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CAPÍTULO 2 A TRADIÇÃO DISPOSICIONALISTA: DE PIERRE BOURDIEU

2.3 Considerações finais

De uma maneira geral, é possível afirmar que a teoria de Bourdieu nos oferece um importante modelo de análise do processo de escolha do curso superior. As vantagens desse modelo são reveladas, sobretudo, quando o comparamos ao que é proposto pelas teorias da escolha racional. As discussões desenvolvidas neste capítulo deixam claras, no entanto, as dificuldades de se aplicar esse modelo à escala individual de análise.

Como se viu, contrapondo-se parcialmente a Bourdieu, o trabalho de Lahire procura enfatizar que um ator individual se orienta por um conjunto complexo de disposições (formado a partir de múltiplas e mais ou menos precoces, regulares, intensas

e coerentes experiências de socialização) cujas origens e formas de atualização podem e devem ser estudadas sociologicamente.

As observações de Lahire evidenciam a impossibilidade de se explicar o comportamento de um indivíduo específico por meio do estabelecimento de uma relação direta e necessária entre posição social de origem, disposições ou habitus e ato de escolha. Em primeiro lugar, o fato de um indivíduo ter sido socializado numa família situada numa determinada posição social não garante que ele vá constituir as disposições próprias a essa posição. Como mostra Lahire (1995), é preciso considerar, em primeiro lugar, o grau de heterogeneidade dessa família e as relações de interdependência que se estabeleceram entre o indivíduo e cada um dos membros da configuração familiar ao longo de todo o processo de socialização. Em função da dinâmica assumida por esse processo, o indivíduo pode incorporar ou não, e em graus diferentes, as disposições próprias a cada um desses membros. Em segundo lugar, ainda que a socialização familiar ocorresse com um grau elevado de coerência e de eficiência, ela não seria suficiente para explicar o comportamento de indivíduos específicos. Como mostra largamente Lahire, as disposições individuais são constituídas a partir de múltiplas e, até certo ponto, incoerentes influências socializadoras recebidas ao longo do tempo a partir da inserção do indivíduo em diversas esferas sociais.

Para se compreenderem as atitudes e comportamentos frente ao sistema de ensino, por exemplo, como é nosso caso em relação à escolha do curso superior, as pesquisas mostram a necessidade de se considerar, para além da posição de classe, a influência propiciada por diferentes contextos de escolarização (Ball et alii, 2001, Duru- Bellat, 2002). Um indivíduo recebe influências específicas relacionadas ao fato de ter estudado num determinado estabelecimento, de ter participado de uma determinada turma e, até mesmo, de ter sido aluno de um certo professor e não de outro. Mesmo quando ocupam uma mesma posição na estrutura social, os indivíduos realizam, dentro do sistema de ensino, trajetórias únicas e recebem, portanto, um conjunto diferenciado de influências sociais.

Soma-se a isso o efeito socializador informal exercido pelo grupo de amigos, ligado não apenas à escola, mas ao local de residência. Dentro de uma mesma classe

social, cada indivíduo particular esteve ligado, ao longo do seu percurso até o vestibular, a um conjunto diferenciado de laços de amizade, que certamente o influenciaram de uma maneira específica.

Se é possível imaginar que, de um modo geral, essas diferenças, ditas secundárias, estarão subsumidas na diferença fundamental entre as classes - uma vez que os contextos escolares e mesmo as amizades não se distribuem aleatoriamente entre os ocupantes das diversas posições sociais - não se pode esquecer que isso é verdade apenas quando se analisa a realidade social numa escala macro. De fato, a grosso modo, os indivíduos de cada categoria social tenderão a estudar em escolas parecidas e a ter grupos de amigos com características semelhantes. Uma análise em escala individual como a proposta por Lahire (1999b, 2001, 2002) permite revelar, no entanto, que, por trás da aparente uniformidade, há uma diversidade imensa a ser investigada.

É importante, finalmente, relembrar que as críticas dirigidas a Bourdieu não se referem apenas ao problema da constituição do habitus a partir da estrutura das posições sociais, mas, igualmente, à questão da atualização desse habitus em ações práticas40. Bourdieu não é suficientemente explícito sobre o modo como o habitus incorporado orienta as ações individuais. O autor fala de uma relação dialética entre disposição e situação, ou, ainda, da produção de improvisações a partir do habitus incorporado. Nada disso, no entanto, é satisfatoriamente detalhado. De maneira geral, as práticas parecem reduzidas a exemplificações de um estilo de vida unificado e coerente, definido, por intermédio do habitus, a partir da posição social de origem.

Mantendo-se nesse nível macro de análise, Bourdieu evita todas as dificuldades teóricas e metodológicas relacionadas à diversidade intra-individual e todos os riscos (sobretudo, o de retorno ao subjetivismo) implicados na constituição de uma abordagem microssociológica. O preço a ser pago é o da restrição do âmbito de pertinência do seu modelo teórico: este parece adequado para a interpretação de dados agregados, mas mostra-se limitado quando se trata de compreender as escolhas efetivas realizadas por indivíduos específicos - diferentes dos típicos representantes das posições sociais (Lahire, 2001).

Lahire, por sua vez, enfrenta o desafio de definir as bases de uma sociologia em escala individual. O universo individual seria fruto de múltiplas influências sociais, passadas e presentes, que poderiam e deveriam ser detalhadamente investigadas pela Sociologia.

Como foi visto, falta, no entanto, à perspectiva de Lahire, uma resposta teórica ao problema da orientação social da ação individual, ou seja, um modelo teórico geral capaz de tornar compreensível a relação dos indivíduos com as múltiplas influências a que são submetidos. Na falta de uma teoria desse tipo, a perspectiva de Lahire pode nos conduzir, como foi discutido, a dois caminhos igualmente insatisfatórios. O primeiro pode ser chamado de empiricista. Descreve-se, com riqueza de detalhes, as experiências de socialização e as ações de um indivíduo específico em diferentes contextos sociais, mas não se chega a formular, explicitamente, uma explicação sobre porque este indivíduo age de um forma e não de outra. O segundo caminho é o do raciocínio post factum e da explicação ad hoc. Tendo em vista a ação realizada pelo indivíduo, seleciona-se as experiências de socialização, as características do contexto de ação e as disposições que pareçam mais aptas a explicar o comportamento em questão.

No próximo capítulo, discutiremos a possibilidade de se evitar esses dois caminhos por meio da formulação de uma resposta teórica ao problema da orientação social da ação individual, ou seja, da formulação de um modelo interpretativo geral a partir do qual seja possível compreender, simultaneamente, as reações de sujeição e de resistência dos atores individuais frente às influências a que são expostos.