida este teve e tem contato com ambientes culturais diferentes do familiar? Para além de sua posição de classe, qual o sexo e a orientação sexual desse indivíduo, qual sua religião, sua etnia, seu estado civil, sua localização geográfica (rural ou urbana)?

Lahire (1999c, 2001) argumenta que quando a Sociologia analisa o comportamento individual de forma agregada, a partir de categorias coletivas de análise - como classe social, gênero, etnia, grupo profissional, cultural ou religioso - ela classifica os indivíduos a partir de algum traço que eles têm em comum, mas cada indivíduo em particular possui, ao mesmo tempo, uma série de outros traços que o distinguem dos demais classificados na mesma categoria. Não se trata de negar a importância ou a utilidade das categorias coletivas de análise. O autor reconhece que boa parte do conhecimento sociológico consiste, precisamente, em estabelecer que determinada categoria de indivíduos apresenta majoritariamente ou tipicamente determinado comportamento. A Sociologia pode dizer-nos, por exemplo, que a maioria dos membros de uma determinada classe social adota um comportamento político progressista, que os membros de uma dada religião são tipicamente conservadores, que as mulheres no meio rural tendem a ter mais filhos, e assim por diante. O que Lahire busca enfatizar é apenas que as regularidades estabelecidas nesse nível de análise não podem ser transpostas diretamente para a escala individual. Para utilizar os mesmos exemplos, um indivíduo das camadas médias intelectualizadas pode não ser progressista, um membro da tal religião pode ter um comportamento liberal, e uma mulher do meio rural pode não ter tantos filhos.

Transposto para a questão da escolha do curso superior, o raciocínio de Lahire deixa claro que é possível afirmar, utilizando categorias coletivas de análise, que os indivíduos que ocupam determinada posição social tenderão - tipicamente ou com uma certa probabilidade - a escolher determinado curso num dado contexto social. Conforme a teoria, enfatiza-se que esses indivíduos possuem recursos materiais em comum, que têm as mesmas oportunidades, ou, ainda, que compartilham traços culturais comuns que os conduzem a agir de forma semelhante. Numa escala individual, no entanto, a explicação torna-se mais complicada. Cada indivíduo se distingue dos demais membros de sua categoria de diversas formas. Se todos compartilham uma mesma situação econômica, por exemplo, eles continuam, por outro lado, a distinguir-se em função de sua crenças, valores, etnia, gênero, etc.. Não se pode, assim, explicar a escolha do curso superior de um indivíduo específico simplesmente a partir do conhecimento do seu pertencimento a uma dada categoria social. O máximo que esse pertencimento nos diz é que há uma probabilidade maior ou menor de que a escolha desse indivíduo recaia sobre determinado curso.

Se, por um lado, Lahire nos ajuda a ver os limites de uma abordagem macrossociológica do processo de escolha do curso superior, por outro, em termos propositivos, sua perspectiva nos sugere dois eixos principais de investigação.

O primeiro refere-se aos processos de socialização vividos pelos candidatos ao longo do tempo e em diferentes esferas da vida social (família, escola, grupo de pares). Ter-se-ia que considerar, especialmente, o grau de regularidade, precocidade, intensidade e coerência dessas múltiplas experiências. Como já foi discutido, na perspectiva de Lahire, a força, a durabilidade e o grau com que cada uma das disposições tenderia a ser transferida para múltiplos contextos dependeriam do modo como elas foram constituídas ao longo da vida do indivíduo.

O segundo refere-se às ações dos indivíduos (no nosso caso, especialmente, as tomadas de decisão) em diferentes contextos sociais (situações de consumo, escolha de uma prática esportiva, outras decisões escolares). A existência de determinadas disposições (mais ou menos específicas, estáveis e intensas) subjacentes ao comportamento do indivíduo só poderia ser identificada a partir da observação de ações

similares num mesmo contexto (disposição específica) ou em contextos diferentes (disposição mais geral). Seria necessário, portanto, investigar em que medida o indivíduo age ou não, e em que grau, de uma mesma maneira em diversos contextos.

A escolha dos estudos superiores realizada por um indivíduo específico poderia, então, ser interpretada como resultando da interação entre seu patrimônio de disposições incorporadas e o contexto do ato de escolha. A situação de escolha do curso superior seria, num primeiro momento, caracterizada como mais ou menos semelhante a outras já vividas pelo indivíduo. Em seguida, observar-se-ia como ele agiu nessas situações similares. Caso ele tenha agido de uma forma parecida com a que ele agiu no momento do vestibular, poder-se-ia supor que nessas diversas situações ele atualiza uma mesma disposição para a ação ou um conjunto característico de disposições. As origens sociais dessa ou dessas disposições seriam, então, investigadas por meio do estudo do processo de socialização vivido pelo indivíduo.

A perspectiva de Lahire e o modelo de interpretação da escolha do curso superior que pode ser derivado dela têm o grande mérito de reconhecerem a complexidade dos processos de socialização, da subjetividade do indivíduo (ou, mais especificamente, do seu patrimônio de crenças, disposições, apetências e competências) e dos contextos de ação. Lahire torna evidente a insuficiência do esquema “posição social - habitus de classe - ação prática”. Um indivíduo não se situaria numa única e bem delimitada posição no espaço social. Sua maneira de pensar, avaliar, querer não apresentaria, na maioria dos casos, a estrutura estável e coerente prevista pelo conceito de habitus, tal como definido por Bourdieu. Além disso, as ações de um mesmo indivíduo variariam de forma significativa conforme os contextos de atualização.

Esse reconhecimento do ator e da ação como realidades complexas propicia, sem dúvida, uma compreensão mais ampla do processo de escolha do curso superior tal como vivido por indivíduos específicos. As representações, as preferências, as estratégias utilizadas pelos candidatos não poderiam ser aprioristicamente deduzidas pelo pesquisador a partir da posição social ocupada por eles. Seria necessário estudar a história de cada indivíduo, suas relações passadas e presentes, sua forma de lidar com situações diferentes e semelhantes à do vestibular.

2.2.2 Vantagens e limitações da perspectiva de Lahire como instrumento de