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CAPÍTULO I: A Pessoa Irredutível

4 A Pessoa Irredutível e Distinguível Hoje

A partir da pessoa reduzida, negativamente conformada de todas as maneiras, é possível propor soluções para o problema do que seja essa pessoa, irredutível, mas passível de ser distinguida.

A pessoa possui um corpo, mas não com conformações necessariamente prescritas e usos impostos. Ao contrário, os corpos são vários possíveis, tanto em termos anatômicos, quanto em termos de quais usos podem dele ser feitos. O corpo é uma base “empírico-

sensitiva” manipulável, que, ao mesmo tempo, medeia vivências e incorpora experiências36.

No entanto, mesmo havendo corpo, mesmo sendo corpo humano, sem os processos interativos com outras pessoas e com o ambiente, não haverá pessoa, capaz de ação, de transformação, de afetação. A pessoa só existe na alteridade, e por isso o isolamento e a exclusão social (as penas de não-convívio) são tão brutais, pois impossibilitam o desenvolvimento de qualquer pessoalidade. A racionalidade em si não é marca distintiva da pessoa, mas sim a razão- em-uso, que permite o desenvolvimento prático de uma autonomia moral, e a emergência de um self organizado.

Aqui, desvela-se com clareza o porquê da inadequação do uso de “ser humano” ou “indivíduo humano” como sinônimos de pessoa humana. O “ser humano” apresenta uma categoria ôntica, aprioristicamente definida e em desconexão com o processo da realidade que é o tornar-se pessoa. O “ser humano” é só, ele existe, e meramente existindo será o que é: ser humano. O indivíduo humano apenas anuncia uma das características do ser, que não pode ser dividido ou recortado em mais de um sem perder o seu status original. Contudo, as características ressaltadas nesses termos são insuficientes e inadequadas. Abandonadas as explicações metafísicas, e criadas exigências de congruência empírica de quaisquer construtos teóricos, o ser humano, e mesmo de indivíduo humano, não resistem a um exame mais profundo.

36 Cf. STANCIOLI, Brunello; CARVALHO, Nara Pereira. Da Integridade Física ao

Livre Uso do Corpo: Releitura de um Direito da Personalidade. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Org.). Manual de Teoria Geral do Direito Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 267-285.

A fragmentação conceitual da pessoa produzida pelas ciências, a que se aludiu no início do tópico anterior, ainda trouxe como último refúgio do ser humano a ciência genética, pela qual foi possível a associação do ser humano com uma espécie humana geneticamente bem delimitada, com um DNA próprio, um código que determinaria com segurança o que é e quem é ser humano. Não obstante, a a genética também não é terreno seguro para apoiar o conceito de ser humano.

O motivo mais evidente consiste no caráter dinâmico e não uniforme da composição genética das espécies. O desenvolvimento da biologia genética contribuiu muito para um maior refinamento dos postulados da Teoria da Evolução e, particularmente, das formulações acerca da evolução da espécie humana. Descobriu-se que não apenas o

Homo sapiens possui forte parentesco genético com outras espécies, em especial com aquelas com as quais compartilha ancestrais comuns (pesquisas na área de genômica comparativa concluíram que 98,5% do DNA humano é idêntico ao dos chimpanzés37), mas também que continua evoluindo. Ou seja, a composição do DNA humano está mudando, através de recombinações, mutações, processos transgênicos, e pela própria engenharia genética, de forma que é um prognóstico bastante plausível que o Homo Sapiens possa, no futuro, dar origem a outras espécies. Mesmo dentro da espécie humana, há tanta variabilidade genotípica e fenotípica, que é tarefa extremamente árdua definir quais são (e, antes, se os há) os traços essenciais definidores da espécie.

37 Cf. GIBBONS, A. Which of our genes make us human? Science, 1998, 281:1432-

1434; THE CHIMPANZEE Sequencing and Analysis Consortium. Initial sequence of the chimpanzee genome and comparison with the human genome. Nature, 2005, 437 (7055): 69.

A pessoa, portanto, pode ir além do humano, e pode mesmo chegar a incluir o não-humano. O transumanismo, a ideia de que a superação das barreiras da espécie humana, através de modificações genéticas, interfaces homem-máquina e intervenções radicais no funcionamento do corpo, já é factível e representa algo que pode ser desejável por muitas pessoas, não pelo desejo de transcender o humano em si, mas tendo em vista as possibilidades que oferece para a construção de projetos de vida boa38. Por outro lado, a tendência atual de conceber “direitos dos animais”, em bases éticas pelo reconhecimento de que alguns animais teriam formas identificáveis de pessoalidade39, informa a ampliação do conceito de pessoa para a inclusão de outras espécies que não só a humana.

O que resta do ser humano, e que fica presente no conceito de pessoa humana, é a constatação de que, por um lado, as pessoas ainda hesitam em abandonar a certeza de que são humanas, por outro temem que só possam ser pessoas em razão de sua humanidade. É uma falsa certeza, por certo, mas que tranquiliza e tem certa utilidade. Para o Direito, em uma inversão cruel, é a ficção do humano que determina a pessoa, e daí surge certa segurança na definição de quem é pessoa e quem não o é. Porém, quer-se ir além da ficção e da falsa certeza.

No Capítulo seguinte, será apresentado um modelo para superar o reducionismo e construir um conceito aberto e empiricamente congruente de pessoa, capaz de efetivamente elucidar distinções entre pessoas e coisas. Tratar-se-á a pessoa como sistema.

38 Cf. BOSTROM, Nick. In Defense of Posthuman Dignity. Bioethics, 2005, 19 (3):

202-214.

39 Cf. SINGER, Peter. All Animals are Equal. In: SINGER, Peter (Org.) Applied

CAPÍTULO II